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Cá vamos a mais um memorialista do Soito, e sem dúvida aquele que melhor e mais cuidada forma deu aos seus valiosos escritos. Falamos de Eugénio dos Santos Duarte, homem de largas vivências e ampla experiência de vida, que fala do Soito de antigamente, lembrando pessoas, tradições, actividades, sabores e apresentando até um pequeno glossário com alguns termos do léxico que os soitenses usavam.
O livro «Baú da Memória» está repleto de referências aos sabores de antanho, desde logo com as fartas pândegas do Janadão, local onde os mancebos do Soito se banhavam e lavavam na ribeira, no dia que antecedia a inspecção militar. «Havia uma série de rituais associados à Inspecção. (…) Para o Janadão levavam carne (de vitela ou de borrego) e faziam um assado. Levavam, é claro, vinho e pão e começavam logo aí a festa.»
Também os casamentos eram, como hoje ainda são, ocasião de grande comezaina. Só que antigamente a comida era toda feita em casa, com os bons produtos da produção local, diferenciando-se contudo a ementa consoante as posses das famílias.
«A boda dos mais pobres constava de pão e bacalhau desfiado, azeitonas e vinho.
Os mais remediados já compravam e matavam uma cabra para guisarem com batatas ou com arroz, já confeccionavam um caldo de “grabanços” (grão-de-bico) e havia arroz-doce».
No Natal a ementa seguia também um receituário já antigo, com expoente no bacalhau com couves. Mas no Soito, que segundo Eugénio Duarte era uma terra solidária, os abastados distribuíam alguns produtos alimentares aos mais pobres. Exemplo disso era o do comerciante Joaquim Corracha, que oferecia «sardinhas, 2,5 dl de azeite e um pouco de arroz às pessoas mais carenciadas da freguesia para que tivessem uma Consoada melhor».
Em alguns trabalhos colectivos a gastronomia era rainha, como sucedia nas malhas, em que o jantar «consistia, geralmente, de batatas guisadas com carne de borrego ou com bacalhau». O mesmo sucedia nas matanças, em que vinha à mesa «caldo de “grabanços”, conhecido no Soito pelo caldo das matanças. Depois, na mesa, havia ainda bocados de barriga de porco (“seventre”) fritos. A seguir ao caldo seguia-se o fígado de porco guisado, com batatas, cozidas, à parte».
Sendo um livro de memórias, são muitos os aspectos curiosos referentes ao Soito de antigamente, de que é um bom exemplo a referência ao café do Ilívio Corracha, «inaugurado» em 1953, e onde se juntava a rapaziada da terra, por ter cerveja fresca, vinda do fundo de um poço, e até uma curiosa máquina de café, coisa muito rara na época. Além do mais no café do Ilívio «nunca faltavam os tremoços, os figos secos, as azeitonas e os ovos cozidos, para a rapaziada acompanhar a bebida».
Um livrinho muito bem estruturado e optimamente redigido, que constitui um soberbo repositório de pormenores da vida antiga do Soito que ficam como valioso documento para a posteridade.
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
leitaobatista@gmail.com
O Soito deu-nos já excelentes testemunhos do que foi a sua vida colectiva nas últimas décadas, através de livros escritos por pessoas simples, autênticos memorialistas, que escreveram e publicaram com a única pretensão de deixarem para a posteridade a sua visão da vida que viveram. Um exemplo disso é José Nabais, o contrabandista que emigrou para França onde fundou a SONAB, uma empresa de sucesso.
O livro «José Clandestino», de escrita bilingue (Francês e Português), da autoria de José Nabais, revela sobretudo uma imensa vontade de partilhar uma história de vida. José Nabais é emigrante radicado em França, saído do Soito nas primeiras vagas de raianos que procuraram fugir à miséria. E foi um emigrante que teve sucesso, ultrapassando com luta e determinação as dificuldades que se atravessaram no caminho.
Escrito na primeira pessoa, o texto, ora bem estruturado, ora simplório, dando nota da falta de uma boa revisão ortográfica, é a confidência de uma vida e de uma fabulosa aventura. De criança José Nabais, o mais velho de uma boa prole de irmãos, ajudava o pai nas tarefas do campo e, na adolescência, tornou-se contrabandista.
