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Vivi a minha infância em ambiente bucólico, na ruralidade da minha aldeia, nas Cheiras. Passei a adolescência no colégio do Outeiro de S. Miguel e cheguei, no limiar da juventude, ao Liceu Nacional da Guarda.
A urbanidade soube-me a liberdade. Cedo integrei grupo de amigos. A experimentação de hábitos urbanos foi-se impondo, gradualmente. O prazer da «bica», uma das principais novidades da altura, constituiu um deleite que me sobejou para o resto da vida. Hoje até o cheiro do café me inebria!
Iniciei, nessa época, as saídas à noite. Saía mal acabasse de jantar. Do Largo dos Correios, onde morava, rumava ao Café Mondego. No início da minha vida urbana foi nesse café que me acostumei a cavaquear com amigos perante uma bica quentinha. Nas noites frias da Guarda desse tempo pouco mais poderíamos fazer do que conversar, beber um copo, tomar um café e espreitar algum jornal. Folheávamos mais frequentemente o Diário de Lisboa, jornal de títulos vermelhos, de formato mais pequeno e, por isso, mais portátil.
Certa noite de Inverno deu-se a minha saída, regulamentar, depois do jantar, para o café. O frio era excessivo e quase doía. O vento gélido fez-me levantar a gola do casaco que mantive, erecta, com a ajuda de um cachecol atado em nó cego. Mas nada pôde evitar que, a meio do caminho, caíssem grossas e espaçadas pingas de chuva gelada. Ora, quem por aqui habite ou tenha habitado sabe bem que estas pingas quase sempre precedem copiosas chuvadas. Tive, então, que bater o meu record pessoal dos cem metros e, mesmo assim, cheguei ao destino de costas húmidas e espinha arrepiada.
O café estava repleto. Entrei ofegante e sentei-me, como de costume. A montra embaciada não mostrava o exterior. Apenas se enxergava um ponto de luz amarela. Era a lâmpada de um poste de iluminação pública, em frente. No interior pairava um cinzento espesso, quase opaco, proveniente de mais de uma trintena de cigarros ardentes e fumegantes que, antes de extintos, eram substituídos por outros.
Às mesas conversava-se com inegável concentração. A atenção posta nos diálogos mal permitia perceber que havia quem entrasse e quem saísse. Entrei, portanto, e fiquei com a sensação de que ninguém deu por isso. Consegui uma mesa, bem ao fundo, no vértice de um canto. Era uma mesa que um homem, idoso e corcunda, deixou livre, suando e tossindo, enquanto se ausentava meio intoxicado com a excessividade do fumo tabaqueiro.
Nenhum dos meus amigos tinha vindo e, quiçá, nenhum deles viria, fruto da repressão da chuva, que a essa hora, já era diluviana.
Ao sentar-me desapertei o casaco. Tirei o cachecol. Confortei-me com a temperatura. Ajustei a cadeira à mesa e levantei o braço para o empregado.
Do lado de dentro do balcão um homem baixo e atento tirava cafés que não tinha tempo de contar. Do lado de fora outro homem, alto, equipado de casaca branca, circulava entre as mesas, veloz, redopiando a bandeja e conseguindo, milagrosamente, manter as chávenas sem verter. Colocava as bicas sobre as mesas com a mesma velocidade com que retirava as chávenas vazias. Depois recolhia as moedas que guardava numa carteira de cabedal preto pendurada do cinto. Passou junto de mim, olhou-me de soslaio e gritou sem me auscultar:
– Mais um bica para a mesa do canto.
Saboreei o meu café docemente. Folheei o jornal e assumi uma pose concentrada talvez para não destoar, no ambiente. Tinha perdido a esperança de que algum colega viesse mas continuei esperando sem saber bem por quem.
De repente abriram-se as portas de entrada que eram de «vai e vem». Entrou um homem baixo. Usava um sobretudo sobejamente comprido e cinzento, cor de fumo. O cabelo era comprido, desgrenhado e pouco lavado embora completamente ensopado de chuva. Tinha uma cara redonda, pequena, correada e cercada pela basta cabeleira. Parecia um rosto de cabedal castanho, um cabedal já gasto. Os olhos eram pequenos mas muito brilhantes. Olhando parecia emitir energias que nos perfuravam até ao âmago. Trazia na mão um par de chifres de carneiro, compridos e torneados.
Todos teriam preferido ignorar a sua chegada. Mas o homem vinha ao que vinha e para que todos notassem a sua presença quase berrou:
– Boa noite meus senhores.
Com a mão direita levantou até onde pôde os cornos do caneiro e continuou a vociferar:
– De quem são estes artefactos?
Como todos ficassem embasbacadamente calados rematou:
– Pronto, pronto meus senhores. Desculpem lá incomodar. Vou-me embora… Já vi que estão todos servidos.
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
Soube da ausência (não da morte porque os poetas não morrem) de Manuel António Pina, na tarde de dezanove de Outubro. Foi um dia de Outono triste e cinzento. O céu chorava pequenas lágrimas de chuva nos breves instantes em que o dia se abraçava à noite.
Fiquei incrédulo com a notícia perante a ameaça de uma ausência que me fez fixar a imagem do poeta antes de buscar, no meu íntimo, o esforço suficiente para me convencer. Levantei, depois, o olhar ao céu, um céu frio e angustiado retalhado de nuvens de algodão sujo que, com a chegada da noite, se fazia mais escuro. Dir-se-ia que o luto se queria impor embrulhado na cor da noite. Vi, então, uma imensidão de sombras. Juraria que muitas delas eram sombras de livros que se espalhavam dispersos, desordenados entre as nuvens, como se tivessem caído de uma gigantesca estante. A poesia andava à solta no céu cinzento e o poeta teria partido em busca dela.
Não sei da razão pela qual preferi afastar-me desse momento para só agora tecer este comentário.
Não tive a sorte de conhecer pessoalmente Manuel António Pina embora a sua condição de sabugalense e de beirão/raiano provoque em mim sentimentos amalgamados e misticismos que se situam algures, lá entre o orgulho e o regozijo.
Leio e releio, com a frequência possível, Manuel António Pina. Li-o algumas vezes sofregamente. E sei, sim, que foi dramaturgo, cronista, jornalista e muito mais mas permitam-me que, para mim, ele seja sobretudo poeta, um poeta que desenhou casas com poesia e que me explicou que um livro nos fala com a nossa voz.
Nunca privei com ele, portanto, mas parece-me, neste momento em que escrevo, que o conheci muito bem. Sinto-me como se tivesse por ele (e tenho) uma imensa amizade.
Claro que não sei nem nunca soube explicar a amizade. Não a explico mas entendo-a e sei, absolutamente, o que ela é e quando existe.
O que seria do nosso mundo, tão adensado de estorvos, se não existisse a amizade e se o coração pudesse ser, tão só, um logro? O que seria de nós se a beleza pudesse ser, apenas, ilusão? Ora, a poesia de Manuel António Pina era, é e será eternamente bela. Eis, portanto, a razão pela qual o poeta não morreu nem morrerá. Apenas se ausentou.
Poderemos sempre sentir nos dedos o prazer de tatear as páginas dos seus livros. Poderemos sempre consultá-los antes e quando pretendermos interpretar mistérios. A sua poesia continuará a iluminar as nossas vidas. As suas palavras serão sempre armas com as quais lutaremos contra os escuros das nossas existências e serão, também, a promessa de um final valido nos nossos percursos.
Após a sua ausência, ainda que a noite caia, ainda que o escuro nos envolva e mesmo que o desânimo nos aflore significativamente a poesia de António Pina sempre nos alentará porque ela é e será inseparável das nossas vidas.
Escureceu, então, nesse final de tarde chorosa e outonal mas, apesar de indesejável, a notícia não foi definitiva. Nunca diremos adeus a Manuel António Pina. Será sempre um até à próxima leitura.
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
Captei, por estes dias, o tom esverdeado das águas do Côa.
O rio esvaía-se, silencioso, por entre o verde/velho dos prados envolventes. As folhas das árvores haviam esmorecido nas quenturas demoradas do Verão findo. Talvez por isso se levantasse, ao lado e sobre a corrente, um verde acastanhado, o verde das ramagens.
Verifiquei, então, o leito do rio guarnecido por alongadas fiadas de choupos entremeados de freixos cuja persistência da folhagem apenas se mantém enquanto garante a presença das cores outonais.
As águas vincavam o vale, ao fundo, um vale carismático e símbolo de horizontes ribacudanos. Enfim, o rio corria sob uma breve brisa que ondulava um mar de ervas resistentes e oriundas da Primavera sinalizado por árvores acastanhadas e sulcado por pedras cinzentas.
Sentei-me, assim, perante o rio, sem palavras, na pele de um visitante compulsivo.
Dentro em breve há-de celebrar-se o inverno ao longo das margens e do rio. O frio sobrevoará o vale. A chuva salpicará as águas. Os regatos e ribeiras farão crescer correntes. A neve e a geada pintarão tudo de branco e as águas engrossarão e seguirão como sempre.
Desejei nestes instantes de observação que o rio se mantivesse isento de poluições e que a mudança de cor nunca fosse outra que não a cor da invernia.
As margens do Côa sofreram, durante séculos, lavras e amanhos intensos mas regressam, hoje, a um emaranhado selvagem, um emaranhado que rejuvenescerá e enverdecerá o inverno e a paisagem.
Dou-me bem dentro destes tons de árvores sem flor, regadas por águas verdes que se amansam no Verão e se braveiam no Inverno. Cuido, assim, do meu intimo e julgo que, cuidar do íntimo, pode ser um dos objetivos da nossa vida.
Sei, portanto, dos segredos destes campos. Conheço-os bem porque já lhes percorri cultivos, matas e prados. Apraz-me encarnar num humilde embaixador destas paragens. Tento defini-las em palavras como se descrevesse um mundo, o meu pequeno mundo.
Estas imagens do rio chamam-me, também, para a ideia de conivência com o inverno que subirá e descerá o vale bordando-o de cores mais verdes.
Enfim, direi que conto, por gosto, o vale e o rio que enverdecem em mim, nesta época e todos os anos. Ambos me acompanham no meu encontro com o inverno, estação de que gosto muito depois de tantas vezes ter sido tocado pelas cores e pelos frios destes sítios.
Levo, então, comigo, quando vou e onde vou, estes lugares como se levasse quadros.
Não levo destas margens milhões de árvores como talvez levasse das margens de um grande rio mas, estas, são as minhas árvores, aquelas que o rio me oferece em sinal de amizade.
Dentro de alguns meses há-de abrir-se a Primavera em árvores e ervas renovadas, em flores novas e selvagens. As águas límpidas serão cercadas e o quadro florido e paradisíaco (de branco sobre verde) ficará completo.
Esta paisagem voltará a chamar por mim nessa época de renovo, quando chegarem Abril e Maio pintados de Primavera, raiados de sol morno e quando os pássaros jovens cantarem pela primeira vez os silêncios do rio.
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
Custa-me a desprender do que escrevo e, por isso, releio, de quando em vez, textos escritos há mais tempo. É como que uma repetição na continuidade. Entre o terminar de um texto e o principiar de outro pode abrir-se a oportunidade de saborear algum escrito mais antigo.
Há dias ao reler uma crónica publicada no Capeia Arraiana, em junho de 2011, tive oportunidade de ler um comentário que lhe foi feito em julho do mesmo ano. Só agora dei por ele!
No Brasil (onde um texto pode chegar!) o senhor Marcelino Júlio leu e comentou fazendo saber que seu avô Joaquim Júlio Monteiro era natural das Cheiras sendo, portanto, meu conterrâneo.
Devo confessar que acolhi com enorme satisfação a referida nota. Desde logo pela sensação de poder confirmar que, desta aldeia perdida no profundo interior português, houve quem partisse para o mundo. Depois porque os que partiram não se perderam deles próprios e continuam a demonstrar interesse pelas origens. Confesso ainda um certo conforto pelo facto de saber que um simples texto chegou bem longe e pôde proporcionar-me o contacto com um compatrício ausente.
Já fiz, evidentemente, alguma investigação perante os mais idosos, nas Cheiras, sobre o senhor Joaquim Júlio Monteiro mas não a suficiente para chegar a conclusões. Tenho, sim, encontrado algumas pistas nas memórias vivas que pude inquirir. Infelizmente elas não foram tão claras quanto eu gostaria. Há-de continuar, portanto, o meu trabalho.
Claro que é, para mim, importantíssimo saber do paradeiro daqueles que, forçados a sair para terras incertas, deixaram para trás o bocadinho de terra plana colada à base de um Monte que foi o nosso nascedouro comum.
Sei que partiram e sei que levaram Portugal dentro deles. Sei que não foram vencidos pelo medo. Sei que, em bom rigor, nunca abdicaram da sua terra e sei, ainda, que eles próprios desejam que ela não seja mais amputada. Mas também sei que a liberdade de viver só é real quando a dignidade existe e enquanto esta conseguir ser irreversível.
Hoje, por cá, o perigo de partir ainda não terminou e volta a andar à solta. Tudo se assemelha, cada vez mais, aos tempos das antigas partidas. Repete-se, hoje, o perigo de Portugal se repartir em vários e diferentes Portugais distintos e desiguais que, em conjunto, integram uma sociedade fragmentada.
Não são boas, não senhor, estas notícias… mas são reais.
No entanto permanecem, na nossa terra, marcas de uma antiquíssima identidade. Isso posso confirmá-lo. Posso também sublinhar que, por cá, gostamos imensamente dos que partiram e reconhecemos-lhes muita coragem na sua tentativa, na sua procura de melhorar vida. Sabemos bem que eles não fizeram coisa pouca, até porque conseguiram ganhar o tempo de um tempo difícil. Desejamos, tão só, que o tempo de regresso não expire. Nunca foram largos os prazos quando se tratou de vencer o tempo e o tempo de esperar pelos que lutam afincadamente na vida nunca foi nem será excessivo.
