You are currently browsing the daily archive for Quarta-feira, 1 Fevereiro, 2012.
A Fundação INATEL organiza, a partir do mês de Fevereiro, em parceria com o Centro Cultural da Guarda, um curso de gaita-de-beiços.
A acção de formação decorrerá no Paço da Cultura da Guarda, na Rua Alves Roçadas, na cidade da Guarda. As sessões formativas vão decorrer em horário pós-laboral e terão, no total, a duração de 40 horas, divididas por 20 sessões entre Fevereiro e Junho de 2012.
Segundo divulgou o assistente técnico cultural da Inatel da Guarda, Joaquim Igreja, a primeira reunião com os inscritos decorrerá em 23 de Fevereiro de 2012, nas instalações do Paço da Cultura da Guarda, às 19 horas. Nessa ocasião far-se-á a apresentação do curso e tomar-se-ão decisões sobre o dia e a hora das acções de formação.
As inscrições (limitadas a 15) decorrem até ao dia 22 de Fevereiro de 2012 na Agência da Guarda da Fundação INATEL ou pelo e-mail ag.guarda@inatel.pt, após solicitação da Ficha de Inscrição.
plb
Tal como ao redor da lareira, a ouvir o crepitar de um lume vivo, assim nós nos encontrávamos todos satisfeitos, em volta de um Bucho Raiano, algures, no começo de uma longa noite, em Bruxelas, entre meados de Janeiro e o Carnaval.
Aqueles três homens e três mulheres estavam ali a festejar uma tradição que se transmitiu durante séculos e tenho a impressão de que só o olhar suave de um Bucho Raiano gorducho e redondinho, mas por demais astuto e vivaço, nos poderia fazer a contagem dos anos que o têm contemplado ao largo de tantas gerações.
Também não sabemos quantas lendas nos poderiam ter enfeitiçado para nos sentirmos como que endemoninhados perante um quase deus que ao mesmo tempo veneramos, nos encanta e alimenta. De que miragem fascinante andaríamos nós à procura?
Já cheirava a infância e a ternura, e repassavam pela nossa mente os gestos rituais das nossas mães e avós, quando o bucho nos activou as papilas gustativas, ao vê-lo todo rosado em cima da mesa. Parecia ter já bebido alguns copos de um clarete sorrateiro. Mesmo com as faces e as maçãs do rosto afogueadas, ainda não tinha perdido a sensatez ancestral de quem nos traz o sustento, a tradição, o encanto e a emoção de estarmos juntos.
Com o religioso silêncio, interrompido apenas pelo tilintar dos talheres e apressados para principiar um ritual iniciático, já estava preparado o ambiente para a evocação de lendas e tradições imemoriais ao redor de um Bucho Raiano. O anfitrião e confrade privar-se-ia de repetir os contos romanescos da sua infância e também nada diria sobre as múltiplas viagens ao interior de si próprio. Procuraria proporcionar uma atmosfera condigna, própria de um ritual legendário para favorecer o enlevo que brotaria espontaneamente das raízes e da memória.
Ambiente estranho este de estar em frente, melhor dito, em redor de um bucho. Todas as crenças, contos, lendas e produtos capitosos de uma terra se entremisturam para dar lugar ao dialogo amistoso e criativo que nos avivava o prazer de estarmos juntos. As histórias que cada um de nós tinha vivido ao longo da vida cruzavam-se com o olhar atento de um bucho que sabia observar, ouvir e interpelar para que a comunicação não se esgotasse num simples acto de levar à boca e que iria ter lugar dali a instantes. Este genuíno raiano de bucho pretendia assumir-se como uma caixa de ressonância, a transmitir-nos os ecos que evocavam a nostalgia e a saudade.
Mas este não era qualquer bucho. Era o Bucho Raiano! E já estávamos a esquecer este predicado distintivo e alusivo a culturas destinadas por natureza à ameaça e à extinção, simplesmente por estarem na fronteira e no interior. Porém, entre os convivas alguém as teria considerado ainda mais fecundas por terem resistido corajosamente entre dois mundos. A tradição teve a oportunidade de se afirmar ao longo dos séculos, mas não deixou de estar à escuta e com a porta aberta a outras culturas que nos alargavam os horizontes. Pudemos comparar, pudemos provar outros gostos, mas nem o rodar do tempo, nem as constantes passagens de forasteiros pela fronteira conseguiram destruir a tradição que se enraizou na nossa memória réptil, deixando-nos ficar um sabor constante e indelével que faz parte da nossa tradição cultural e gastronómica.
Este instinto de ir ao encontro e de observar tivemos o privilégio de o experimentar do cimo das serranias da nossa Serra da Malcata e dos vários montes que a constituem e a circundam. Das suas alturas pudemos olhar para mais longe, para outros mundos e não ficámos limitados aos horizontes que nos rodeavam, nem tão pouco asfixiados com o que tínhamos e comíamos.