O pai era severo, como aliás rígidos eram os demais pais naquela época de grandes trabalhos e constantes privações. Só ou acompanhado, a pé ou montado num cavalo, com pesado carrego às costas, viveu o perigo daquelas jornadas nocturnas, à mercê dos encontros com guardas-fiscais ou carabineiros.
Comia-se mal na aldeia, que os tempos eram difíceis e os mimos não abundavam. Só que o corpo tinha de responder à necessidade de trabalhar, para assim se remediar a vida: «Apenas quando ia trabalhar para os campos ou fazer contrabando é que me davam pão de trigo fino ou um pedacito de chouriço ou de carne».
No geral dos dias comia-se um caldo escoado muito especial, servido pela mãe, logo de manhã:
«Coziam-se em água as batatas cortadas às rodelas. Engolíamos o caldo num instante. Depois tínhamos direito às batatas, mas com pouco azeite. Às vezes punha-se a panela das batatas em cima da mesa. No meio da mesma encontrava-se um prato onde o azeite flutuava no cimo da água. Tínhamos o direito de pegar nas rodelas das batatas e de as molhar no azeite mas só de um lado, para poupar o azeite.»
Depois, aos 17 anos, José Nabais parte clandestino para França. Foge da terra e da miséria, no rasto de uma esperança no futuro. Foi a salto, entregue a passadores. Rasgou uma fotografia em duas partes, entregando uma à mãe e guardando a outra no bolso. Quando, após longos dias andando a pé ou de carro, passando fome e sede, chegou ao destino, entregou a sua metade da fotografia ao passador para este a devolver ao pai e receber o que faltava do pagamento do serviço.
José viveu num bairro de lata, numa simples barraca, de volta com vários conterrâneos que compartilhavam mesa, cama e a demais miséria. Apanhou piolhos, sentiu o gelo das noites de inverno, foi a pé ou de bicicleta para o trabalho. Mas o esforço e o sentido de responsabilidade trouxeram-lhe a felicidade. Vingou como trabalhador, passou de servente a pedreiro e depois a empreiteiro. Em breve formou uma empresa, a SONAB, que chegou a empregar largas dezenas de trabalhadores de diferentes nacionalidades, e executou serviços na área da construção em toda a França e até no estrangeiro.
Um DVD acompanha o livro, contendo uma entrevista a José Nabais e filmagens sobre o Soito nos dias de hoje.
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
leitaobatista@gmail.com
Acabo de ler um livro que há uns anos comecei a folhear e depois pousei, agarrando-me a outras leituras de ocasião. Trata-se de «Os Ratinhos», de Luís Coelho Albernaz, um romance social de raiz regional, cuja acção se desenvolve na Beira e no Alentejo, tendo por pano de fundo os movimentos migratórios de beirões que debandavam para o Sul à cata de sustento, sujeitando-se a uma vida dura e cruel.
Diria que é um romance demasiado cândido, que reporta a vida de um pobre mas inteligente rapaz que foge à miséria e aos maus-tratos do patrão e vai à aventura, de mistura com os «ratinhos» que demandam o Alentejo. Trabalhador, honesto e ambicioso o jovem trepa a pulso na vida, trabalhando e estudando sob a protecção de um padre rico que com ele simpatizou. Formado em Direito, o narrador deixa de lhe chamar António, passando a referir-se-lhe como o Doutor António, e coloca-o a ir de volta às berças, onde ajuda financeiramente a família e os amigos de infância e recupera o amor da Emilinha, que o julgava desaparecido para sempre.
A par do cultivo das virtudes de quem sobe duramente na vida, transformando-se de pobre em rico, em prémio da inteligência e do trabalho, o livro fala-nos da epopeia dos desventurados da Beira que desciam ao Alentejo. Lá trabalhavam durante meses a fio, envolvendo-se nas tarefas sazonais. Seguiam em grupo, orientados por um capataz que tinha a responsabilidade de falar com os latifundiários e os seus feitores, de manter a coesão do grupo e de a todos trazer de volta no final da campanha.
