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A vida do contrabando era cheia de percalços e de aventuras, fruto do risco que constituía a travessia da raia carrejando mercancias que as autoridades de um e do outro lado proibiam e andavam danadas por apilhar.
Numa altura da minha vida, já contrabandista encartado, calhou-me em sorte ser procurado por um negociante da Covilhã, de nome Belarmino Teixeira, que me desafiou a trazer de Espanha calçado em barda para fornecer algumas lojas da cidade da Lã. Queria calçado de todos os modelos e feitios e de diferentes tamanhos.
– O senhor Belarmino conta com os meus préstimos, mas atente que em Espanha, junto à raia, não há onde mercar a catervada de tamancos e albarcas de que terá precisão para abastar os seus comércios.
– Os sapatos e as botas, que disso se trata, virão de Coria para Navasfrias, terreola rente à fronteira que o meu caro bem conhece. O seu trabalho é ir a casa do Paco Arouche e carrejar de lá o calçado para o armazém do senhor Tolda, no Soito. Tirá-lo dali já é missão para outra gente – explicou-me o Belarmino Teixeira.
Estava ali o meu arrimo, se o negócio me corresse de feição, pelo que me empenhei naquela traita.
Instalei-me por um tempo em casa do meu amigo Tó Malato, em Aldeia do Bispo, que me pôs ao dispor um cabanal que tinha fora do povo. Todas as noites atravessava a raia com cargas de 30 quilos de botas e sapatos finos, que alombava até ao dito cabanal, de onde depois o Tó Malato transportava a mercadoria para o Soito ao lombo do meu macho, atravessando a serra do Homem de Pedra cada dois dias.
Tal era o tamanho da encomenda de sapatos, que chegava a fazer quatro travessias por noite, quando a boa sorte me acompanhava e não dava de chofre com qualquer contratempo.
Mas depressa se tornou notório o meu manobrar constante, o que fez com que os guardas do posto da aldeia, tomassem providências tendo em vista botarem a luva às minhas cargas.
Sendo muita a precisão de satisfazer o negócio do Belarmino, não pude, ainda que avisado, perder tempo com demasias. Alombava os fardos seguindo quase à corrida, numa luta contra o tempo, ciente de que se conseguisse aumentar o número das cargas postas a salvo mais vantajoso ganho receberia, pouco me importando com as sentinelas e aguardos que a guarnição do posto redobrou.
Não tardou que numa noite me saltasse adiante um fusco, que ladrou aquela ordem que ouvi bastas vezes na vida:
– Larga a carga!
Botei o fardo ao chão e pisguei-me a toda a brida, embrenhando-me num matagal, o que certamente surpreendeu o guardilha, que esperava ver-me fugir com o fardo, como era uso da parte dos façanhudos contrabandistas raianos, que lutavam até ao fim pelo salvamento das cargas, que eram afinal o seu sustento.
Embasbacado, nem esboçou perseguir-me, tendo antes chamado o colega que estava por perto para transportarem a saca com as duas arrobas de calçado para o posto.
Com a vigilância apertada, perdi seis cargas numa só semana, passando a ser difícil colocar a mercadoria a salvo, tal era o empenho dos fuscos em me aliviarem as costas.
O Malato, lamentava o prejuízo, e admirava-se de eu não me preocupar com as perdas.
– Amanhã, Tó, vamos ao leilão ao Sabugal, onde recuperamos a mercancia apreendida – disse-lhe.
– Olha lá Zé, vais-te meter na boca do lobo?
– Que saiba ninguém me proibiu de entrar nas arrematações do contrabando apreendido.
– E onde tens a bagalhoça para pagar o calçado? Bem sabes que aparece lá gente endinheirada e aconchavada com os da Alfândega que tomam conta de tudo o que vai à arrematação.
– Não te apoquentes, Tó, que a mercancia vai volver ao dono.
Fui ao leilão, onde dei com uma sala apinhada de negociantes useiros e vezeiros nestas lidas. Reparei que alguns sapateiros da vila estavam entre os presentes, certamente conhecedores de que havia um bom lote de sapatos e botas entre as mercadorias a arrematar.
Quando o zeloso funcionário da Alfândega, que veio de Vilar Formoso para dirigir o leilão, abriu as caixas de madeira onde estava o calçado, os interessados apressaram-se a pegar no material para lhe verificarem a qualidade.
Mexeram e remexeram até que um negociante ergueu a cabeça e olhou desconcertado para o empregado da Alfândega.