E, a propósito do Bucho Raiano, já estávamos longe demais. É quando acordámos do nosso enlevo, já o professor Carvalho Rodrigues nos tinha conduzido para bem mais longe. Tínhamos passado várias fronteiras e estávamos já no Egipto, em companhia do Santo Antão. Este sim era um valente raiano e amigo dos buchos, das chouriças, dos porcos, dos presuntos, dos salpicões, das farinheiras e das farinhatas e de todas as tentações que de dia e de noite o assediavam. Não admira pois que também os grandes pintores como Jerónimo Bosch se tenham lembrado dele para o imortalizar numa pintura denominada as Tentações de Santo Antão, cujo belíssimo quadro, antes de chegar a Lisboa teria passado certamente pela raia sabugalense, itinerário fronteiriço obrigatório para chegar à capital do Reino.
O saco do bucho é um verdadeiro ninho de tentações. É o topo da raia humana atiçado por todas as seduções que nos assolam. A umas resistimos, mas a outras abrimos as portas, saboreando-as gostosamente até à medula dos ossos, inebriados com o prazer exacerbado da gula pecaminosa.
Que mistura esta da natureza tórrida, da concupiscência endiabrada e da ascética salamanquina ou avilena que se entrelaçam em vésperas de um tempo quaresmal, de deserto e de privações como se o mundo aqui terminasse!
Todo o saber acumulado num bucho raiano não caberá certamente na Livraria Orfeu, do Joaquim Pinto da Silva, observador atento aos sabores literários escondidos na raia beirã e que não deixava de manifestar a sua admiração pelos saberes acumulados numa peça de arte e tradição que se ia consumindo em cima de uma mesa à volta da qual não arredávamos pé. A sua Foz do Douro estava por um momento esquecida!
Eram os preparativos de um terceiro capítulo que se aproximava a passos largos. Tínhamos feito naquela noite uma longa viagem em companhia do fiel e solidário amigo Bucho Raiano. Agora, familiarizados com a sua amizade, iríamos com mais confiança ao seu encontro, em romagem peregrina, à escuta de um bom momento de inspiração e abertura a uma cultura e gastronomia ancestrais.
Joaquim Tenreira Martins
Perdoe-me, o estimado leitor, esta conversa tão ao correr da pena mas deixe-me dizer-lhe que a felicidade pode advir de um «quase nada».
Direi, em consequência, que, apesar da vida que nos consome, não é bom extinguir rasgos de esperança. Preferível será, aproveitar o simples e o natural como produtores de felicidade.
Pensando bem encontraremos prerrogativas. Temos, de fato, privilégios incríveis, susceptíveis de motivar felicidade pura e simples.
Quando, no mundo que habitamos, damos com quem seja feliz sem motivo bem visível costuma comentar-se: «está feliz por ter nascido».
Ora, ainda que assim não pareça, é mesmo isso que faz falta. É essa felicidade simples, sem motivos (aparentes), que promove a vida, alimentando-a em sucessões de meros momentos felizes.
Vendo bem, ter nascido e permanecer vivo é já uma enorme sorte por entre outras hipóteses. É, já, um enorme privilégio desfrutar o universo, o céu e a sua imensidão espacial, as estrelas, a terra, as montanhas e as planícies, o mar e toda esta harmonia inalterável. Nada mais belo que ver o sol renovar-se em cada dia, observar os campos, as flores, os animais, sentir a vida, pressentir os sons e odores da natureza, escutar o vento, as aves e as chuvas.
Será sensato esquecer tudo isto em favor de grandes ambições, de ambições desmedidas que, bem vistas as coisas, não passam de supérfluas?
Valerá, então, a pena parar para escutar, parar para olhar e, sim, aproveitar.
Desfrutemos antes que tudo se apague em silêncio porque mais depressa do que estamos preparados cessará a oportunidade de estarmos vivos. E, depois… findaremos. Ninguém mais se lembrará de nós. Ninguém se recordará que existimos e, ainda que alguns se recordem, esses, desaparecerão também. Assim, desapareceremos nós definitivamente.
Então, o mais importante, o verdadeiramente mais importante passará com extrema rapidez. Passará de forma incerta e inexplicável.
De resto, tudo na vida, mas mesmo tudo, será rápido e sem consequências. A única consequência importante é a própria vida, a vida que conseguirmos viver.
Não se pode, portanto desperdiçar qualquer pequena/grande felicidade nem deixar de utilizar, em qualquer circunstância, a sorte de viver.
Assim cumpriremos, com o universo, o dever (evidente) que ele nos merece, o dever de gratidão.
E hoje, estimado leitor, a minha crónica é, muito simplesmente, assim.
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
Comentários recentes