Trabalhavam arduamente e viviam em condições miseráveis. Dormiam em tarimbas, sobre palha impregnada de percevejos, arranchavam onde calhava, comendo papas e migas, servindo-se todos da mesma gamela:
«Naquele dia cozeram feijões com saramagos e carne de porco, mais gorda que magra. Pronto o cozinhado, foi este distribuído por pequenos recipientes onde os Ratinhos de casqueiro numa mão e colher na outra, se iam servir.»
Muito trabalho e mau passadio para estes beirões que iam para terra alheia em busca de melhor vida, mas de onde regressavam com apenas alguns cobres, que mal chegavam para pagar as dívidas.
No que toca à gastronomia, é digna de nota a referência ao saboroso caldo verde que o «Doutor António» deglutiu quando regressou à aldeia, em casa da própria irmã, que o não reconheceu dados os anos que passaram, o seu vestir escrupuloso e os óculos que usava e lhe davam um ar selecto.
«A Sara chamou:
– Vamos para a mesa. O senhor Doutor fica ali – e indicou-lhe a parte cimeira da mesa. – Não sei se lá para o Alentejo fazem deste caldo, mas é uma das especialidades cá da Beira. Há quem lhe deite umas rodelas de chouriça, mas eu penso que isso vai tirar o verdadeiro gosto do caldo verde. Tira-lhe o que tem de melhor que é precisamente o sabor inconfundível das folhas verdes da couve galega. Deitar chouriça no caldo verde, é como quem deita aguardente no bom café: estraga uma coisa e outra.
Sentaram-se. O Doutor viu tanta sopa naquele prato grande e profundo que julgou impossível caber-lhe no estômago. Ia tentar comer metade para a irmã não ficar desgostosa, já que nenhuma cozinheira gosta que comam pouco dos seus cozinhados.
O Doutor comer a sopa toda e lambeu os beiços. (…) Em seguida chegou o arroz de cabrito que foi repetido por todos.»
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
leitaobatista@gmail.com
Voltamos ao livro «O Quinto Elemento do Circuito 5», que enquadra uma interessante e perturbante aventura pelo espaço e pelo tempo histórico, onde também há sabores gastronómicos a redescobrir.
Ainda há dias falámos neste pequeno e interessante livro escrito por Alcino Póvoas Cunha, jurista nascido no Sabugal em 1963, que decidiu aventurar-se no campo literário.
Quem ler o livro não poderá ficar indiferente, tal o interesse criado com as rocambolescas aventuras de alguém que, rompendo a barreira do tempo, retrocede até à antiguidade e redescobre a história que já estudou e que por isso bem conhece.
A acção começa neste tempo, nos alvores do século XXI, quando o personagem principal sofreu um acidente de viação que o atira para fora da estrada e o faz perder os sentidos. Volta a si num mundo diferente e estranho, e dali viaja ao tempo passado, recuando dois mil anos, vivendo então uma aventura fantástica em contacto com os povos da antiguidade.
Ora entre os zelotas, ora entre os romanos, experimentou os trajes que usavam, exprimiu-se na língua hebraica e na latina, passou por diversas provações, integrando-se como pode na aventura que a situação lhe proporcionou. Também teve que se alimentar e, a um ponto, quando estava entre o povo zelota, e conheceu um velho sacerdote chamado Binus, o mesmo encarregou-o de uma importante missão, tratando porém primeiro de lhe oferecer comida. O aventureiro saboreou com gosto a comida mediterrânica que o ancião lhe ofertou.
«O Binus indicou-me um local onde havia uma mesa de pedra que era a continuidade saliente de uma rocha e uns bancos de madeira, pediu-me para me sentar, foi buscar água e comida, bem precisava de comer e beber. A pedra que a Venga me pôs na fronte dava jeito por aqui mas não há nada como saborear a verdadeira comida.
Regressou o ancião com legumes, azeitonas, figos tâmaras e, principalmente, um tipo muito rústico de pão. Também água. Saciei-me, mas percebi um gesto de censura de todos os presentes que, e observavam e registavam todos os meus movimentos.»