– Mas que diabo! O calçado é todo do pé esquerdo – berrou cismado.
– Não se encontra um com o seu – clamou outro.
Gerou-se um burburinho, a que assisti sereno, não tardando que os negociantes se sumissem deixando-me quase só na saleta, defronte do empregado alfandegário.
Quando mandou apostar, tomei a palavra para fazer o meu lance, de resto o único que o funcionário ouviu.
– Cinco mérreis.
E foi por cinco escudos que trouxe a mercadoria de volta, despachando-a logo ali, na central de camionagem, para a Covilhã, onde os sapatos e as botas se juntariam aos respectivos pares que já haviam seguido na semana anterior.
Paulo Leitão Batista, «Aventuras de um velho contrabandista»
leitaobatista@gmail.com
A classe profissional mais inclementemente castigada pelos sucessos e insucessos das últimas décadas da vida prrtuguesa foi incontestavelmente a dos advogados.
A proliferação das faculdades de Direito. A necessidade por elas sentida de atrair candidatos, ainda que sem qualidade e preparação – as notas de acesso cingem-se a menos de metade do valor de outras anteriormente menos nobres. A incapacidade da Ordem para condicionar o acesso a indivíduos mínimamente preparados. A descomunal desproporção entre o número de advogados e as necessidades dos pleiteantes. A invasão do espaço de ocupação até agora privativo de advogados por profissionais com outros títulos ou até de sem título nenhum. A não obrigatoriedade de intervenção de advogado em actos e contratos de valor e grau de complexidade fixados em legislação apropriada.
A acumulação das funções de advogado de empresa com as de advogado em sede liberal, ou até as de barrista com as de consultor. Tudo foram factores que, isolada ou conjuntamente se repercutiram negativamente na situação do advogado. Na formação cultural de base, na preparação técnico-jurídica, na sustentabilidade financeira, na consideração social.
E a verdade é que uma classe profissional que gozava na generalidade de uma honesta independência económica, de uma acrisolada cultura e de um invejável estatuto social se foi a pouco deteriorando em todos aqueles níveis, vegetando em escritórios sem clientela ou auferindo retribuições de indiferenciado por conta de alguns nababos.
Resta, ainda um património de seriedade, acumulado por uma série sucessiva de gerações.
Mas é esse resto da antiga dignidade que agora está a ser posto em causa.
E por um membro da classe, apenas momentaneamente alcandorada à condição de titular da pasta da Justiça.
Quando se esperava que Sua Excelência, lembrada do seu estatuto de advogada, viesse reabilitar a classe, ei-la a lançar sobre os descamisados que prestam apoio jurídico aos pobres o labéu da tentativa de locupletamento à custa dos dinheiros públicos.
Parece que Sua Excelência como os seus parceiros de união pretendem criar novas fidelidades no Ministério da Justiça, criando a figura do defensor público.
Cremos que é uma péssima ideia. Mas é a de Sua Excelência e a dos seus pares.
Pode legitimamente defendê-la. Mas sem atingir a dignidade dos que praticam o apoio.
Seria bem mais próprio de quem pretende arrogar-se o papel de moralizadora que impedisse os pareceres multimilionários de escritórios fabulosamente enriquecidos à custa do erário público.
Mas isso seria exigir demais a uma baronesa do PSD. Aliás, esta tendência para tornar público um serviço prestado por privados, que são em toda a acepção do termo os advogados oficiosos, privados até de condigna retribuição não parece minimamente concorde com o programa do Governo.
De ideologias não vale a pena falar, uma vez que o PPD-PSD, ou PS, lhe é avesso.
Mas o que todos os advogados – e não só os que se disponibilizaram para o patrocínio oficioso – exigem é que a ex-advogada e transitoriamente titular da pasta da Justiça se retrate do labéu infamante que lançou sobre a classe.
Já não chegava que a política oficial, paraoficial e oficiosa dos governos que vêm desservindo o País tivesse miserabilizado financeiramente a classe, vindo agora uma alta hierarca do Estado, com as responsabilidades de advogada meramente em excursão pelo Governo, tripudiar sobre a honorabilidade dos advogados pobres.
Se Sua Excelência pretender funcionalizar a advocacia que o sustente sem tergiversações ou tenteios. Mas deixando de vilipendiar a classe.
«Politique d’ Abbord – Reflexões de um Politólogo», opinião de Manuel Leal Freire
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