Todos, então, desejamos que algum regresso ainda caiba na nossa espera mesmo que tal regresso não seja definitivo.
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
Pinhel era uma cidade de enigmas e distâncias situada a quinze extensos quilómetros. Depois da escola, e se a tarde o permitisse, eu ia espreitar a mancha clara do seu casario, lá do cimo do Monte de Santa Bárbara.
Deslocava-me a Pinhel apenas quando houvesse forte justificação e, desta vez, havia. Segui, então, com meu pai escarranchado na parte traseira da mota «Saches» de cor cinzenta, cujo andamento se relacionava diretamente com as três velocidades engrenadas a partir de uma manzeira colocada na extrema direita do guiador.
Segundo ordens expressas de meu pai eu deveria viajar bem agarrado a ele, para não cair. Durante a viagem, observei sucessivamente meia dúzia de aldeias. Algumas cruzei-as ou vi-as de perto. Outras apenas as vi de longe.
A estrada que ligava Pínzio a Pinhel era, nessa altura, de um empedrado esbranquiçado demasiado irregular. Nem sequer tinha alcatrão e desembocava na cidade ao cimo da avenida do Tribunal que era a rua mais larga que eu conhecia. O Edifício do tribunal ainda cheirava a novo e as estátuas, à entrada, serviriam para qualquer coisa que eu não percebia.
Descendo a avenida e após breve curva à direita encontrava-se, do mesmo lado, a sapataria do Sr Pardaleijo, sítio carismático onde foram comprados a totalidade dos sapatos que usei de criança.
Ora, foi precisamente aí, à porta dessa sapataria, que naquela manhã de outono desci da mota apoiando a biqueira numa peça lateral a que chamavam poisa-pés.
Na loja, atrás do balcão, era visível um homem entroncado, vestido de escuro cuja imagem era encimada por um chapéu pequeno e preto. Era o senhor Pardaleijo que nos recebeu, aos dois, como sempre recebia toda a gente, com um breve sorriso e uma leve vénia afagando a aba do chapéu mais que levantando-a da cabeça. Foi ele a soltar a primeira pergunta:
– Ora muito bons dias senhor Capelo. Então hoje por cá? Em que posso servi-lo?
Meu pai ia-me segurando pela mão e tossia para aclarar o cumprimento. Face à pregunta respondeu:
– Bons dias Sr Pardalejo. Venho aqui ver de umas botas para este machacaz.
Ao entrar na loja, segui á frente e fui levantando o olhar para as prateleiras de madeira apreciando o calçado exposto. Havia dezenas de botas e sapatos de tamanhos variados para homem, senhora e criança. O cheiro a cabedal era intenso e fazia-me recordar todas as ocasiões anteriores em que me tinham comprado calçado. Meu pai esclareceu apontando para os meus pés:
– Ainda no início do verão lhe comprei estes sapatos. Mas não há nada que lhe resista. Tem lá o diabo da bola e olhe em que estado já estão!
Tal desabafo obrigou-me a reparar nos meus próprios sapatos que, de facto, estavam bastante desbiqueirados. Senti um quase arrependimento por os ter estragado em tão curto espaço de tempo. Mas que lhe haveria de fazer? Jogar à bola era uma tentação que me transcendia. E meu pai continuava:
– A ver se lhe arranjamos umas botas. Vem aí o inverno e o garoto não pode andar com os pés encharcados.
Enquanto estes comentários o senhor Pardalejo já se lançava na procura de meia dúzia de caixas de cartão branco. Destapava-as e colocava-as em cima do balcão expondo diversas espécies de botas ao mesmo tempo que explicava:
– Olhe aqui estas amarelinhas. Isto é do bom e do barato.
Virando-se para mim inquiriu:
– Não são bonitas? Gostas delas ou não?
Eu, meio encavacado com a apresentação que meu pai havia feito, não pronunciei palavra. Apenas fiz que sim com a cabeça. De facto eram muito bonitas. Eram amareladas de ouro e guarnecidas de preto na biqueira. O senhor Pardaleijo avançou então:
– Vamos lá experimentá-las?
De imediato deitou-me a mão ao pé, descalçou-me um sapato velho e calçou-me uma bota nova. Cada vez eu gostava mais das botas mas meu pai já ia aclarando:
– Não lhe ficam mal, não senhor. Mas isto é um ver se te havias. Daqui a quinze dias estão desfeitas. Não sei que fazer a este garoto depois que lhe comprei a bola!!
O Senhor Pardalejo pôs a cara mais séria que conseguiu, empertigou-se para traz e vaticinou:
– Ó senhor Capelo, você não tire a bola ao rapaz… Eu vou dar-lhe uma solução. O senhor leva este preguinho fininho. Se o garoto continuar a chutar na bola, pega num martelo e espeta o prego na biqueira da bota, para o lado de dentro. Vai ver que ele passa a chutar mais devagar.
Meu pai não evitou uma sonora gargalhada e, a mim, começou a doer-me o dedo grande do pé direito. Por fim, dei comigo a pensar:
– É desta… É desta que vou jogar descalço.
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
A Beira Interior mais próxima da Raia é, sem dúvida, uma zona de escassos recursos a que se aliam diversos abandonos e esquecimentos.
Os montes e as aflorações graníticas que a pontoam caracterizam a imagem de uma parcela de território notoriamente empobrecida que, progressivamente, desertifica.
São múltiplos os factores que concorrem para a fraca rentabilidade das actividades desenvolvidas nesta zona, prioritariamente agrícola embora sejam inegáveis algumas harmonias, algumas compensações e equilíbrios. Mas, o que mais me assedia é a beleza natural que não me parece ser alheia a sensibilidades.
Teria Augusto Gil escrito a Balada da Neve se nunca tivesse experimentado o frio gélido e branco que ajuda a construir os Invernos do Interior? Refiro-me a esse frio que corre entre montanhas e se explana, lá no alto, envolvendo tudo. Quando esse frio desce das nuvens, cobre tudo de um branco imaculado.
De que outra raia montanhosa, de que cores amalgamadas, de que pastos e matagais verdes, de que montes azuis, de que searas amarelas, de que manhãs laranjas e de que entardeceres encarnados poderia ter falado Nuno de Montemor? Que outros quadrazenhos poderia ele ter retratado? Com que outra mentalidade, com que outra moral, com que outra tenacidade, com que dialecto, com que outro contrabandear?
Que outras terras tão quentes e tão frias, tão esquecidas e de tamanho carisma poderia Aquilino Ribeiro ter chamado «Terras do Demo»?
Que outros «Cabeços das Maias» poderia ter escolhido Célio Rolinho Pires ou que outras «Rosas de Santa Maria» poderia ele ter descrito para além destas rosas, plantadas em chãos verdes, florindo em enormes campos primaveris? De que outros chilreares, de que outra passarada tão diversa, de que outros regatos a transbordar de limos, de que outras rãs cantantes poderia ele ter falado?
Como retrataria Paulo Leitão Batista a vida aldeana em «Retractos da Vida Aldeana» se não fosse a especificidade dos hábitos, as culturas e as tradições das terras do interior raiano e como descreveria ele, fora das margens do Rio Côa, as «Rotas Batidas» até aos confins codanos caracterizando gentes, divulgando monumentos, comentando religiosidades, aconselhando gastronomias?
Que dizer, ainda, da variedade da música popular? Refiro os cânticos de Natal, os cantares das Janeiras, as cantigas do Entrudo, os cânticos da Quaresma, os alegres cantos do mês de Maio (mês de Maria) as cantigas dos ranchos de ceifeiras e ceifeiros, dos malhadores, das vindimadeiras e vindimadores e as lengalengas dos homens nos lagares a esmagar as uvas.
Que dizer, também, da vivacidade das desgarradas alegres e picantes?
Onde poderiam ter sido engendrados os «Dramas» e tantas outras formas de representação popular?
Serão, então, estas terras, apenas pobres? Não, certamente, se houver o cuidado de preservar e, até, de rentabilizar as suas riquezas! E parece-me, a mim, que muita desta criatividade interior é susceptível de ter motivação em condições específicas sedeadas na beleza natural e intemporal que alimenta sensibilidades. Acredito, ainda, que tais sensibilidades, mesmo vestidas de silêncios, se deslocam como sombras intranquilas nestes territórios interiores. Mas quando vêm à luz do dia, constituem um verdadeiro conforto.
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
O Padreca era um habitante enigmático e sui generis do meu imaginário infantil. Nunca o pude observar pessoalmente. Apenas dele ouvi falar em criança.
Certo dia estaria o Padreca sentado à luz de um sol amaciado por leve neblina, numa manhã de Outono, na margem esquerda do ribeiro passando os olhos descuidados pelos campos, olhando-os sem os fixar. Seria capaz de jurar que eu próprio o teria visto, tão fortemente se cumularam a minha crença com a minha imaginação.
Das águas do ribeiro ainda hoje se avizinham freixos e choupos frondosos. Ainda hoje, por aí, poisam pássaros irrequietos, a refazerem-se dos voos mais pesados.
A paisagem era uma linha de solidão e silêncio apenas pintalgada pelo piar de alguma ave ou levemente sonorizada pelo empurrar mais impetuoso da brisa pouco atrevida.
Há dias de Outono que são assim, herdeiros de madrugadas húmidas e manhãs pouco claras, muito silenciosos e carregados de melancolia. Os dias assim nascidos parecem conter algo de sagrado. Há décadas atrás, tais dias, mostravam, desde a madrugada, homens e mulheres a denunciar sacrifícios. Iniciavam-se, nessa época, àquela hora, as fainas agrícolas, à hora mágica em que a luz ainda não consegue revelar as cores.
O homem de que me falaram deveria ter cinquenta e alguns anos, um vago perfil de pássaro soberbo e uns olhos invictos, implantados num rosto marcado de rugas. Era assim que eu o imaginava. Chamavam-lhe «Padreca» e era uma espécie de versão mais recente do Zé do Telhado. Roubava, apenas, aos ricos muito embora não conseguisse entregar nada aos pobres porque o que furtava mal lhe bastava para saciar a sua própria fome.
Foi, portanto, numa manhã assim, numa manhã de Outono que tudo passou por um grito:
– Olha o Padreca!!
Á hora do grito a aldeia parecia cansada de si mesma. Descia pela colina abaixo, até ao sopé onde se estendiam as velhíssimas casas térreas. Os rostos das gentes permaneciam mal acordados, quase tão pálidos quanto a própria manhã e as pessoas trabalhavam mais do que falavam. Ao grito de «olha o Padreca» o homem ter-se-ia sentido observado e, no seu olhar, terá nascido uma compreensão fatigada. Terá baixado a cabeça e, como num cumprimento, terá aberto um curto sorriso. Depois examinaria o redor e ter-se-á ficado entre a curiosidade e a preocupação antes de cumprir a vontade de fugir.
Após o alarme criou-se, na manhã da aldeia, uma atmosfera densa e barulhenta, quase perigosa, que fez seguir, à frente e em busca do Padreca, alguns rapazes mais novos.
Correram como quem entra num terreno de jogo. Todas as caras do grupo eram minhas conhecidas e ostentavam a gravidade de quem quisesse aprisionar um homem perigoso. Partiram da aldeia, a correr, como uma tribo de guerreiros com gritos e estratégias a tentar intervir na liberdade do Padreca. No entanto, mantinham-se íntimos e programados, calculados, condicionados por eles próprios, quase hostis entre si embora formando uma banda que não precisava de falar para se entender. Entendiam-se por gestos, por olhares enquanto tomavam a direção do riacho.
Ainda hoje não sei se a esse conhecimento entre eles se poderá chamar amizade!
Mas, nada. Nada disso acabou por valer a pena porque se a principal personagem desta história alguma vez esteve na margem do ribeiro, terá desaparecido como a mais volátil imagem. Consta, até, que, logo a seguir, teria retirado de um cesto de merendas o tacho de caldo que uma patroa, abastada, transportava para os seus assalariados rurais. Logo ali, no meio do caminho e na presença da dona, terá deglutido tanto caldo quanto teria sido capaz. O resto, o que não conseguia comer, que o levasse a dona aos trabalhadores que também haveriam de ter precisão de sustento.
Nesta história, que hoje conto, garanto o reboliço da aldeia não sabendo até onde vai a veracidade no que respeita à presença e à fuga do Padreca. Não sei mesmo se ele esteve ou não na ribeira, se durante a fuga roubou o caldo ou se a sua presença naquele dia foi, apenas, fruto de férteis imaginações.
Contudo, o Padreca de que me falaram foi muito além do meu acreditar de criança e desenhou-se na minha memória como um singular e assustador assaltante de caldos.
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
Passei a primeira quinzena de junho a pensar na viagem de fim de ano. A véspera já foi, para mim, um dia eufórico. Mal dormi a última noite. Acordei, no dia da saída, muito mais cedo do que era preciso. Viajar da serra ao mar era um acontecimento demasiado importante para poder ser calmo.

Ainda hoje consigo descrever o meu vestuário daquele longínquo dia. Vestia uns calções verdes. A camisa era de manga curta e muito mais verde que os calções. As sandálias eram castanhas assim como eram acastanhadas as meias que me afagavam os joelhos. O boné que encimava a minha frágil silhueta infantil era também, em tom castanho e, sobre a pala, na parte frontal, mostrava bordada, uma estrela cor de ouro.