Satisfeito e bem alimentado o personagem seguiu o seu caminho, procurando cumprir a missão que recebeu, vivendo uma sucessão de interessantes aventuras.
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
leitaobatista@gmail.com
Um português da Bismula chamado Reis e um espanhol da Catalunha conhecido por Salvat, encontram-se em França, onde ambos estão emigrados, e falam do seu passado. Dessa conversa resulta a descrição da fantástica desventura do contrabandista Manuel José Brigas, abatido a tiro pelos carabineiros e enterrado em Espanha como um vil malfeitor.
No livro «Três Vidas ao Espelho», Manuel da Silva Ramos, revela o gozo com que se pode contar jogando com as palavras e os conceitos. Com humor, dá-se expressão a uma história fantástica, onde o drama da vida antiga dos habitantes da Bismula, no concelho do Sabugal, se mistura com as ironias da vida. Há nos textos uma espécie de efabulação criativa, exagerando com mestria as formas de vida de antigamente, introduzindo-lhe uma espécie de magia.
Toma-se recurso aos termos populares, algo esquecidos no linguajar actual, os personagens têm apelidos próprios da gente da raia e abordam-se as formas de vida das gentes de antanho nas aldeias pegadas a Espanha, que lavravam as terras e contrabandeavam. Mas no curso das descrições há uma leve transformação do real numa espécie de sonho prodigioso. Exemplo disso é a descrição da visita que Manuel José Brigas fez ao homem que fazia queijos num lugar chamado Poço do Inferno, junto à Malhada Sorda: «A porta estava escancarada e no estábulo meio destruído via-se um homem a ordenhar uma cabra. Ao lado tinha um picheiro e uma francela.» O cabreiro era também vidente e anuncia-lhe que «a morte já está à espera entre Almedilha e Espeja», com referência ao lugar onde o intrépido Brigas tombará alvejado pelo guarda civil Canário.
Para além do drama de Brigas, que se vai preparando para a morte, que sabe virá breve e de forma cruel, fala-se na vida na aldeia, onde as crianças mais fracas sucumbiam nos primeiros tempos de vida, e os habitantes que sobrevinham à mortalidade nos verdes anos, se dedicavam ao cultivo da terra agreste e se aventuravam no negócio do contrabando, desafiando a vigilância apertada das autoridades.
E na noite fatídica, nessa façanha de contrabandista, Brigas também teve de se alimentar com o que levava no farnel:
«Já no trilho de terra que condizia à Quinta das Batoquinhas parou para comer uma bucha. Já estava a andar há três horas e brevemente chegaria à fronteira e nessa altura precisaria de muitas forças.
Tirou do alforge da sua mula castanha a saca com o pão centeio e o toucinho e começou a comer. O vinho do odre fez-lhe bem e aqueceu-o. A noite arrefecera. Sabia que nestas recônditas planarias a noite era um brâmane que arejava o mundo com as suas vestes cor de açafrão.»
E o povo também prova outros sabores: «Chegámos a casa e já fumegavam as castanhas. Doce caldudo! Mergulhei a colher no líquido branco e senti-me outra vez livre. O cansaço tinha desaparecido. E à medida que comia as castanhas, uma a uma, extraídas de uma mina dourada de leite imaculado, pensava que a vida era desgostante mas um minuto de paz e sossego num lar pobre alumiado pelos troncos esbraseados de uma lareira antiquíssima valiam todos os volfrâmios do mundo.»
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
leitaobatista@gmail.com
Era frugal mas de grande valor alimentício, a comida de antigamente do povo português, sobretudo ao nível das calorias, muito necessárias para quem trabalhava duro. Na raia sabugalense a população comia em abundância e variava a sua alimentação, embora servindo-se apenas do que a terra dava.
«Deve ser muito difícil encontrar uma região com uma culinária tão variada e tão original», revelou Porfírio Ramos no seu livro «Memórias de Alfaiates», onde retrata a raia sabugalense nos tempos idos da sua infância.
