Há 2076 anos nasceu, perto de Mântua, um dos grandes poetas da Antiguidade, aquele que Paul Claudel chamou o maior génio produzido pela Humanidade e que mais do que um poeta, foi um profeta de Roma, um «vate», um poeta-profeta.
Chamava-se Virgílio e foi um profundo conhecedor da terra que ele exaltava, pois sendo filho de um pequeno proprietário rural, conhecia o Outono com a maturação das uvas; o odor da terra fendida pelos ganchos da charrua; o forte hálito dos animais; os tosões aquecidos durante o dia todo pelo calor do sol; o aroma do vinho doce e do mel destilado durante os quentes verões.
A sua obra mais conhecida foi a Eneida, mas a sua primeira obra, que publicou aos 29 anos, chama-se Eclogae, género literário que designava as poesias pastorais, as bucólicas, que tinham origem num passado longínquo, quando o homem ainda praticava a vida pastoril.
Daí o bucolismo traduzir a esperança de uma época de paz, um canto de saudade. O culto ao campo fazia parte desta vida pastoril greco-romana e tinha sido muito bem retratado, já antes de Virgílio, nos Idílios de Teócrito, onde pastores e camponeses figuravam com suas canções, amores e sentimentos.
Com a difusão do Cristianismo pelo mundo civilizado, a maior parte da poesia pagã foi esquecida ou perdeu-se.
Virgílio, conservou, porém, a sua posição de destaque, continuando a ser lido e estudado ao longo de dois mil anos, sendo modelo de importantes autores como Dante, servindo-lhe inclusive de guia através do Inferno e do Purgatório, bem como dos nossos Camões e João de Barros.
Tal deveu-se ao caso curioso de na IV Bucólica, o poeta falar de uma Idade de Ouro ligada ao nascimento de um menino, durante cuja vida a humanidade viveria uma nova época áurea e que os cristãos da época interpretaram como uma profecia do nascimento de Cristo, semelhante à profecia de Isaías:
…«magnus ab integro saeclorum nascitur ordo.
Iam redit et Virgo, redeunt Saturnia regna;
iam noua progenies caelo demittitur alto.
Tu modo nascenti puero, quo ferrea primum
desinet ac toto surget gens aurea mundo,
casta, faue, Lucina: tuus iam regnat Apollo.
Teque adeo decus hoc aeui ,te consule, inibit,
Pollio, et incipient magni procedere menses
te duce.» Buc. IV, 5-12.
…«a grande série de séculos recomeça.
Já também retorna a Virgem, voltam os reinos de Saturno;
do alto céu já é enviada uma nova geração.
Tu somente, casta Lucina, favorece ao menino que nasce,
sob o qual primeiramente desaparecerá a raça de ferro
e surgirá no mundo inteiro a raça de ouro, já reina o teu Apolo.
E esta honra do tempo começará e os grandes meses começarão
a suceder-se primeiramente sob o teu consulado, ó Polião,
sob o teu comando».
A partir deste texto, os primeiros cristãos decidiram que Virgílio era um dos poetas pagãos virtuosos, que fora recompensado com uma antevisão da época messiânica.
Desde então, a poesia de Virgílio ganhou um ar de santidade religiosa e foi reverenciada quase em pé de igualdade com a bíblia e outros textos cristãos, sendo enaltecido como o maior dos poetas e modelo para os novos autores.
Dante, diz na sua Divina Comédia que Virgílio foi o mestre onde buscou toda a técnica e arte.
Chaucer considerou-o como o «mestre perfeito, um escritor que todos os poetas deveriam respeitar e igualar».
Mas eu, que o li na minha juventude, penso que a sua maior obra, porque revela a sua verdadeira natureza e relação com o universo, foi aquele epitáfio em hexâmetro dactílico e pentâmetro dactílico que ele próprio redigiu para o seu túmulo junto à estrada que ligava Nápoles a Puzzuoli, e que nos chegou por transmissão indirecta.
Este epitáfio revela bem a simplicidade vocabular e modéstia de Virgílio; omite qualquer juízo de valor e tem, além disso, uma alusão mitológica que era muito ao seu gosto:
«Mantua me genuit; Calabri rapuere, tenet nunc
Parthenope: cecini pascua, rura, duces.»
«Mântua gerou-me; a Calábria arrebatou-me; agora possui-me
Partenope (Nápoles): cantei as pastagens, os campos, os heróis.»
Virgílio é de facto, como diz Chaucer, um mestre perfeito; um poeta cuja simplicidade e modéstia, os poetas de hoje nem de longe conseguem imitar!
«Arroz com Todos», opinião de João Valente
joaovalenteadvogado@gmail.com
2 comentários
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Quarta-feira, 25 Março, 2009 às 17:45
António Emídio
O fortunatos nimium,sua si bona norint agricolas – Oh! que felizes seriam os homens do campo se conhecessem a sua felicidade. Será que os homens do campo não a sabiam apreciar?
Se Virgilio o disse, por alguma razão foi.
Quarta-feira, 5 Dezembro, 2012 às 16:11
jose domingos delciello
Eu e minha irmã fomos até a colina que abriga o túmulo de Virgilio. Estavamos em Nápoles, no albergue da juventude muito perto da colina. Não havia visitantes, o guarda permitiu nossa entrada. Só nós dois. Ficamos emocionados, pelo silêncio, estavamos tão próximos do Mestre, poeta e escritor e amava a terra. No momento sentiamo-nos tão privilegiados, mas incrédulos de poder estar alí naquele lugar quase sagrado e respeitado pela humanidade, mas naquele momento quase esquecido pelos napolitanos.