No dia da excursão não iria vestir a bata branca que levava diariamente para a escola. Aliás, nunca gostei de usar tal bata. Ela impedia-me não sei bem de quê. Inibia-me os movimentos. Via-me preso e estranho dentro dela. Adorava os domingos por diversos motivos mas, principalmente, por não ser obrigado a usar bata. No dia da visita de fim de ano não vestiria bata apesar de não ser domingo.
Em casa ficaria a pasta castanha, afivelada de amarelo dourado. Essa sim, adorava levá-la para a escola. Ninguém tinha uma pasta igual à minha. Meu pai tinha-ma oferecido após uma das suas viagens ao Porto. Meu pai negociava em madeiras e deslocava-se mensalmente ao Porto transportando, em camionetas pesadas e lentas, enormes troncos de carvalho. Dizia-me que dos troncos se faziam pipas para o Vinho do Porto e eu achava que devia ser fácil fazê-las porque os troncos já quase pareciam pipas. Mas, naquele dia, em vez da pasta das fivelas douradas levei uma sacola de alça cuja origem se perdeu na minha memória. Deitei-a ao ombro. Dentro ia o lanche. Levei pão com queijo, uma garrafa de refrigerante que sabia a laranja e várias bolachas embrulhadas num guardanapo de pano azul. Levei também uma daquelas bananas tão amarelas que pareciam torradas. Minha mãe comprava-as ao merceeiro ambulante. Numa minúscula carteira, feita de um cartão que imitava muito mal o cabedal, guardei algumas moedas que meu pai me deu. Somadas, perfariam a quantia de vinte e cinco tostões.
Quando cheguei à escola, de manhã, pela mão da minha mãe, já o motor do autocarro rufava em frente à porta expelindo fumo negro. Muitos dos meus colegas já observavam e rodeavam a camioneta. A senhora professora já tinha chegado e quando deu ordem de entrada empurrámo-nos uns aos outros. Depois corremos por dentro do autocarro em busca de um lugar à frente ou, pelo menos, junto à janela como se essa procura fosse a coisa mais importante daquele dia.
Era quase Verão e, fora da camioneta, cheirava a fumo e a gasóleo queimado. Por dentro havia um cheiro quente e enjoativo. Julgo que cheirava a bancos de napa.
Durante o caminho a senhora professora fez muitas explicações, contou-nos muitas histórias e nós também cantámos muitas canções até chegar à Figueira da Foz, frente ao mar.
À chegada saímos atabalhoadamente do autocarro e corremos todos para a praia. A extensão ondulante e o azul marinho inebriavam-me. Depois, segundo as orientações da senhora professora, que a custo se conseguia impor, caminhámos na areia fininha juntinho à água. O mar tinha um odor novo, fresco, húmido e agradável. De mãos dadas, seguimos, na longa praia, mais de quinhentos metros junto à espuma das ondas. A água e a cor azul, o som, o movimento, a brisa e a humidade transcendiam-me.
Ouvi tudo quanto a senhora professora nos explicou. Ela falava-nos, na entoação que muito bem lhe conhecíamos, do mar, de sal, de lágrimas salgadas, de descobertas e também de peixes e pescadores. Acreditei, piamente, em tudo o que ela disse.
Eram precisas mais de mil palavras para descrever o que significou, para mim, estar ali, naquele lugar, solenemente, perante o mar.
O meio dia apanhou-me de surpresa mas, logo junto à água, sacámos das merendas e almoçámos. A seguir, despedi-me do mar, emocionado e tive, talvez pela primeira vez na vida, saudades do presente.
Iniciámos o regresso. Recordo o caminho do retorno. Com espanto e com emoção passei por Coimbra. A professora disse-nos, enigmaticamente, que era a cidade dos doutores. Admirei o movimento de peões e automóveis, estranhei os elétricos a rolar nas calhas, observei estudantes de capa e batina e vi, apenas por fora, a universidade.
Regressei a casa transportando comigo um mar que guardei até hoje na memória e… também na alma.
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
Hoje, à hora que escrevo, ainda é sábado e esta é uma noite de Verão embrulhada em nevoeiro tal como se embrulham algumas noites de Inverno. O escuro entremeia-se de humidade e névoa, sugerindo-me vontade de sossego e paz.
Mas, dentro em pouco será domingo.
A aldeia, aplanada na baixa nascente jarmelista, despertará cedo para uma costumada e imensa onda de tédio dominical. Há-de instalar-se uma confortável melancolia que me livrará de pressas.
Será domingo e terei tempo para contemplar o dia, o Monte e a aldeia e para cultivar o meu sossego e a minha paz.
Relembrarei a emoção subtil de um acordar antigo. Só mais tarde, mais por dentro da manhã, uma determinação absoluta e austera me fará sair de casa e, num instante de libertação, lançar-me-ei num dia de domingo manso, contemplativo e espaçado de silêncios.
Direi sim às coisas aparentemente inúteis e escolherei, por mim, a minha própria forma de habitar o dia. Prevejo que ele nasça calmo e pressinto que se desenrolará nos domínios da felicidade.
O tempo passará com aparência de mais lento, docemente, criando idade.
Sei que devo deixar passar o tempo sem remorsos e sem rancores sabendo, ainda assim, que a passagem do tempo envelhece. Sim, envelhece. Todos envelhecemos desde o momento em que nascemos. Desde o nascimento fugimos do princípio e encaminhamo-nos para o fim. Tudo isto é, tão só, fatalidade. E não, não é triste. É assim mesmo. O importante é conseguir levar os melhores momentos de cada presente, pelo futuro dentro, até ao fim. Não posso deixar de pensar assim e sempre assim pensei. Nada me abalará a convicção de que ninguém nos conseguirá arrancar do futuro sobretudo se iniciarmos cada momento com o mais importante, com o que, em cada presente, for determinante.
Poderemos, então, envelhecer em dias, em meses, em anos mas uma vida plena, congruente e assumida será, de certeza, o melhor certificado que qualquer futuro receberá de nós.
Continuo, sim, consumindo presentes com sabores plenos (alguns deles de origem passada) que não desprezo e nem poderei desprezar em qualquer momento do futuro e penso estar lá, no advir, testemunhando a ruralidade e a sua alma projectada. Os montes, as baixas, as gentes e as aldeias sempre despertarão numa saborosa melancolia.
Sairei amanhã, domingo. Partirei ao reencontro da alegria. Escacarei a solidão desde que aconteça algum reencontro com presenças vivas, com aquelas presenças que, apenas pelo simples facto de existirem, farão recolher as sombras.
E, assim, amanhã será domingo.
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
Era tarde, quase noite e o sol apresentava-se palidamente frio para a época de Verão. Surgia-me, uma vez mais, a urgência de escalar o meu Monte, o Monte do Jarmelo. Assolava-me a tal vontade incontida de verificar as encostas com ervas expostas, de confirmar as moitas desordenadas e as margens das múltiplas regueiras secas a sulcar o chão, embora impotentes e inofensivas. Era mais uma subida, mais uma visita a somar a milhentas outras.

No espaço lá em cima, naquele espaço coincidente com a Antiga Vila, lá onde, em tempos, as velhas ruas se encruzilhavam, irrompem agora rodeiras verdes que ziguezagueiam por entre a ingremidade das rochas.
É um o velho hábito, este, de aqui vir rever o Monte, para o saudar na sua quietude, para, junto com ele, imaginar tempos idos e para lhe averiguar a mutação do revestimento vegetativo.
Lá, nas alturas, um pouco abaixo do enorme marco geodésico persiste, ainda, alguma urbanidade. Para além das novas instalações da Junta de Freguesia e da Casa da Câmara, resiste ao tempo um velho campanário que continua a convidar os fiéis a entrar nas duas igrejas, convictas, onde os jarmelistas continuam a rezar. Os naturais do atual Jarmelo mantêm, no essencial, as mesmas características dos naturais do antigo Jarmelo. São gente que sempre se persignou numa fé sem dúvidas e é detentora de uma devoção e de um respeito isento de qualquer desconcerto.
Para além dos ténues sinais urbanos, quase tudo são ruínas. Mantêm-se restos de paredes destruídas, algo altivas e tristemente medievais, que impõem o silêncio da pedra e a perfusa dispersão da solidão. Mas nutrem-se, ainda, neste local alguns sentimentos anacrónicos dos escassíssimos habitantes da base do Monte completamente dados a efemérides.
O Jarmelo, acabou por sucumbir, ao lado de um passado histórico que continua a servir de pretexto para metáforas e alegorias. Na recordação dos amores de Pedro e Inês relembra-se a possibilidade de amores impossíveis.
As velhas casas, quase desfeitas, inundam-se de silêncios rudes e de ásperos esquecimentos ainda que deixando transparecer escassos sinais de uma Vila antiga, alta, volátil e trágica que, agora, se expõe em ruínas e recordações patrióticas, envolta numa melancolia amadurecida pela resignação dos séculos. São, sim, vestígios que não querem nem podem desistir da altura do monte, intrometido no céu, com um cimo aclarado pelo marco geodésico. De resto o cume do monte é esbelto, moldurado à imagem de dois seios de mulher, muito belo e sensual.
Este sítio testemunhou caçadas e estadias reais, numa terra com tradição de caça. Presentemente é um lugar de palavra pouco ouvida, virado para dentro dos seus próprios limites serracenos num território abençoado por história e lendas.
Por aqui se crê no milagre do sol em tardes de Inverno. Por aqui se grita verde até às securas do Verão e, sendo embora sítio de olvido, ainda é possível acreditar que algo de bom ou de mau possa acontecer.
Povoam ,ultimamente, o Monte, um conjunto de estátuas alusivas ao assassínio de Inês de Castro. Lá no cimo, à entrada da Vila, num quase paraíso para o olhar mas vencendo infernos de calor estival ou resistindo a invernos gélidos e ventosos as estátuas parecem conversar entre elas, em pose lenta, ensaiando a explicação do sucedido há vários séculos. Elas ligam o Monte a ele próprio através da história, trazem o passado ao presente e reforçam o carisma destes sítios provando, também, a arte, a criatividade e a sensibilidade jarmelistas visto que o escultor é natural do Jarmelo.
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
Dispersam-se, por todo o território vulgarmente denominado por «Interior Beirão», pequenas aldeias, despojadas de habitantes e em marcha acelerada para a completa desertificação. À primeira vista Peva, distrito da Guarda e concelho de Almeida, poderia ser, apenas, uma delas.
Peva é uma pequena povoação, situada na banda poente do extenso planalto do Côa, algo afastada do rio (já sem o conseguir enxergar) e um pouco arredada das profundezas ribacudanas. Em vez do Côa esgueira-se-lhe aos pés, do lado poente, a Ribeira das Cabras, mais pequena que o rio mas igualmente curvosa, cujo leito se adensa de pedregulhos a espreitar acima da corrente das águas.
Os incêndios têm devastado as margens da ribeira fazendo das encostas circundantes escarpas despidas, cinzentas e desoladas. A única e estreita estrada que se aventura a trepar a altura do planalto, a poente, provém de uma aldeia vizinha, a Atalaia, e atinge Peva por uma entrada secundária.
Peva expõe-se, portanto, alta e plana, servida de ligações rodoviárias, com acesso à autoestrada, para leste, a pouco mais de dois quilómetros, oferecendo a possibilidade de ser visitada por quem goste de se perder na procura de sensações fortes em territórios de famas apagadas, ainda que muitas das vezes, de forma injusta.
Pode, então, chegar-se à aldeia pela sua principal entrada, isto é, do lado nascente, oposto à ribeira. Desse lado não é tanta a ingremidade. Ultrapassa-se uma curta zona verde de pequenos lameiros e de velhos e sombrosos freixos. A seguir entra-se no pequeno povoado e fica-se com a ideia de que, apesar da sua origem se ter perdido no tempo, ainda não está moribundo. São algumas as construções recentes a casar-se com um estilo denunciador de antiguidades, um estilo granítico, sóbrio, tipicamente beirão e razoavelmente conservado. Circula-se, depois, por ruas estreitas até se dar com uma construção maior com ares de instituição. É o Lar da Associação dos Amigos de Peva.
Ora, numa aldeia pequena, uma instituição de tal dimensão, não deixa, per si, de surpreender. Quem entre no território da Associação verifica um exterior vedado e cuidado. Depois surge o edifício, com um interior moderno, pensado de forma prática, bem adaptado aos utentes e decorado com gosto. O rasgar das extensas janelas e vidraças permitem aos utentes sensações específicas simulando-lhes um ambiente exterior, saudável e campestre ainda que permanecendo, comodamente, no interior do edifício.
É frequente avistarem-se, de dentro, a execução de trabalhos agrícolas, vacas a pastar ou pastores a pastorear.
A própria construção circundou um jardim que, assim, se tornou interior contendo um pequeno lago e uma oliveira centenária.
Se eu tivesse que qualificar este contexto diria, muito simplesmente, que se trata de um ambiente «anti stress». Ao constatar-se a existência deste local, pode falar-se de um lugar ideal para quem, depois de uma vida rural de trabalho duro e desgastante, queira manter, na velhice e na alma, a essência de muitas das vivências passadas.
Isto é o que diariamente nos é dado observar. Mas, uma das últimas visitas a minha mãe, para quem escolhi a agradabilidade que descrevo, coincidiu com o dia de S. João. Já fui, por aqui, surpreendido com festas e convívios mas, hoje, adivinhava-se algo diferente. O jardim interior estava transformado numa esplanada onde predominavam ocupantes idosos. Havia mesa posta e lanche a condizer disponível a residentes e visitantes. A animação e a festa eram características do S. João. Não faltava música e baile nem a montanha de rosmaninhos com o boneco de braços abertos, hirto e içado ao alto, num pau estreito, insinuando a dispersão de odores que, aliás, veio a suceder, após a queima das ervas no decorrer da festa. A exalação perfumou e purificou ares, gentes e edifício.