Porfírio Ramos é, sem margem para dúvidas, o maior colector das ementas tradicionais das terras da raia. O seu livro dedica um longo capítulo à gastronomia tradicional sabugalense, descrevendo em pormenor o rico sabor das ementas que o povo preparava para alimento de todos os dias. E, tenha-se em atenção, aborda apenas a alimentação quotidiana, deixando de lado os pratos de maior sumptuosidade, que a dona da casa confeccionava apenas nos chamados dias nomeados, que era quando havia festa na aldeia e tinha de receber visitas de portas a dentro.
O autor adverte desde logo que tudo era preparado com o que o aldeão produzia: «Têm a característica de serem pratos de confecção barata e simples, parecendo, alguns, com um certo aproveitamento de restos ou das peças mais baratas de animais como o porco. Mas, acima de tudo, são pratos de uma originalidade extrema.»
E a maior singularidade, está no chamado caldo de vaginas secas, nome que alguns revelam dificuldade em pronunciar o que sucede por simples ignorância. E explica: «Acertemos que vagens, grandes ou pequenas, são sempre vagens e que feijão é sempre feijão. O que não tem jeito nenhum e virem chamar feijão às vagens, como fazem em Lisboa e Porto, onde chamam sopa de feijão verde à sopa de vagens de feijão. Ora estas muitas vezes nem feijão chegam a ter porque, para se poderem comer têm de ser colhidas ainda tenrinhas, isto é, enquanto são ainda vagens pequeninas, ou, dito de outra forma mais simples, empregando o respectivo diminutivo, vaginas.»
Depois explica que as vaginas são colhidas e secas para assim se conservarem, sendo portanto este caldo prato para qualquer época do ano.
«Cozem-se com batatas às rodelas, como se faz com a sopa, e temperam-se como os vulgares pratos, convindo que seja com banha de porco e, claro, pimento espanhol.
Deve levar também pedaços de toucinho para ficarem ainda mais macias e para servir de apeguilho. Podem misturar-se pedacinhos de outras carnes ao gosto de cada um.»
Ora aqui temos um prato saboroso e de alto valor alimentício, bem revelador da boa gastronomia tradicional, e da originalidade que a mesma guarda.
O livro de Porfírio Ramos fala ainda de outras ementas raianas originais, hoje quase desaparecidas, como o caldo escoado, as batatas da gadanha, as migas e as sopas de cavalo cansado.
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
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Ferreira de Castro é dos mais consagrados escritores portugueses, com uma obra literária notável, de sentido verdadeiramente universal. Soube como ninguém abordar os grandes dramas da humanidade, colocados em forma de romance e pintados com palavras vivas e sinceras.
Redescobrir Ferreira de Castro é um verdadeiro desafio para os jovens de hoje. As suas obras são universais e estão traduzidas em diversas línguas, num sinal evidente da sua importância.
Nasceu a 24 de Maio de 1898, em Ossela, concelho de Oliveira de Azeméis, filho de camponeses pobres. Órfão de pai aos oito anos, sobrevive com dificuldades e, apenas com doze anos, vai para o Brasil em busca de melhor sorte, entregue a si mesmo. Já no outro lado do Atlântico, a criança é atirada para as margens do rio Madeira, em plena selva da Amazónia, tendo como destino o trabalho árduo do seringal, na extracção da borracha.
Ali passou quatro anos de sofrimento, trabalhando como um escravo, até conseguir ir para Belém, capital do Pará, onde subsiste aceitando trabalhos ocasionais. Procura estudar por sua mesma iniciativa, frequentando a biblioteca da cidade. Ao gosto de ler juntou o da escrita e começou a colaborar na imprensa local, onde se tornou notado.
Em 1928 escreveu o livro «Emigrantes», onde se realça a dureza da aventura de quem parte para longe em busca de melhor vida. Já em 1930 escreveu «A Selva», um livro notável que foi êxito imediato. O livro fala da vida dura no seringal, baseada na sua própria experiência.
É formidável o realismo na descrição da Amazónia e de quem a explora e ali é explorado. A selva comove o leitor, porque a força da natureza reduz ao mínimo o valor da vida humana. O seringueiro, o seu patrão e os capatazes, duros e desumanos, não passam de vermes, face ao gigantismo da selva e aos perigos que a mesma guarda.
