Uma vez, já lá vai um carro de anos, chegou-nos à Raia um fusco novato, chamado Jacinto, vindo das bandas do sul que, por artes que nunca deslindei, mandaram para estas terras do inferno para ajudar a vigiar a fronteira e a botar o gadanho aos contrabandistas.

O rapazola, que arrimaram no posto das Batocas, tinha a cartilha na ponta da língua, e quando saltava adiante de um cargueiro, bradava-lhe assim:
– Faça alto e entregue a mercadoria em nome da Fazenda Nacional!
Mandava esta ordem escorripichada do catecismo fiscal, todo empertigado, como se fosse magala da tropa a falar para o seu capitão. Só que ao alpercatar-se com aquela perlenga deixava tempo ao contrabandista para se moscar, salvando a pele e o carrego.
Aprenderia com a vida, este pinchaleco da cidade que alguém arrimou aos secultosos e feros contrabandistas da nossa raia.
Com o tempo o melro tornou-se espertalhaço e apanhou o jeito de botar a luva ao contrabando. Sendo porém figura reles, magricela e enfezado, parecendo padecer das lombrigas, o Jacinto tinha preferência por pilhar as cargas às mulheres e aos catraios, que demandavam Alamedilha, levando uma cesta de ovos e volvendo com uma pinga de azeite, um pão espanhol ou um cartucho de figos secos.
Deixou-se de retóricas e, apanhando contrabandista a jeito, saltava do esconderijo e aliviava-o da carga. Tornou-se o herói da caserna, pois tomando sobretudo bens perecíveis, que não podiam aguardar pela hasta pública, eram distribuídos pelo efectivo do posto ou deglutidos no próprio quartel em bródios e folias.
Pois um dia, por ocasião da festa da Senhora da Póvoa de perto, na Sacaparte, onde sempre vou com devoção, reparei que o guarda Jacinto rondava no arraial, trajado à paisana. Quedou-se na tenda da Ti Zabel Parchaneta, taberneira da Miuzela, afamada por vender o melhor vinho da redondeza. O rapaz, certamente faminto, mandou vir um cacharro de vinho, um pão de quartos e um bom naco de presunto, que a taberneira lhe serviu com esmero. Muquia sossegadamente, quando o Manel Farrusca, um dianho dos Forcalhos, que na mor parte do tempo andava avinagrado, resolveu meter-lhe paleio, dando voz ao ódio contido que muitos lhe nutriam.
– Ora aqui temos o rapagão do posto das Batocas. O arolas que bota a luva ao carrego dos cachopos… O maior apreensor de ovos, galhetas e rebuçados.
A maralha que enchia a tenda soltou uma larga risota com a arenga do Farrusca, e eu, que era batido na vida, temi que dali adviesse um problema grave com a autoridade. E não errei.
O guarda Jacinto, ciente de que à paisana mantinha a sua condição de autoridade, limpou a boca com a cota da mão, entesou-se, e disse para o Farrusca:
– Está de detido em nome da autoridade.
O arrifeiro forcalhense olhou-o com espanto, enquanto o guarda clamava pelo regedor da freguesia, que tinha por dever colaborar na condução do preso ao posto mais próximo.
Mas o Farrusca foi acometido por um mal-repente, que o vinho que emborcara lhe proporcionou, e, avançando um passo, enfiou um abrunho nas ventas do fiscal, o que o fez cair desamparado sobre o balcão improvisado da taberna. A Zabel Parchaneta, desesperada, e temente de problemas graves na sua venda, pegou num arrocho e martelou a testa do Farrusca, em castigo pela confusão que lhe arranjara. Vai daí, armou-se um escarcéu dos diabos, com cada qual a bater de seu lado, numa trama infernal. Foi traulitada de três em pipa!
Mantive-me em observação, sem me deixar enredar na confusão, e reparando que o guarda fora esquecido na contenda e permanecia arrodilhado no pó, dorido e sofrido com o murro que levara. Fui-me por ele.
– Erga-se e venha comigo que o levo pra fora da zaragata.
Só que o raças do fusco, ao invés de aproveitar para se livrar do alboredo, ainda me retrucou:
– O dever manda-me prender e conduzir à justiça um homem que ofendeu a autoridade.
Erguendo-se a muito custo, com o meu amparo, fez tensão de se meter na confusão para cumprir o tal dever.
Dando-me pena daquele diabo, que por lá arranjaria forma de sair dali cadáver, peguei-lhe pelo cós das calças, e botei-o ao ombro. Ele esperneou e protestou, ameaçando-me de prisão. Mas, indiferente a tudo, levei-o até junto do macho e botei-o para riba da albarda, onde ficou de atravesso.
– Vamos embora, que com isto faço um serviço à nação – disse-lhe à laia de o acalmar.
Lançou-me impropérios e continuou a espernear que nem uma lebre apanhada no laço. Não tive outro remédio que botar-lhe as leias, apertando-o à albarda como se fosse um feixe de nabos.
Para o manter caludo tapei-lhe a boca com um farrapo, e assim o levei ao posto de Aldeia da Ponte, onde o cabo Peres o recebeu a medo, depois de eu lhe contar o ocorrido.
Não tardou muito que o lengrinhas do guarda Jacinto fosse transferido para outras paragens, deixando estas terras de gente fera, para as quais ele não tinha têmpera.
Paulo Leitão Batista, «Aventuras de um velho contrabandista»

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