Claro que não é possível passar ao lado de tudo isto. É evidente que não se pode ficar indiferente. É impossível não prever aqui, na direcção desta instituição, uma enorme dinâmica e muito mais que isso. Adivinha-se, também, muita lucidez no traçar dos rumos. Puramente surpreendido, não posso deixar de dar os meus parabéns.
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
Descrevo o que sou descrevendo o que sinto. Descrevo-me, portanto, nas palavras que escrevo.
Descrevo-me retratando vidas, contextos e ambientes construindo narrativas sobre vilas e aldeias antigas, sobre vales e sobre os montes que os cercam.
Existo em palavras de vento e frio, em palavras de neve, geada e névoas, em palavras de sol e calores excessivos, em palavras de cor verde/natureza, em palavras de sabores e odores inócuos e campestres.
Descrevo-me na calma clara das noites de luar e na morna atmosfera das noites estivais. Descrevo-me também nas tempestades que empurram o Inverno. Descrevo-me, ainda, quando escrevo sobre as verduras primaveris ou sobre castanhos outonais.
Descrevo-me no nascer avermelhado das manhãs e no crepúsculo alaranjado do sol-pôr.
Descrevo-me na admiração de montanhas, na contemplação das fundas ravinas que as separam e na gostosa observação das curtas planuras que as intercalam.
Descrevo-me nas maneiras de ser, nos saberes ancestrais, nos hábitos seculares, nos gostos e nas preferências, no trabalho e na alegria, no sofrimento e na dureza, no rigor e na seriedade, enfim, nas vidas das gentes do Interior profundo, encostado à Raia onde nasci e onde partilhei, partilho e partilharei a maior parte da minha existência.
Descrevo-me, assim, na tradição, nas lendas, nas estórias e na história destas terras, nos castros, castrejos e castelos, nas ruas e praças, nas capelas e igrejas, nos monumentos, no antigo e no presente de gente simples e franca, nas festas e romarias, nas diversões, na religiosidade, nos esquecimentos e nos reconhecimentos e também nas palavras de esperança de quem acredita assim como me descrevo nas palavras de amor de quem gosta e de quem ama.
Descrevo-me em palavras de céu e luz, em palavras de noites ou de dias e, ao descrever-me, transformo-me nas palavras que escrevo.
Descrevo-me em palavras de alma cheia que encontro ao fechar os olhos quando quero ver melhor.
Descrevo-me escrevendo de alma exposta e, tudo quanto escrevo, assume em mim uma força interior e infinita que me faz erguer e me faz existir.
Sinto, por isso, que vivo e toco o que vivo, em função do que escrevo. Tudo o que escrevo é tudo o que, para mim, existiu e existe ao alcance do meu sentir e, enquanto escrevo, obtenho a certeza de escrever sobre um mistério de beleza difícil de descrever e custoso de desvendar. Um mistério impossível de existir e, paradoxalmente, de existência verdadeira.
Foi no seio desse mistério que nasci, que me moldei e é nele que me apresento a este presente em que escrevo. Descrevo-me, portanto, tentando descrever tal mistério.
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
Um destes dias (de uma Primavera tardia que parece querer disfarça-se de Verão) fui chamado, pela festa, a Castelo Mendo e tive oportunidade de me sentar em sítio propício à observação. Surgiu-me, assim, pretexto para contar e, o que a vista me ofereceu, levou–me a começar por «era uma vez».

Era, então, uma vez uma aldeia de pedra, muito antiga e muralhada. As ruas eram estreitas e curvosas. O chão era de granito irregular. As casas eram pequenas e sóbrias e com telhas de barro castanho/avermelhado. As portas das casas eram baixas e as janelas desenhavam pequenos quadrados enfeitados com vasos de flores. Entrava-se, na aldeia, por uma porta rasgada na muralha.
À entrada o largo com tílias grandes e sombrosas ajudava a construir um cenário que me trouxe à memória os contos de fadas e os livros de leituras infantis.
Num olhar mais largo, confirmavam-se, no horizonte, as escarpas da margem esquerdina do Rio Coa que ali se abria, abruptamente, num vale (qual clareira entre montes) às portas do concelho de Almeida. No centro do vale empolava-se uma colina, que tentava, sem conseguir, equivaler-se às alturas circundantes. A orlar o cimo da colina surgia, sobranceira, a antiquíssima Vila de Castelo Mendo, qual página histórica, escrita de lutas e defesas antigas. Há, de facto, supremacia das alturas sobre o chão do vale e a durabilidade granítica das muralhas ainda decora e preserva o ambiente medievo provando resistências de outros tempos.
Da aldeia, olhando em redor, observam-se encostas e cumes pontuados de rochas cujos intervalos se enchem de ervas, giestas, carrascos e carvalhos, estes com folhas achatadas, elevando-se a cima da restante vegetação e crescendo para além de si mesmos. Agora, em época de Primavera, as giestas baixas e coloridas pelas maias pintam os campos lembrando extensos jardins amarelos a perfumar ambientes primaveris. Havia, claro, algumas (poucas) terras cultivadas, bastante próximas do rio verde que descansa na passividade calada do vértice fundeiro do vale.
A aldeia apresenta-se, assim, ao visitante, como uma proposta agradável, impressa numa extensa página de natureza e oferecendo, primeiro, a muralha, depois as três igrejas, o pelourinho, as casas, as ruas e os pequenos largos, tudo enraizado na época medieval. A modernidade acrescentou-lhe, já, um pequeno museu de arte sacra, um café, um bar de uma associação e algumas casas de turismo rural.
Da Igreja de Santa Maria, a mais alta, em ruinas, surgem espetaculares vistas sobre o Côa e os olhares podem, então, perder-se seguindo a estreiteza e a austeridade das margens, lá por onde se distendem as águas do rio, mansas este ano, numa direta relação com a fraca intensidade das chuvas.
Castelo Mendo é uma aldeia histórica, no verdadeiro sentido da palavra, que não disfarça profundas antiguidades. É sitio onde a história lançou raízes e, agora grita memórias guardadas em cada monumento, em cada recanto ou, até, entre as sombras.
Permito-me comparar esta a outras aldeias deste interior profundo, encostadas à raia, que me fazem lembrar pérolas dispersas a exalar perfumes históricos.
O prazer que obtenho ao percorrer estas aldeias e ao perder-me de sítio em sítio como se procurasse histórias ou lendas do meu próprio imaginário é, de facto, difícil de descrever.
Durante o ano Castelo Mendo veste-se de festa várias vezes e regressa a vários passados, uns mais profundos que outros. Na festa de treze de maio vai, apenas, até meados de século passado mas, com a Feira Medieval, regressa ao século XII. Neste evento anual recriam-se culturas, usos e costumes antigos, ceias e torneios medievais e a aldeia enche-se, de personagens vestidos a preceito num imperativo retorno a toda a antiguidade da terra.
É, então, daqui, desta observação, de hoje, que me atrevo a propor uma visita a esta raia de castelos e muralhas, de cor verde/amarelada e, sempre, prenhe de história.
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
Há abismos que as chuvas de abril e maio não atestaram nem o sol da Primavera consegue aclarar quomodo são cavados entre a realidade e o desejável.
Há, de facto, abismos que se abrem entre o que se ouve, entre o que nos explicam nas televisões, rádios ou jornais e a vida que, paralelamente, vivemos.
Não há, então, um só abismo. Há vários… Há a abismal ousadia de dizer (alguns dos que, tranquilamente, dizem) que estes dias, abismais, ainda não são os piores dias.
E há, claro, um abismo profundo entre os que pensam (sem nada dizerem) e aquilo que alguns imaginam que eles podem, realmente, pensar ou dizer. Poder-se-á, para esses, imaginar maiores desgastes físicos e emocionais?
Eis, assim, um outro abismo feito de angústia e de escassez de esperança. Se eles falassem (os que nada dizem) falariam, certamente, do excesso de angústia e do défice de expectativas.
Entretanto vão-nos dizendo (alguns dos que dizem) que sim, que nos entendem e que nos escutam. Mas o que eles dizem entender não é o que lhes é pedido. O que se lhes pede, o que se lhes exige são novos dias para quem, há muito, espera um novo dia. Há, aqui, portanto, mais um abismo entre o que é pedido e o que é concedido.
Há, ainda, quem diga que não, que não nos entende, que não consegue perceber o que nos aflige, que não se pode ceder e que, muitas das queixas são fitas e, até, podem ser chantagens. Mas a maioria dos queixosos pensam como quase todos embora, sim, seja verdade que há um quase que falta ao todo e esse quase pareça concordar com quem fala de fitas ou de chantagens.
Eis, então, exposto, um outro abismo. Este, não entre mandantes e mandados, mas entre nós e nós. Entre o quase que falta ao todo e os que temem um fim indigente. Entre os aflitos e os que chamam aos aflitos fiteiros ou chantagistas. Entre os tementes e os que, prefasiando alguns dos que mandam, falam de oportunismos.
Ora, definitivamente, não. Não é o ritmo nem o tom das conversas (dos que dizem) que nos convencem, que evitam o desespero que nos desconcerta, que nos isentam do que nos deprime, que silenciam o que nos atordoa, que nos aplanam abismos.
Ainda assim, talvez quem manda deva reflectir. É que há ainda uma outra espécie de abismo. O abismo aberto entre o comportamento de quem ordena e a reacção daqueles de quem se espera que obedeçam. Quem manda nem sempre demonstra muita cultura democrática, sobretudo quando tenta calar (apesar das angustias e dos défices de expectativas) manifestações de desagrado com intimidações exageradas.
Esse é, afinal, o mais perigoso dos abismos. É o abismo fundeado na degradação da democracia. E, claro, assim sim, poder-se-á caminhar para dias ainda mais difíceis se não for aberta a possibilidade de ouvir os argumentos de quem interpela, daqueles que, no fundo, também têm o direito de dizer e, até, de anular, de aplanar abismos.
Há, pois, quem revele desprezo e insensibilidade suficientes para fazer desejar séria avaliação independentemente da ideia que se tenha do conceito de razoabilidade.
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
Têm sido risonhas as madrugadas e soalheiras as manhãs. As tardes, velozes e secas, têm cruzado um ano fazedor de história em matéria de falta de chuva. Os serviços meteorológicos têm insistido na necessidade de recuar, profundamente, no tempo e na história das medições para nos garantir que, um ano assim, só há mais de oitenta anos.

A meteorologia estuda, evidentemente, a orientação do vento, a qualidade do ar, a força e a frequência de eventuais tempestades. Compara a escassez de humidade com chuvas diluvianas e conclui que, neste ano, é quase certa a continuação da seca.
Uma sondagem recentemente divulgada confirma que mais de trinta por cento das conversas têm começado pelo assunto do tempo. Eis, portanto, a prova de que a seca tem sido motivo de aflição tal como têm sido aflitivas outras adversidades (porventura económicas).
Os velhos do interior raiano, esses eternos e verdadeiros conhecedores do tempo, observam exaustivamente as centenas de sinais que indicam no horizonte a eventual presença ou ausência de chuva. Consideram tais indícios pequenos tesouros, pormenores de luxo, que constituem base de referência para as suas previsões. Têm concluído que a seca vai continuar.
Pouco antes da minha quase diária volta do fim de tarde, ofereceu-se-me um horizonte dilatado pelas alturas. Também eu me baseio no que tenho bebido da sabedoria popular, decalcada de deliciosas histórias e de algumas vivências de infância em manhãs e tardes que, ora passadas, se me representam na memória. Também eu tento interpretar sinais, ler futuros de chuvas, saber dos calores ou dos frescos, analisar húmidos detalhes. Também eu tento tornar útil o meu conhecimento. Concluo (verdade provada) que este é um ano mau, até no tempo!
Ora, se as preocupações já sobejavam, junta-se-lhes, então, um tempo de amarga secura.
Hoje, tarde de terça, dia de março quente com o dialho no ventre, olho o horizonte e só as palavras simples me motivam. A simplicidade ajuda, claro, seja qual for a matéria, seja qual for o tema, seja qual for a luta.
Constato, portanto, a realidade da vida e (re)olhando o horizonte, ausente de chuva e prematuramente primaveril, reconheço a dureza da seca e a dureza da vida, tantas vezes um quase prematuro inferno!
Mas não, nem tudo pode ser mau. A Primavera está no seu início. Por coincidência (feliz) cruzou-se, recentemente, com o dia nacional da poesia , 21 de março. Ora, a poesia é síntese do real e pode ser síntese do tempo. Limpa a realidade de pequenez e de imbecilidade. Não será, portanto, de admirar que a poesia melhore o tempo. A sua força é imensurável! Florbela Espanca esclarece que a poesia faz os homens maiores do que os homens.
Então que o ar poético da Primavera, ainda que sem chuva e sem muitas nem difíceis palavras (essas poderão soar-me a lugar comum) seja uma espécie de cura. Que nos tranquilize. Que nos componha um pouco a vida.
Valha-nos, ao menos, o ar poético primaveril.
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
Na sua extensão raiana o Interior pontua-se com pequenos povoados, sóbrios e graníticos, que sobem os montes e decoram os vales. Pouquíssimos habitantes ocupam, ainda, esta faixa cuja população mingua velozmente neste enigmático início de século. Trata-se, no entanto, de gente que armazena na memória saberes e sabores infindáveis.