A aventura do jovem português Alberto, enviado pelo tio para o seringal, é afinal a narrativa da vida miserável dos homens da sua condição que se embrenham nos perigos da floresta para sobreviver, dando riqueza aos que os exploram sem piedade.
A viagem pelo rio Madeira em direcção ao seringal é desde logo reveladora da miséria destes homens abandonados. Amontoados no porão do navio, são tratados como gado, até na frugal alimentação a que têm direito.
«Surgia no convés um caldeirão fumegante, que dois criados traziam pelas alças, ao lado de um terceiro equilibrando sobre os braços, de encontro ao peito, alta rima de pratos, todos de folha, velhos e amolgados.
Os cearenses moveram-se, formaram roda junto do negro panelão e, com rosto alegre e ditos jocosos, iam recebendo o seu almoço, aquelas duas gadanhas de carne com feijão preto que o copeiro distribuía a cada um.»
Do barco, o «Justo Chermont», os homens desceram no cais de destino e foram depois encaminhados pelas intricadas passagens da floresta, cada qual em direcção a uma clareira onde residiriam e trabalhariam na recolha da borracha.
E a prosa limpa e maravilhosa de Ferreira de Castro mostra com limpidez, o sofrimento e a obstinação desta gente desditosa que foi atirada para o âmago da floresta bárbara e avassaladora.
Passava-se mal no interior da selva. O patrão da borracha fornecia, contra pagamento, ou assentando no livro de fiados, alguma farinha de mandioca, arroz, feijão e café, e, mais raramente, carne seca que ali chegava vinda das estâncias do sul. Porém para sobreviver o seringueiro tinha de pescar e caçar, para além da sua tarefa diária, a que não podia faltar.
Alberto matava a fome negra comendo do que lhe oferecia o seu companheiro Firmino, um mulato cearense, exímio pescador e caçador: «sentaram-se os dois na alpendrada (…). Na tigela crescia a farinha de água e por cima estendia-se, muito acarvoada, uma lasca de pirarucu, que lembrava a Alberto o bacalhau da terra nativa. A cada fêvera que metia na boca, Firmino juntava rubra malagueta».
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
leitaobatista@gmail.com
Fruto de vivências quotidianas e tendo por substância as lendas antigas, os contos que se narravam ao serão e a própria imaginação do autor, veio ao nascedoiro um conjunto de histórias de forte paladar popular que retratam a alma do povo do nordeste transmontano.
Cada texto inserto no volume «Contos do Nordeste» de Jorge Tuela, é uma representação das formas de vida de antigamente em terras que ficavam atrás do mundo.
Em linguagem popular, ou vernácula, em homenagem às formas de expressão do seu povo, Jorge Tuela leva o leitor ao âmago das aldeias recônditas de Trás-os-Montes. Cada conto é um retrato onde se vêm e ouvem pastores guardando rebanhos, contrabandistas e emigrantes percorrendo as serras, cavadores e lavradores fainando a terra. Pelo meio surgem os dramas da vida antiga, onde as dificuldades estavam sempre presentes. Mas há também as peripécias das personagens, dando um ar prazenteiro aos contos populares.
E a alimentação também está presente, pois esta gente forte e corajosa comia em abundância para ganhar forças para os trabalhos duros em que estava envolvida. Era porém uma alimentação em quantidade e de fraca variedade, tirante os dias nomeados, em que o rancho familiar surgia melhorado.
Revelador desta contenção alimentícia, pensando sempre em guardar o melhor para as festividades e para os dias dos grandes trabalhos colectivos, é o conto «O Meleiro», que retrata o problema que era alimentar um criado esquisito à mesa e que só comia uma bucha se fosse acompanhada de bom conduto.
«Certo homem tinha um criado muito biqueiro. Torcia o nariz a qualquer prato menos suculento e detestava batatas cozidas, se não fossem acompanhadas de qualquer pitéu. Caldo de abóbora, nem vê-lo. Desviava a malga para o lado com ares de vómito e esperava que aparecesse pela mesa algo melhor. Se, por acaso, topava nabos no prato, metia-os muitos disfarçadamente no bolso da jaqueta e, em pleno campo, arrebolava com eles o mais alto que podia, consolando-se todo de os ver esborrachar contra o chão. O amo andava preocupado com o caso, pois, pensava ele, quem não come em condições, não pode trabalhar em termos.»