Falo de pessoas e sítios de encanto. Lugares onde a história deixou marcas e onde as gentes (de boa fé) amalgamam história e lendas.
Mas, nestes lugares de que falo, vivem-se, em cada presente, tempos etiquetados com ausências. Apagam-se, em cada dia, hábitos e tradições. Têm vindo a esmorecer os seus mais carismáticos ambientes e contextos. Urge, portanto, salvar o que, ainda, for possível.
Esta zona, vizinha de Espanha, é terra de invernos excessivos e verões escaldantes. Ora, tais contrastantes evidências, condicionam e sugerem alimentação a contento.
Por outro lado, o moldar da história tem dependido (consideravelmente) da alimentação e, esta, tem vindo a adaptar-se a condicionalismos históricos vencendo dificuldades e diminuindo desigualdades. Eis, portanto, onde me parece morar a razão pela qual a criatividade tem progredido no ensejo de superar carências e limitações.
Aceite-se, então, a evidência de que a utilização da tradição alimentar pode gerar dinâmicas e, eventualmente, (re)constituir recursos regionais ou locais.
Claro que é possível lançar interesses e, até, curiosidades susceptíveis de constituir fortes motivações para quem visite ou pretenda visitar.
Também não escasseiam enormes paixões que intimam os naturais a regressar definitiva ou temporariamente. Só não sobeja , por enquanto, quem arrisque aproveitar tradições (seiva deste povo) para as difundir, tornando-as rentáveis. Refiro-me, concretamente, a potencialidades gastronómicas, capazes de constituir motivação de visita ou regresso sendo certo que há sabores só possíveis de comprovar em contextos e lugares próprios.
São, portanto, reais os desafios.
Aqui trago, hoje, servindo de exemplo, a «morcela doce».
Em toda a zona jarmelista os sentidos podem ainda abrir-se para o sabor (já algo suspenso) desta morcela especial. Sabor que me surge, a mim, tão natural como o frio do inverno ou tão doce como o quente calor da lareira, companheira perene das noites inverniças.
Poder-se-á, então, incumbir a “morcela doce” de alguma missão mais importante?
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
Não, não nos foi perguntado. E, em qualquer caso, ser-nos-ia escusada a resposta. Forneceram-nos, sem facultarem hipótese diferente, as orientações do que usam chamar «Troika». Regras de sabor amargo. Ordens duras, muito duras de roer.
Vão-nos prometendo para «depois» a suavidade dos mercados. Para um «depois» vago e abstracto. Mas, dos mercados viemos nós…
Dizem-nos (aos que vivemos do nosso trabalho) que abusámos, que fizemos gastos supérfluos, que exagerámos em festas e festanças, que deveremos trabalhar e poupar, que teremos, agora, de expiar. Só expurgados poderemos voltar ao paraíso, ao tal paraíso perdido, também chamado «depois». Será, portanto, obrigação, nossa sermos duros, fortes e resistentes, sem sombra de pieguices.
É evidente que nos tratam assim por empatia, porque não suportam ver-nos mal, porque não nos abandonariam, porque nunca deixariam o navio na hora do naufrágio. Informam-nos de que o benefício é nosso e os custos e os prejuízos são deles. Altruísmo puro, portanto!
Então, não! Não se deve pedir em demasia a quem decide por nós, a quem aplica ou indica políticas em nosso favor, políticas com impacto direto nas nossas vidas. Pelo contrário, será de lhes pedir que não se esforcem tanto.
Ora, eu, sou um dos tais cidadãos (vulgares) responsáveis pela crise, que gastei demais, que fiz festas e festanças e que não conheço soluções. Por isso (sei bem) deveria estar calado. Não deveria questionar o altruísmo dos eleitos. Mas, enfim… são só duas perguntitas que me vêm remoendo!
Então e os ordenados de milhares? Bem sei que são, só, para alguns, para os melhores, para os excepcionais. Mas, mesmo assim…
E as reformas em triplicado? E os que se reformam com meia dúzia de anos? Que diabo? É que a diferença ainda é grande! O cidadão (vulgar), sim, o que provocou a crise, o que ganhou e gastou demais, esse, deverá descontar a vida inteira ou, talvez, morrer a trabalhar.
Que não se peça, pois, em demasia. Nada de incómodos excessivos, claro. Mas, ainda assim, se me fosse permitido, sempre apresentaria uma simplíssima sugestão: que todos tivessem um só emprego e uma só reforma, que todos se reformassem com o mesmo número de anos de trabalho e que os melhores não ultrapassassem o tripulo dos ordenados médios.
Sim. Pequeníssimas coisas que até um cidadão (vulgar) se atreve a sugerir. Nem precisaríamos, sequer, de excessos de moralidade mas, apenas, de alguma solidariedade. Ou não?
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
Na sua dança namoradeira ao redor do Sol, a Terra rodopia fascinada por luz e energia. Nesse incessante movimento vai captando forças que as nuvens reflectem e a atmosfera amortece. Portanto, nem toda a energia emitida pelo sol, inflecte na superfície terrestre. Só parte dela se disponibiliza perante a inteligência humana sob forma de luz (visível ou não visível).
O homem, único habitante pensante do nosso planeta, decidiu apelidar de «energia solar» toda essa força oriunda do sol, passível de ser transformada noutras energias como a eléctrica ou a mecânica.
Também as plantas, no processo fotossíntese, (realizado por seres vivos clorofilados) obtêm proveitos da energia solar. A fotossíntese das plantas verdes converte a energia solar em energia química, que produz alimentos e madeira da qual hão-de derivar combustíveis fósseis no seguimento de um circuito que poderemos chamar perfeito.
A radiação sol aliada à energia eólica e às ondas do mar, responsabilizam-se por grande parte da energia renovável disponível à face da terra.
Os raios solares perfuram e repassam a atmosfera, vão ao encontro dos oceanos fazendo aumentar, nesse embate, a temperatura das águas. O ar quente há-de conter a água evaporada que subirá, provocando a circulação e transferência de energia calorífica na atmosfera. Quando o ar atingir uma altitude elevada, a temperatura baixará e o vapor de água condensar-se-á e formará nuvens, que provocarão precipitação fazendo regressar a água à Terra completando, assim, mais um harmonioso ciclo.
O calor da condensação da água aumenta e transfere energias criando fenómenos atmosféricos como o vento.
É evidente que a fotossíntese inicia grande parte das cadeias alimentares na Terra. Sem ela, animais e outros seres não persistiriam visto que a base da sua alimentação é substância orgânica oferecida pelas plantas verdes. Assim se verifica novo circuito que se encaixa e harmoniza no universo onde, milagrosamente, encontros, circuitos e ciclos energéticos se evidenciam perfeitos e determinantes.
Contudo, apenas uma pequena parte da energia solar disponível acaba por ser utilizada.
Então, que o engenho do homem invente novas e aperfeiçoadas técnicas e que a mudança de mentalidades se alie á criatividade proporcionando mais e melhores utilizações de energia solar porque, assim, a humanidade só poderá ganhar.
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
Sentei-me silencioso. Aproximei-me de um rádio com a minha idade. Supus que ele me pudesse oferecer recordações. Precisava de alimentar a alma. Mas o velho rádio não colaborou. Propunha-se emitir músicas para além das que eu pretendia e, assim sendo, no preciso instante da sintonização, carreguei no off. Definitivamente, não encontrava o que procurava.
Olhei, então, pela janela quiçá buscando compensação exterior. A caixilharia substituída recortava a paisagem. Os caixilhos eram novos mas o formato da janela era antigo e os vidros eram muitos e pequenos. A janela, propriamente dita, essa, era muito mais velha que eu e do que o rádio que tinha a minha idade.
Vi, então. Vi montes de pedra e de verdura e vi outros montes esbranquiçados com a lonjura. Mais próximo vi campos. Não estranhei. Apenas estremeci perante a constatação, evidente, da mudança do mundo rural.
Só podia, então, meditar. Naveguei em pensamentos ainda que sem música de fundo.
E sim, ainda existia mundo! Mas mundo rural? Não tão rural quanto já o conheci. Seria, ao menos, agrícola? Nem por isso, concluí.
Já quase se extinguiram as imagens, já quase se calaram os sons, já se desvaneceram os personagens.
O silêncio apagou a sonorização desse mundo. Refiro-me aos sons (e até imagens) dos amanhos da terra, ao «traz traz» da enxada, ao batucar do malho, ao som surdo da marreta, às vozes de comando, às ordens dos lavradores (vira laranja, põe-te ao rego castanha, toma aqui galante). Perderam-se esses sons!
Ter-se-á perdido, definitivamente, esse vocabulário?
E os sons dos rebanhos e das cabradas, o ladrar dos cães? O que foi feito desses sonoros ambientes? Por onde andarão os seus atores?
Certo é que também não ouço sons modernos. Não escuto os sussurros dos tractores agrícolas, o «toc toc» dos motores de rega. Esvaíram-se águas, terras e máquinas?
Por onde andarão os sons das perdizes, dos corvos, dos mochos, das corujas, o chamar nocturno das raposas com cio? Onde foi que se recolheram esses sons?
Mantêm-se, sim, os sons eternos da natureza, os sons dos cerros, dos montes, os sons da chuva e do vento, o som da água que, mesmo sendo menos, ainda salta das fragas. Mantêm-se e revelam-se-nos as veredas, os lugares para além do que estamos perdendo lá onde irrompe um rural que já não é igual.
Mas, por mim, desejo ardentemente, que algum dia, surja novo mapeamento. Quero crer, claro, que poderemos voltar a falar de rural e de um agrícola (diferente) porque ainda não é hoje o fim do mundo.
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
Perdoe-me, o estimado leitor, esta conversa tão ao correr da pena mas deixe-me dizer-lhe que a felicidade pode advir de um «quase nada».
Direi, em consequência, que, apesar da vida que nos consome, não é bom extinguir rasgos de esperança. Preferível será, aproveitar o simples e o natural como produtores de felicidade.
Pensando bem encontraremos prerrogativas. Temos, de fato, privilégios incríveis, susceptíveis de motivar felicidade pura e simples.
Quando, no mundo que habitamos, damos com quem seja feliz sem motivo bem visível costuma comentar-se: «está feliz por ter nascido».
Ora, ainda que assim não pareça, é mesmo isso que faz falta. É essa felicidade simples, sem motivos (aparentes), que promove a vida, alimentando-a em sucessões de meros momentos felizes.
Vendo bem, ter nascido e permanecer vivo é já uma enorme sorte por entre outras hipóteses. É, já, um enorme privilégio desfrutar o universo, o céu e a sua imensidão espacial, as estrelas, a terra, as montanhas e as planícies, o mar e toda esta harmonia inalterável. Nada mais belo que ver o sol renovar-se em cada dia, observar os campos, as flores, os animais, sentir a vida, pressentir os sons e odores da natureza, escutar o vento, as aves e as chuvas.
Será sensato esquecer tudo isto em favor de grandes ambições, de ambições desmedidas que, bem vistas as coisas, não passam de supérfluas?
Valerá, então, a pena parar para escutar, parar para olhar e, sim, aproveitar.
Desfrutemos antes que tudo se apague em silêncio porque mais depressa do que estamos preparados cessará a oportunidade de estarmos vivos. E, depois… findaremos. Ninguém mais se lembrará de nós. Ninguém se recordará que existimos e, ainda que alguns se recordem, esses, desaparecerão também. Assim, desapareceremos nós definitivamente.
Então, o mais importante, o verdadeiramente mais importante passará com extrema rapidez. Passará de forma incerta e inexplicável.
De resto, tudo na vida, mas mesmo tudo, será rápido e sem consequências. A única consequência importante é a própria vida, a vida que conseguirmos viver.
Não se pode, portanto desperdiçar qualquer pequena/grande felicidade nem deixar de utilizar, em qualquer circunstância, a sorte de viver.
Assim cumpriremos, com o universo, o dever (evidente) que ele nos merece, o dever de gratidão.
E hoje, estimado leitor, a minha crónica é, muito simplesmente, assim.
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
Não temos, no Interior Raiano, a grande cidade nem a cómoda diversidade das suas ofertas. Temos, sim, o primor da natureza.
As encostas vestem-se de arvoredos ou ampolam-se de granitos cinzentos que a água chovediça lava, o vento seca e o sol escalda.
De uma qualquer rocha ou da mais vulgar húmida junqueira pode nascer e crescer um regato que escorregará em declives até descansar numa qualquer baixa. Regará hortas e pastos e ajudá-los-á a enverdecer. Alguns desses ribeiros engrossarão e transformar-se-ão em riachos seguindo em linhas de água azul, entre fragas. Alguns crescerão mais ainda e serão rios que, em percursos mais alongados, se lançarão sem medos nem sobressaltos, ultrapassando abismos e dormindo, apenas, em curtas partes do leito.
Por toda a parte há giestas e tojos que se ondulam ao vento, abrindo passagens ao pouco gado, sobrante dos antigos e compactos rebanhos.
As nuvens repassam-se de sol e luz, rendilhando os céus em cardumes brancos de pedaços de algodão que, quando escurecem, se desfazem em água.
O nosso horizonte é cercado por agudas escarpas que, no limite da vista, se afundam nos céus.
Temos ravinas profundas de onde se não enxerga nem mar nem terra, apenas se avistam pequenas partes do firmamento. Temos alturas vertiginosas que fazem crescer horizontes.
As Primaveras são floridas de mil flores com o calendário dos perfumes sublinhado nas maias do mês de Maio. A sobreposição amarelada das maias antecipa o cheiro azul e inebriante do rosmaninho São Joanino em cada mês de Junho.
Os Verões são quentes, carentes de humidades com dias torrados de sol e noites clareadas de lua.
Os Invernos são axadrezados de neve e gelo, com dias escuros e noites pretas.
Os Outonos são maioritariamente castanhos mas vestem-se, também, de outras cores igualmente belas, igualmente sóbrias.
Temos paisagens em tons plurais que nos explicam, em permanência, o verdadeiro significado do dito de Torga: «Devo à paisagem as poucas alegrias que tive no mundo».
Não temos, portanto, a grande cidade mas temos este aconchego em que os olhos se demoram, e os sentidos se reflectem. Temos a natureza que nos infringe amor pela terra que nos deu vida, terra que transportamos no âmago, que nos inspira contos e lendas e que nos garante enormes paixões. Fica-nos o coração pequenino diante de cenários de flores e ervas, de árvores e arbustos, de rochas e campos, de altos e baixos, de calores e frios e, secretamente, desejamos que tudo assim seja, que tudo assim se mantenha.
Aperta-se-nos o coração nas despedidas porque, muitos de nós, somos de viagens longas e de ausências demoradas apesar de nunca menosprezarmos o regresso.
Se partimos é como se deixássemos o campo em pousio, para virmos mais tarde, transbordando de saudade, amanhá-lo, como quem não queira perder o jeito à enxada.
E não conto, claro, nada de novo, nada que o estimado leitor não saiba ou conheça. Tenho apenas o prazer de contar.
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
Há pouco, muito pouco, há escassos dias, assistimos aos minutos iniciais de um novo ano. Será (assim julgo) um ano importante que precisamos e desejamos vencer.
Ora, no ano findo, a crise, apesar de avisada, chegou e trouxe perplexidade, como se chegasse de surpresa, tal foi a sua magnitude. Houve quem não quisesse acreditar nela mas, como em tudo na vida, ignorar não é evitar e ela aí está, implantada e recheada de angústias.
Vencer esta crise é como vencer um campeonato do mundo de futebol, tão grande e tão geral é a sua amplitude assim como é enorme a ansiedade instalada.
É importante entrar no ano novo com o pé direito e julgo que é geral a vontade de ver com atenção os momentos iniciais do jogo. É como se, logo ali, tudo se decidisse.
Assim meditando, segui a linha do rio recordando passados recentes (apenas de aparência sólida) que se esboroaram num futuro repentino e diferente, quase oposto. Fraquíssima consistência mundana!
Tudo me parece, agora, conversa frágil. Tudo me lembra histórias de crianças e tudo é como se eu próprio tivesse falado com os autores ficcionistas.
Valha-nos o rio, pensei. O rio é diferente, é duradouro e persistente, ou melhor, é eterno.
Em tempo de superação de crise hei-de levar como exemplo a imagem do rio nos olhos, o seu correr límpido, o seu seguir perseverante, as suas sóbrias margens, as suas nuvens e o seu sol. Levarei também os seus sons nos ouvidos até que o ano novo se faça velho, até ao preciso momento de uma nova passagem de ano. E hei-de ir como quem diga um poema ao vento, ao vento que beija e ondula a linha de água. Esperarei, portanto.
A crise tem, claro, todo o aspecto de ser marcante. O que dela traduzimos não é tudo, mas é muito. Esperemos que em algum tempo ela toque corações. É que o mundo, cada vez mais, se divide em sacrificados e instalados. Grande divisão, esta, do mundo.
Para o ano, quereria que a minha pena aqui voltasse, fulgurante, no registo de histórias mais felizes e com alguma poesia porque, para além do resto, um ano duro será duro e triste se ficar isento de raios de poesia.
Peço, então, pouca coisa para este ano que ora começa. Que se possa, ao menos, trabalhar respeitando a ordem estabelecida por leis procedentes. Que nem tudo mude (como as regras a meio do jogo) ao sabor de específicas vontades. Peço ainda uma amenização dos sacrifícios e que estes (quando necessários) sejam lúcidos já que não podem ser irrelevantes e, já agora, que os sacrificados possam ganhar, uma vez por outra, algum jogo decisivo.
Fico-me, finalmente, pelo desejo do melhor ano possível para todos.
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
Era domingo e a tarde, apressada, esgotava-se deixando-me (curto) tempo para um velho hábito, o de observar.
Ora, é sabido que, para vendavais, não há fins de semana e, apesar do domingo, levantava-se um vento espanhol, forte e tempestuoso fazendo viajar no seu sopro, escassas gotas de chuva que voavam velozes e azuis no ar cinzento magoando os rostos muito mais do que molhavam.
Eu insistia, resistia, no meu posto, no cume da escarpa verificando o Côa bem ao fundo. Virado ao rio vigiava, pelo canto do olho, em ângulo difícil, aferindo distâncias. A pequena aldeia de Mido, de tons amarelados, brancos e vermelhos, trepava a meia encosta denunciando ânsias de subir mais alto. Apesar disso, Mido, não consegue enxergar o rio que, qual cobra cinzenta/brilhante nesta tarde sem sol, furava o frio empurrada por bafos fortes de vento gelado e sob uma ameaça seríssima de chuva.
Se, nesse momento, eu tivesse uma flor, teria descido e, tê-la-ia colocado sobre as águas, para amenizar o ar da tempestade, para criar uma imagem mágica que lhe pudesse resistir. Pedir-lhe-ia, ao rio, que protegesse a flor, que a fizesse sobreviver ao vento, à chuva e à corrente, que a levasse e que a transformasse num símbolo andante posterior ao mau tempo provando que a bonança regressará sempre.
Mas não, não era época de campos com flores e era tarde de vendaval que acabou por envolver os montes, entortando árvores, arrancando folhas, levando-as, varrendo-as.
O som das folhas caídas e arrastadas parecia criar uma canção livre, liberta das grades do tempo e, assim, me lembrei das cantigas de infância que, no Inverno, eram cantadas ao calor da lareira. Eram diferentes dessas outras cantigas de infância, as da Primavera, cantadas no exterior já quente, quando as flores pintavam os prados, sobre ou entre as ervas. Nessa altura estaria o rio tão próximo do meu coração quanto ainda está hoje!
Mas voltaria, agora, a provar o vendaval! Voltei a ver os pastos altos, os cabelos de erva que, diante dos meus olhos, voltaram a provocar-me espanto. Entendi as pancadas fortes do vento como pancadas de Molière.
Estava perante a paisagem austera do Côa, sob temporal, com árvores a vergarem-se e pastos a ondular. Era uma paisagem dinâmica por entre rochas inertes… Senti-me, de novo, espectador de um palco, de um teatro que já vi milhentas vezes. Não vi flores nem ouvi palmas mas revi retalhos da minha vivência, numa paisagem digna de televisão ou de cinema.
Por outro lado, era como entregar ao vento preocupações ou sofrimentos. Era como descarregá-los na visão de um filme, e depois de os largar, voltar a sorrir distraindo-me com tudo o que estava em meu redor. Porque ela, a paisagem austera do Côa, apesar da tempestade tinha essa arte, a de me fazer festas tranquilizadoras.
E o vendaval apenas ensaiava o seu papel, fazendo mergulhar tudo num tremendo temporal animado pelos sons e abanos do vento e pelas ameaças da chuva mas, tudo, resistiria como se resistisse a um cerco.
E a Primavera haverá de chegar como quem põe flores sobre a mesa!
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
É um impulso incontido! A ruralidade chama-me, acaricia-me a alma, devolve-me os sítios e as pessoas. Impõe-me o regresso…
Em retornos sucessivos encontrei, muitas vezes, o meu velho amigo Matias da Silva. Desapareceu quando contava noventa e tal e, com ele, partiram pedaços importantes da minha vivência rural.
Era um velho guardador de memórias e um fascinante contador de histórias com quem eu tinha o hábito e o gosto de conversar. Ele não se fechava o dia todo a sacudir o pó dos seus velhos contos. Antes pelo contrário. O Silva gostava de sair e de expor «in lóco» as suas teorias.
Guiava-me, assim, com frequência e, ambos, fazíamos percursos de memória rendilhada. Seguíamos ruas e quelhas indagando carismas e segredos. Vencíamos veredas, contornávamos granitos e interpretávamos sombras. Ele foi o que, modernamente, poderíamos chamar «o meu GPS». Com a sua voz calma e rouca guiava-me os passos sem dar demasiada importância à cor dos dias. Os dois rompíamos nevoeiros ou claridades para desvendar os mais ínfimos lugares. Falava da história dos sítios e do significado das pedras. Explicava o anglo dos caminhos e adivinhava o sol e a chuva!
Com ele continuo, ainda hoje, a sair em pensamento! Relembro-lhe as sugestões, conselhos e pareceres.
Voltei, ontem, a perder-me, acompanhado pela sua recordação. Repeti uma das visitas como se ele me guiasse, parando em cada esquina. Abriu-se-me, de novo, a boca de espanto, mediante recordações antigas que, paradoxalmente, me parecerão eternamente novas.
Regressei ao Largo do Cruzeiro onde se situava a sua tasca agora encerrada, não só por défice de clientes mas também por falta de tasqueiro. Revisitei o recanto do Largo onde os caldeireiros gastavam dias e semanas martelando latas e chumbando os fundos aos caldeiros. Subi depois. Voltei a subir a única rua da aldeia e, como se sonhasse, voltei a pedir opinião ao Silva. Puxou-me, ele, de novo, pela rua esconsa até à subida para a velha capela, testemunha perene desde os primórdios da nacionalidade.
Desci, por fim, a caminho da minha velha casa reconstruída sobre mais de centena e meia de anos, no início da única rua que, engordando bastante, permite, ao meio, o tal Largo do Cruzeiro. Relembrei vinhos e bebedores, tremoços e comedores, aguardentes, obreiros de alambiques, sítios e épocas de destilação.
Fazia-se a aguardente no «Cabanal das Aguardentes». Incendiavam-se as noites com enormes fogueiras e as gargantas com bagaços quentes. Queimavam-se engaços. Aproveitavam-se as brasas (colossais) para assar chouriças, carnes e farinheiros.
Relembrei sabores e odores e recordei as histórias picantes do velho tasqueiro, porque ele sabia muitas e das boas!
Tal como noutros tempos ouvi o som corrido da água do audível ribeiro. E veio-me á ideia que o Silva foi, ele próprio, uma fonte viva. A sua recordação ficará (no meu sempre) à bica dos lugares que, por cá, têm história.
Aqui o trago hoje, ao meu velho amigo Matias da Silva, como embaixador de histórias e sabedorias. E, na figura dele, pretendo homenagear, também, todos os homens e mulheres da minha ruralidade.
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
Cultivo, desde garoto, este gosto, aparentemente alheado, de ver cair a chuva, de a acompanhar no seu encontro com o mundo, com as casas, as árvores e os solos. Gosto de lhes seguir o caminho por valetas e regueiros, de assistir à formação dos charcos, de observar o escorregar das gotas em desenhos rendilhados nos vidros das janelas.
Vejo-me, frequentemente, espreitando a chuva, insinuando, perante mim próprio, que a não quero pelo incómodo mas, desejando-a num desejo íntimo, na esperança de um secreto prazer.
Aqui, no nosso Interior, somos da chuva que molha e encharca, somos do frio que a enrijece, que a solidifica, que a branqueia, somos do vento que a empurra e eu sou dos que, secretamente, amam a chuva!
Gosto de sair à rua, ainda que chova, e corro como se a chuva corresse atrás de mim. Ainda que me molhe o corpo e este me estremeça em arrepios de frio e humidade confesso que, mesmo assim, a chuva não me desgosta. Se for muita procuro abrigo como quem procura refugio. Depois de homiziado, observo e vaticino quantidades, oportunidades e friezas.
Entrando em casa gosto de lançar olhares pela janela e de iniciar o prazer de uma contemplação superficial mas demorada. São olhares que me instruem o espírito. Não me importo, portanto, de demorar os meus olhos pelas imagens da chuva tão sedutoras e tão naturais. E, se for final de tarde, se o início da noite se mantiver tempestuoso posso não ousar sair para enfrentar ventos ou tempestades e optar por apenas escutar, por apenas observar. Gosto de apreciar discreta mas interessadamente a chuva. Se a escuridão da noite me impedir de a ver, ouvir-lhe-ei o cantar tamborilado e escutar-lhe-ei o correr escorregadio. Pressentir-lhe-ei o desejo de me visitar tentando entrar pelo telhado ou insistindo contra a janela transparente e impeditiva.
Assim me fala a chuva, lá de fora, a mim que já estou de dentro!
É nessa altura que ela me surge mais enigmática. Tento, então, adivinhar-lhe os locais de longínqua origem, os sítios onde se formaram as nuvens. Imagino o final dos regatos, o desaguar das ribeiras, o chegar das águas aos grandes rios que enchem o infindável mar.
Para mim o mar é feito de muita chuva e sempre será infinito, sempre será longínquo ainda que alguma vez esteja próximo.
Mesmo que visto e revisto o mar será sempre da minha imaginação e sempre será misterioso.
E é, lá, no mar, que a chuva descansa!
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
Ninguém nos retirará, neste Interior raiano, os montes, e os vales, a beleza austera dos rochedos, a verdura dos campos, o porte frondoso dos carvalhos, a altura esguia dos pinheiros, os amarelos das maias primaveris, os tons torrados dos tojos e dos prados no verão nem a alvura da geada e da neve no inverno. Ninguém nos roubará os lugares onde as flores nunca perderão o sentido nem nunca recusarão o seu perfume.
Ninguém mutilará, a este Interior, o seu carisma fronteiriço.
Ninguém suspenderá ás suas gentes o seu carácter. Sempre a sua vontade será tão sólida quanto a dureza granítica. A gente do Interior será sempre de feitio volátil e de macieza no tratamento.