Quem era assim primoroso no comer e se assoldadava para trabalhar, como era o caso deste rapaz transmontano, criava um problema sério, pois não se contentando com a alimentação frugal que era comum degustar, dava forte desbaste na economia doméstica.
E quem mais se lamentava era a patroa: «Como o rapaz não engolia côdea de pão sem untura ou doçaria, cada vez que era preciso mandá-lo todo o dia para o campo, ao dar-lhe a merenda, punha-se a olhar para o fumeiro, para a toucinheira ou para as malgas de marmelada e ficava muito triste ao ver que tudo desaparecia…»
Certo dia o amo decidiu dar-lhe uma lição e arrancou com ele para o campo levando apenas pão no bornal e prometendo ao rapaz que junto ao batatal que iriam sachar passava todos os dias um meleiro, a quem compraria mel para barrarem o pão. O moço foi feliz e contente e até trabalhou com gosto. Quando lhe deu a fome perguntou quando passaria o meleiro, dizendo-lhe o amo que não tardaria. Mas de facto tardava e, por mais que olhasse, não lobrigava o homem e o macho carregado com cântaros de mel, de que lhe falava o patrão.
A um ponto a fome apertou de tal maneira que o jovem disse para o amo que bem gostava de esperar pelo mel, mas já não podia aguentar mais.
«Procuraram a água fresca de uma fonte próxima, sentaram-se à sombra de um carvalho e atiraram-se ao centeio como Santiago aos mouros.
– Come-se bem o pão, mesmo sozinho, não? – inquiriu o amo.
– Se come, nunca me soube tão bem na vida.
– Já me dizia o meu avô que não havia melhor meleiro que a fome.»
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
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O rei D. Carlos passava longos períodos no Paço Ducal de Vila Viçosa, onde ia caçar nas vastas propriedades da Casa de Bragança. A caça era apenas uma das suas paixões, juntando-se ao prazer de viajar, de navegar e explorar o oceano, de pintar e de se bem alimentar.
Miguel Sousa Tavares descreve no início do seu romance «Equador» aspectos da vida de D. Carlos em Vila Viçosa, onde o intrépido Luís Bernardo acorreu, a pedido do rei, para receber o convite de se tornar governador de S. Tomé o Príncipe. O jovem jurista, que mal imaginava as peripécias que a vida lhe traria a partir desse passo, acompanhou o monarca e os seus demais convidados num almoço suculento que se seguiu a uma caçada.
D. Carlos desde logo o advertiu, quando o recebeu nos seus aposentos: «Espero que traga fome da sua viagem porque vai ver que se come muito bem por estas paragens». Isso mesmo pôde constar o herói do romance de Miguel Sousa Tavares, que degustou o «almoço de homens» com que o rei brindou nesse dia os seus convidados.
«Cada lugar tinha um menu colocado à frente e todos fizeram questão de o ler com interesse. D. Carlos era conhecido por dar muita importância àqueles menus e, às vezes até, em Vila Viçosa ou a bordo do iate real Amélia, era o próprio rei que os escrevia do seu punho, fazendo-os acompanhar de um desenho da sua autoria. Naquele dia o chef de Vila Viçosa propunha aos cavalheiros do andar de cima:
Potage de tomates
Oeufs à La Périgueux
Escalopes de foie de veau aux fines herbes
Filet de pore frai, roti
Langue et jambon froid
Epinards au velouté
Petit gateaux de plomb
Servida a sopa de tomate quente e o vinho branco da Vidigueira, os caçadores sacudiram o seu torpor e a conversa começou a animar-se (…).
Com o vinho tinto a conversa tornou-se mais séria e evoluiu para a situação internacional – todo um mundo de promessas. (…)
Com o café, serviu-se um Porto Delaforce de 1848, um e outro excelentes. Depois, D. Carlos levantou-se arrastadamente e toda a troupe o seguiu para o andar de baixo, para uma pequena sala, aquecida por duas lareiras e onde os esperavam uma mesa de cognacs e um caixa de charutos em prata, de que quase todos se foram servindo à vez.»