Persistirá, portanto, o Interior, como objecto de recordações e inspirador de novos sonhos. Ninguém lhe mudará a alma!
Ainda assim hão-de concretizar-lhe a desertificação!!!
Duvido que o tempo ou o assunto se prestem a metáforas ou trocadilhos e desconheço quais as ponderosas razões que nos têm empurrado, para um profundo esquecimento. Quiçá as mesmas razões que nos mergulharão nas amarguras do (já) certíssimo esvaziamento.
O que na realidade consta é que, sem explicação que verdadeiramente eu entenda, a lei ditará que as freguesias com menos de quinhentos habitantes sejam varridas do mapa. Sobre elas atem-se, portanto, a cor vermelha do lápis que as quer abater com uma cruz desertificadora, ao abrigo de duvidosas razões de poupança.
Apesar disso nunca findaram (nem se sabe se findarão) amáveis tiradas em dialécticas proferidas por políticos que, ao invés de outros tempos e de outras vontades (dos reis povoadores, por exemplo) pactuam com a implementação deste pavoroso despovoamento.
Sobressai, portanto, o rigor dos números e a pretensa exactidão das réguas e dos esquadros. Nada que impeça o desequilíbrio baseado em critérios que conduzirão a um novíssimo rosário marcado pelo crescer da desertificação.
Por outro lado, presume-se que, num futuro próximo, quarenta por cento da população portuguesa se fixe na região da Grande Lisboa. Restará, depois, um país desequilibrado, desigual, vergado a razões economicistas (justificadas?) Surgirão áreas nacionais desertificadas, sem deserto. Mas apesar da ausência triste das pessoas nunca o nosso Interior será deserto!
Por aqui, persistirá beleza, embora ríspida e muito própria. Ficarão potencialidades por explorar por falta de imaginação de quem prometeu tê-la, por facilitismo, por omissão, por resignação. Mas não… não haverá lápis que consiga banir o Interior. Apenas se lhe escurecerá a alma, apenas se lhe subtrairá gente, apenas se lhe aumentará o abandono!
Resta-nos a esperança de que um dia mude o punho e mude o lápis. Esperemos, então, que surjam outras vontades, outros desenhos, outros desenhadores e lápis de outras cores. Entretanto o Interior por cá ficará eternamente.
E, juro, nunca faltará quem acredite no impossível!!
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
Tenho a ideia de que, nós, continuamos a viver nos sítios onde fomos felizes e eu, tive uma infância feliz e rural.
Gozei, claro, ambientes calmos, pacíficos e pueris apesar do irrequietismo inerente á condição de criança.
As mulheres e os homens desses tempos, os velhos de hoje, transportavam e transportam, ainda, nos olhos a presença de uma acalmia total, reflectida em olhares maduros e recheada de sabedorias antigas e profundas.
Faço, então, questão de voltar para habitar as minhas memórias. Por aí amenizo as horas mais ásperas do tempo presente. Relembro histórias e recordo gente amiga e antiga, ferida pelo frio da existência e queimada pelo fogo das vivências mais austeras. Gente que me parece, agora, em despedida.
Preciso, portanto (e só) de fechar as pálpebras para habitar memórias, para relembrar episódios, para efabular façanhas ou parar ligar destinos que nem sempre foram cumpridos.
Há quem me diga «lá estás tu a sonhar». É certo que o tom nem sempre é recriminatório. No entanto, alguns me julgarão repetitivo. Porventura outros me acompanharão em lembranças. Encolho, simplesmente, os ombros porque sei que não vale a pena suspirar de enfado. Sonhos são sonhos e não se discutem e quando se sonha o real desce sempre a um plano secundário.
Assim me dispus, hoje, a passear, uma outra vez, pelas ruas da minha memória, reencontrando lugares e recordando proezas de outros tempos.
Sempre gostei de deambular sem predefinir o sentido. Apraz-me fazer incursões pelo âmago da minha aldeia sentindo-lhe os odores, as cores, os sons e os silêncios. Dá-me prazer apreciá-la, por dentro, revisitar-lhe a intimidade, confirmando, presencialmente, o que de mais belo ela pode oferecer, quer seja a estreiteza das ruas, o velho traço do campanário, o cantar do velho fontanário ou a antiguidade das edificações.
Foi neste passeio de hoje que revi, uma árvore, lá ao fundo de algumas décadas, incluída numa fileira de imagens onde um dia, um denso e irrequieto grupo de garotos, fugidos da atenção da professora a treparam, a despojaram de muitas folhas e a mutilaram de alguns ramos numa agressividade infantil pouco compreensível aos adultos daquele e deste tempo. Ficou quase moribunda sem que, hoje, por mais que me esforce, eu consiga perceber a barbaridade de tais atitudes. Resistiu, apesar de tudo. Agora é uma árvore forte, alta e adulta, dona de um quintal onde se inicia uma ruela, sítio com lugar cativo na minha recordação.
Tive, então, que pedir perdão a essa árvore. Apeteceu-me abraçá-la e beijá-la com meiguice como se, por muito tempo, me houvesse ausentado dela e a ela voltasse, agora, prodigamente. Senti, depois um cómodo conforto quando me apaziguei com ela, num apaziguamento deveras sentimental.
Enquanto isto, dei comigo em cumprimentos a algumas pessoas (duas ou três) que, ocasionalmente, passaram por ali e que já não conseguem corrigir a velhice.
Terminei reconhecendo, uma vez mais, que continuo a sentir-me bem quando desfio memórias, histórias arbitrarias (entre muitas) quiçá um pouco tontas, eventualmente rotineiras mas, ao mesmo tempo, tão simples e naturais como a desta árvore extremamente marcante da minha infância.
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
Corre um tempo quente que queima o mês de Outubro enquanto este avança e se esgota num Outono com temperaturas de Verão.
Assim, como assim, a vida não pára e colaborar no Capeia Arraiana é, para mim, um enormíssimo prazer. Evidentemente, tal colaboração inscreve-se-me numa obrigação quinzenal que carece de assunto e, se assim é, a observação poderá ajudar!
Olho, então… e olhando, vejo curtas planícies, a que o povo chama baixas. Mas, para além disso, vejo a diversidade dos montes e dou com a Serra, a tal Serra que toca as estrelas. Reparar nela é como olhar para mim próprio, assim a minha existência coincide com a sua presença.
E, claro, há outros montes para além da Estrela. Há o «Crucho» como é, popularmente, conhecido o cume do Monte do Jarmelo. Ele distancia-se um pouco da Serra mas é omnipresente numa paisagem que tenho a felicidade de observar diariamente.
Esbranquiça-se, então, o «Crucho», na distância e envolve-o um nevoeiro pouco denso lembrando fumo branco. No cimo exibe, furando os Céus, um enorme marco geodésico, alto, de mais de sete metros.
Permita-me o estimado leitor que eu compare este marco a um enorme dedo levantado, um dedo maior, um dedo de honra, sempre presente na distância…
«O Crucho» parece desabrir num quase protesto. Parece sublinhar a pretensão de sustentar e até de reavivar novos argumentos. Este enorme dedo que, na realidade, é estático parece ser intensamente manuseado e parece não permitir que a história do Monte seja mindinha.
E se é verdade que apenas um dedo não faz a mão o dedo maior quer, aqui, substituí-la em acenos, num importante chamamento de atenção.
Por estranho que pareça este modo representativo, este dedo, pode dizer que, embora, indo-se os anéis, podem ficar os dedos para novas angariações.
Baila, assim, no meu pensamento a convicção de que, para além das específicas funções que, primordialmente, atribuíram ao marco ele persistirá num chamamento aflito, desmesurado, gritando nas alturas.
Este marco grita de pé entre as ruínas tentando evidenciar vestígios que parecem escapar à mão da história. Ora, se essa mão, por aqui, deixou perder os anéis, acreditem, ainda mantém os dedos.
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
Detenho-me, num olhar, perante o espaço que, das escarpas da Estrela, se estende e acinzenta para bandas do Sabugal.
Num relance mais curto e mais a leste chega-me o meu Monte, o Monte do Jarmelo.
Aplanam-se, depois, as distâncias até se perderem nas longínquas serranias espanholas. Adivinho, com grau de absoluta certeza, que, a meio caminho, se alonga um vale, o vale do Côa, profundo, abrupto, apertado e quente.
E sei, claro, que por aí se esvaem as águas de um rio. Águas oprimidas pelo aperto e alteza das margens. Águas, poucas, agora que se vão na lentidão estival enquanto isentas de chuvas. O percurso dessas águas ocorrerá, em ambiente oprimido, numa extensão de escassos quilómetros e numa luta constante com as margens, como se fizessem uma incessante procura de liberdade mesmo antes de encontrar a foz.
Neste outro monte, num monte povoado, ergue-se a Guarda, meu ponto de observação, cidade envolta e distraída na agitação da tarde.
Entre o movimento e a extensão dos espaços silenciosos permito-me imaginar paisagens, carentes de verdura nesta época do ano e ponteadas de aflorações umas mais cinzentas que outras.
Entre a cidade e os campos espargem-se aldeias, que não crescem mas minguam e que insinuam vidas a transbordar de tradições e de labutas rurais.
Presumo, essas aldeias, esmorecidas fazendo imagem com casas de granito cinzento ou amarelo por entre outras casas cujos modelos foram importados da Europa. Umas e outras se demarcam no interior de um espaço castanho/avermelhado definido pelo tom dos telhados. São aldeias que se desviam, nos longes, como se fugissem, como se quisessem evitar, o açambarque das cidades.
Ainda pairam algumas nuvens nesta tarde. Lembro-me agora que a névoa chegou de manhã. Ao longo do dia a humidade mais baixa foi-se dissipando e, no céu, foram-se agrupando as nuvens. Formaram grupos espessos, cinzentos, quase negros. Agora, ao final do dia, um leve vento dispersou-as. Parte delas disfarçam-se e expõem-se em figuras pitorescas. Houve nuvens que se alongaram e emagreceram deixando-se repassar por raios de sol fraco, fazendo lembrar pedaços de um enorme manto que se esbranquiça na passagem da luz.
Lá mais além, na altura longínqua da montanha espanhola , parecem juntar-se todas as nuvens num doce enlace entre a Serra e o Céu.
Olhando, assim, vou esquecendo azáfamas e vou entrando no abstracto mundo da imaginação onde me entretenho lendo espaços, decifrando e comparando formas, associando-as a imagens reais ou mesmo a acontecimentos quotidianos.
É este o Céu que me cobre a mim, à Guarda, à raia e à cidade do Sabugal.
Ler os espaços que refiro é como ler livros abertos, livros ilustrados com Céus, casas e paisagens, livros recheados de tradições e de saberes ancestrais.
Tudo se proporciona, portanto, para leituras gostosas. Os espaços estão sempre disponíveis. Basta querer lê-los.
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
Havia uma colina com um castelo ao cimo e um rio a curvar-se, lentamente, na base da colina, aos pés do castelo. A cidade expunha-se a nascente. Os choupos e os freixos insistiam junto às águas. Os prados e as hortas acastanhavam-se num verde de finais de verão.
Afastava-se do rio um homem de balde na mão, cana de pesca ao ombro. O castelo ficava-lhe a trás. Não era um homem jovem. O chapéu tentava definir-lhe a idade. Era tarde, quase noite e era rua, ou melhor, eram campos. Dir-se-ia que o homem caminhava, cansado, em busca de aconchego.
Traria peixes no balde? assim o insinuava a cana de pesca!
O castelo, lá no alto, com ares de eterno, lembrava passados distantes.
Mas, um pescador sabe o que pesca e nem sempre pesca, só, peixe. Também pesca histórias e sabe, bem, porque razão não se entrega, apenas, à bisca da tarde, na tasca. Vai sem dizer ao que vai e regressa desenhando a silhueta esbatida no esmorecer do dia. Faz tudo isto por razão forte, com alma indevassável. Admite, sem dúvida, outro tipo de convívio, um convívio diferente daquele desgaste lento da reforma. Admite conviver com os peixes, com as águas, com as margens, enfim, com o rio. E, ao regressar, transporta no balde peixes e histórias.
Vem, então, o homem. Abandona a margem e atinge a dobra da avenida, lá, de onde o observo a ele, ao seu rio e ao seu castelo. Quando passa por mim, diz-me como se viesse de cumprir uma missão:
– Boas tardes amigo.
Deliciava-me, eu, nestes pensamentos e perguntei-lhe:
– Então e os peixes abonam?
Respondeu-me:
– Nem por isso… Já não é como era!
Dizendo isto, lançou um olhar longo, extremamente expressivo, englobando razões e espaços.
De facto há gestos assim, equivalentes a palavras valiosas, àquelas palavras poucas, capazes de desencalhar. Há gestos que são mais do que palavras!
O castelo das cinco quinas, no Sabugal, testemunha perene de todos os tempos, firme na sua solidez granítica, dono da sua altura de sempre, olhava-nos a mim e ao homem e penso que, também, me quis integrar neste quadro. A personagem principal era ele, o homem que possuía o poder das palavras poucas, das palavras simples e dos gestos expressivos. Era um pescador do Côa. No balde trazia peixes do rio e, talvez, muitas histórias. Eu, apenas, queria contar!
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
Havia ribeiras, sim, como a Pêga ou as Cabras mas, qualquer delas, não poderia ser comparada ao Côa que era um rio grande, arraiano e, todo inteirinho, português.
O Douro e o Tejo eram grandes, sim senhor, mas nasciam em Espanha. O Côa era grande, também, mas nascia em Portugal. Vinha dos lados do Sabugal. Contornava, a uma distância razoável, o Jarmelo e seguia por bandas de Espanha, sempre ao longo da fronteira sem nunca se internacionalizar. Propunha-se engordar o Douro, claro, como se aprendia na escola primária, na cantilena dos rios e afluentes. Mas, Côa e Douro, apenas se abraçariam numa raia mais a norte, nas proximidades de Vila Nova de Foz Côa.
Assumidamente fronteiriço o Côa esgueirava-se, escorregadio, qual cobra gigante e prateada, raia adentro, sinalizando a proximidade da fronteira sem se inibir de interferir nas vidas arraianas!
O Côa não era, portanto, um rio qualquer. Investia-se de missões específicas. Era tido e achado em muitos actos contrabandísticos e empenhava-se regulando-os. Por vezes ajudava os guardas. Outras vezes facilitava contrabandistas.
Nesses tempos, idos, há mais de três décadas, contrabandeava-se de tudo. As raias (portuguesa e espanhola) praticavam um comércio clandestino amalgamado e abrangente que incluía de um pouco de tudo: pão, galhetas, café, cacau, chocolates, carnes, azeites, óleos, alpergatas, botas, panos, enxadas, tabacos e muito, muito mais. De forma legal quase só os rios cruzavam a fronteira!
Aprendi o Côa, em meados dos anos sessenta, mesmo antes de o cantarolar na escola primária. Naquela altura os rios decoravam-se a cantar. Mas, para mim, o Côa nunca foi um rio de cantigas. Sempre foi real, extremamente real. Conheci-o, cruzei-o e molhei-me nele milhentas vezes.
O São Roque, sítio carismático da margem esquerda, associava-se ao rio. Foi e é local de feiras, festas e romarias. Foi praia, palco de brincadeiras, lugar de merendas e convívios. Há lá capela e ponte a ligar as arribas.
Na minha adolescência, por estas bandas, as águas do rio eram completamente isentas de poluições. Sobretudo no Verão, quando paradas e observadas de perto, lembravam espelhos enormes reflectindo não só a frescura do arvoredo marginal mas também as agruras dos montes medianamente afastados.
A minha relação com o rio é da minha idade e, entre nós, coexiste uma empatia crescente que se renovou em cada reencontro. Sobram-me, agora, retratos antigos que me reavivam imagens e recordações.
De quando em vez, faço questão de me pôr a sós com o Côa. Procuro-o como quem procura um velho amigo. Falo-lhe, conto-lhe, pergunto-lhe e escuto-o. Cheiro-lhe os ares, as águas e as margens. Lanço-lhe olhares profundos tentando decifrar-lhe segredos. Às vezes olho-o suavemente deixando que os meus olhos o percorram e se percam pelos sítios mais recônditos. Olhares profundos e olhares suaves acabam por se reencontrar sobre as águas, entre as margens. E, sempre, sempre após momentos da mais perfeita sintonia ambos (eu e o rio) concluímos que a raia só pode ser como é porque é assim o rio Côa.
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
O entardecer já pouco demorará. A noite não está longe. Ela virá como se viesse cansada tombando vagarosamente, fazendo crer que tudo ficará sob a penumbra. O sol vai, portanto, desandando, quase de todo, e a tardinha há-de esvair-se.
Sento-me. Fico sentado cá fora, á porta, na normal comodidade de um banco de pedra que corre a parede da casa. Por cima os fios da electricidade prometem-me que a luz não findará.
Mesmo que não quisesse, tinha, agora, que olhar para onde, sempre olho.
E vejo. Vejo num perto curtíssimo, casinhas graníticas e nuas. São poucas, pouco mais de uma vintena. Algumas só já mostram o telhado castanho escuro. O resto já começou a ir-se da vista com o esmorecer da luz.
Para onde olhe, então, estende-se a solidão dos campos já algo escurecidos, e estende-se, também, o silêncio, um silêncio que cai docemente por vales e cabeços.
O silêncio já principia a dormir e dormirá profundamente.
Num longe um pouco mais longínquo, apesar da escassez da luz, observo o Monte que em breve se esconderá na noite, noite que transportará o breu e encobrirá todos os brilhos e todas as cores da natureza.
Mas, com a noite, não termina tudo, ainda que o silêncio se dilate. Na noite predomina, de facto, o essencial. Não se extingue o pensamento nem se esvaziam as palavras. Pelo contrário, a noite poderá rechear palavras e prenhar pensamentos.
Mas, o Monte quer, hoje e agora, despedir-se.
Olho-o pela derradeira vez porque ele partirá em breve. Partirá e só regressará com a luz. Olho-o como se olhasse para dentro de mim. Aliás, ele habita-me.
Chegam, então, as memórias e confundem-se com pedaços de existência. Todo o contexto se adapta à cor da minha alma. Ela é da cor da minha idade, da cor do tempo que vivo mesmo já tendo sido da cor do tempo que vivi.
Por aqui existiu passado, sim senhor. Há vestígios. Há provas. E se os vestígios amarelecerem não empalidecerão tanto que façam desaparecer as recordações. E recordar é viver, viver outra vez. Na recordação é como se vivêssemos movendo-nos entre sombras, entre emoções, entre memórias.
Por isso me recuso a aceitar que com o passar do tempo, as perdas se façam definitivas. E, não acredito também que o presente se afunile. Antes, os tempos nos trarão presentes sucessivos, diferentes, influenciados por diferentes passados mas, sempre disponíveis para gerar novos futuros. Nós teremos, apenas, que ser conscientes. Não poderemos ser como crianças assustadas, perdidas, a tentar juntar pedaços de vida, para reconstruir, para influenciar o advir. Nada disso. O passado, justa medida do tempo vivido, suporta presente e futuro e, estes terão almas de outras cores e hão-de trazer, à mistura novos tempos.
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
Entre o que se diz e o que se cala ficará sempre o que pode ser contado e hoje confesso, caríssimo leitor, que nos meus tempos de infância, o mundo inteiro cabia nos limites do meu Pequeno Mundo. Qualquer território adicionado sempre fez crescer a descoberta, sempre foi somando surpresas.
Assim me surgiu a raia como um território exterior, um território do além, para lá do meu mundo infantil, integrando a imensidão de um outro mundo, situado lá, onde, o meu Pequeno Mundo já era para ter acabado.
A Raia parecia-me, pois, o país do sol nascente, situado do lado de lá, do lado de onde vinha a luz do dia. O sol nascia luminoso e radiante rasgando o céu em claridades e, depois, sobrevoava as jornadas até declinar no lado oposto.
A Raia foi, portanto, um território emergente surgido do desconhecido, vindo do reino do abismo, do lado de onde vinham os astros que, sem interrupções, traziam sinais indiciadores de outros mundos.
Com esta descoberta fiquei a saber que, para além dos limites do meu Pequeno Mundo, não ficava o fim do mundo. Fui, então, crescendo, decorreu a infância e a adolescência e a raia foi-se integrando.
Mas a fronteira não era toda a mesma. Havia raias intrinsecamente diferentes! Havia uma mais próxima com maior sabor a Espanha e, até, a França por onde se escapavam os braços endurecidos dos homens de trabalho. Diziam-me que iam «a salto» em busca de melhor sorte. E eu, criança, por cá ficava, meditando, imaginando o salto, adivinhando a sorte.
Mas havia uma outra Raia que só descobri mais tarde, já bem adolescente, quando estudei no colégio (Outeiro de S. Miguel). Essa, outra, começou por me oferecer amigos e não sei por que secreta razão eles se fizeram amigos de toda a vida.
Claro que, inicialmente, me trouxeram novidade, muitas novidades, tantas como se fossem oriundos de um país diferente. Quase trouxeram, encaixando na minha, uma cultura nova. Contaram-me, explicaram-me uma certa festa taurina, a que chamavam garraiada e que chegou a ser simulada entre adolescentes. Falaram-me das festas de S. João, festas de pasmar, com bailes, fogueiras e mastros embonecados, festejos muito diferentes das humildes festas de S. João da minha aldeia. Trautearam-me, na tentativa de melhor me explicarem, cantigas dessas festas. «Aí repenica, repenica, repenica e o São João a suar em bica».
Conheci, sem nunca ter visto, tão só por me terem contado, algumas personagens (típicas) sabugalenses como aquele homem (menos) religioso que no dia da visita pascal meteu o burro em casa. Ora, o pároco, encabeçando o cortejo intentava deixar as bênçãos e recolher esmolas. Chegado à residência da dita personagem abriu o postigo mas apenas foi cumprimentado pelos espirros da alimária.
Não deixo, então, não posso de dizer que… a raia e o Sabugal foram importantíssimos acrescentes ao meu Pequeno Mundo.
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
O mundo da imaginação encaixa-se, à perfeição, no mundo da escrita. Desta feita, ao anotar, na minha mente, a intenção de escrever um pequeno texto para a Capeia Arraiana, surgiram-me, de novo, imagens dos contrafortes do Monte (do Jarmelo). E é convencimento meu que a escrita, como a leitura, podem ser boas formas de viajar!
A minha imaginação parte, então, ao reencontro do silêncio inerte das rochas e da solidão das fragas. Depara-se, ainda, com a quietude dos campos e das árvores, com a calada dos sítios, com o carisma dos vestígios milenares, enfim, com os lugares por onde sempre ansiei perder-me.
Ouço queixar o velho Monte da voragem do tempo que o tem feito envelhecer, envolto em vivências de história e de lendas, por entre contos de amores desabridos ou desabrigados.
Para aqui me escapei milhentas vezes. Aqui regressei, ainda adolescente, na procura do meu habitat preferencial. Agora, mais velho, para aqui me dirijo, não quando quero, mas quando posso e aqui, colho as minhas mais gostosas recordações. Assim me assola a saudade tão só porque ela existe e porque ela persiste naturalmente.
Mas sei da calma do Monte, poucas vezes perturbada. Se penso em movimento imagino apenas o voo desgarrado de algum pássaro ou a passagem sussurrante (em sonorização excepcional) do vento entre as ramagens. Seduz-me o adivinhar verde dos carvalhos e dos castanheiros. Convenço-me da infinidade de histórias que, com certeza, foram contadas sem que nunca ninguém as tenha escrito.
Tudo isto me surpreende tanto quanto me surpreenderia pela primeira vez. Tudo isto se me apresenta repetido e, paradoxalmente, tudo me parece novo. Admiro o rural, o tosco, o inculto mas nunca encontro o incultural. Respiro um inegável e denso ambiente histórico.
Entendo muito bem a razão pela qual o rural se pode impor ao urbano e compreendo-me na minha crescente necessidade de voltar, de voltar sempre. Percebo Torga (à exaustão) quando diz «o pouco que sou devo-o às fragas».
E, quando observo as alturas, revejo o marco geodésico gigante, branco, cintado de negro, picando os céus. É como se o Monte falasse. É como se ele levantasse um dedo enorme para chamar a atenção e gritasse história … contra a solidão humana.
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
À chegada, Junho costuma fazer-se acompanhar dos primeiros calores estivais. Não tem sido tanto assim este ano ainda que o sol principie a fazer-se de ouro. É, também, por esta época que o céu inventa a cor azul celeste.
O chão ainda não perdeu o verde, ou melhor, o verde/amarelo porque subsistem vestígios dourados (das maias) provenientes dos mais recônditos sítios. Os inícios das manhãs ainda recendem a Primavera.
Os tons quentes e secos do Verão só surgirão lá para Julho e, isto, se S. Pedro fizer questão de manter a tradição.
Ora, em princípios de Junho, falar do Jarmelo é falar da Feira Concurso do gado. Em todos os começos deste mês (este ano no passado domingo, dia doze) o Monte e a Base abandonam quietudes anuais e agitam-se, animam-se, vestem-se de festa e festejam. Sim, pode, por aqui, falar-se de calma, mas não agora. O Monte só é (demasiadamente) sereno todo o resto do ano.
Não se trata, portanto, de uma qualquer, Feira não senhor. Trata-se de uma Feira Concurso com tudo o que caracteriza uma e outra coisa. Há compras e há vendas, claro. Mas há prémios e premiados também. E tem havido, mais recentemente, uma nova forma de animação. A garraiada que, obviamente, foi importada da raia, vem aqui incentivar coragens e inflamar corações.
O gado bovino detém, claramente, a preponderância do concurso embora este seja também extensivo ao gado caprino e ovino.
A Feira transformou-se, ultimamente, numa ocasião de luta. Com o Concurso o Jarmelo torna-se mais visível. Talvez por isso se aproveite reivindicação. Tem vindo a ser solicitado, aos poderes instituídos, que preservem as raças jarmelistas. Trata-se, é evidente, de uma boa luta, de uma luta por causa justa.
É bom que se saiba que há produtores jarmelistas que, em nenhum dia do ano, esquecem esta Feira, este Concurso. Simplesmente cuidam e criam os seus animais no intuito primeiro de aqui vir expô-los, aqui vir sujeitá-los a avaliações. Claro que a certificação da raça seria, para eles, um óptimo prémio. Entretanto vão-se candidatando a outros que vão ganhando e guardando com orgulho pouco disfarçado. Há quem possua, perfiladas em casa, autenticas colecções de taças.
Mas, tudo isto pode, ainda, ser visto como um tributo, um reconhecimento da vaca jarmelista que durante séculos ofereceu à região a qualidade do seu leite, do seu queijo, da sua carne e também do seu trabalho.
As vacas jarmelistas foram, ao longo dos tempos, o principal meio de sustento destas gentes.
Só por isso já merecem parabéns todos aqueles que se têm empenhado promovendo, divulgando e lutando pela sua preservação. Que a sorte os ajude é o mínimo que lhes poderemos desejar.
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
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