No romance a ficção tem por enquadramento factos históricos que se sucederam no início do século XX, correspondendo aos últimos anos da Monarquia portuguesa. A República estava anunciada face aos problemas que o rei sucessivamente enfrentava, não apenas em Portugal, como também nas colónias. «Equador» entra pela polémica do trabalho escravo, persistente nas nossas terra de além-mar, mesmo após a abolição da escravatura.
Luís Bernardo, homem culto e sedutor, interessado na questão colonial, viverá, após o banquete real servido em Vila Viçosa uma eloquente aventura em África, onde outros sabores o esperam.
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
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Ramalho Ortigão ficou conhecido pela sua escrita sagaz e irónica, com criticas aos políticos, aos restos da velha aristocracia, aos homens de negócios e à sociedade em geral.
«As Farpas» é o seu livro mais conhecido, que teve a sua génese em 1871, na forma de folhetos, escritos de parceria com o seu ex-discípulo Eça de Queiroz, e primeiramente compilados sob a epígrafe «Uma Campanha Alegre». Depois, já de sua inteira responsabilidade (Eça iniciara uma carreira consular no estrangeiro), Ramalho Ortigão redige e publica «As Farpas» em sucessivos volumes.
Tendo formado o grupo dos Vencidos da Vida, com outros escritores de grande prestígio, escreveu e publicou abundantes textos em que igualmente caricaturou a sociedade portuguesa de então.
Em 1944, já postumamente, surge o volume «Costumes e Perfis», onde se compilaram artigos em que ridiculariza costumes, personagens e instituições do seu tempo.
De permeio com as sátiras, este volume tem também um texto curioso e muito significativo, intitulado «Autobiografia», que Ramalho Ortigão redigira originalmente no álbum de seu filho. Depois de divagar sobre as suas origens modestas e sobre os seus sonhos de criança, revela a revolução que se sucedeu após a leitura ocasional de «As Viagens na Minha Terra» de Almeida Garrett. Com essa leitura ganhou o gosto pelas letras, o que o levaria a ser também escritor, mas um escritor de forte intervenção social e política. «O Acaso fez de mim um crítico. Foi um desvio de inclinação a que me conservei fiel. O meu fundo é de poeta lírico».
Os textos de Ramalho Ortigão compilados em «Costumes e Perfis», têm também referências gastronómicas, que aqui importa assinalar. Desde logo em «A Padeira de Avintes», onde ironicamente se fala de uma padeira, que afinal era barqueira, e que se dizia de Avintes, quando na verdade era de toda a borda de água «desde o Areirinho até ao ribeiro de Arnelas». A barqueira passa gentes e mercadorias entre as margens do Douro e também sacha e monda a horta na sua aldeia ribeirinha. E mais: «Vem à cidade, onde umas vezes vende carne de porco, outras vezes os famosos biscoitos de tosta, morenos e estalejantes, bem conhecidos nos chás pacatos das reuniões familiares e das assembleias recreativas, ou a boroa já de milho branco já de pão de mistura, cuja grossa côdea lourejante, esquadraçada em manchas de escumalho cor de mel, cintila ao sol como polvilhada de âmbar.»
Revelador também dos bons sabores é o texto «Rosa Araújo», de suprema e refinada ironia, onde, elogiando, ridiculariza um filho de Portugal, de nome Rosa Araújo: presidente da Câmara e «primeiro obeso de Lisboa», que um dia emprestou as suas calças a um elefante que lhas pedira com medo que lhe rebentasse a pele por ter comido muito. E onde entra a gastronomia? Na referência ao pastel Rosa Araújo: «Ele deu o nome a um pastel delicioso; ou antes, um delicioso pastel de sua invenção lhe deu o nome a ele.»
Ora o caso não é original, pois é absolutamente comparável com o do romancista gaulês François René de Chateaubriand: «Chateaubriand teve a fortuna de dar o seu nome a uma especialidade de bife. Daí a imortalidade desse génio através das diversas gerações (…). O bife Chateaubriand ficou, e será eterno enquanto no universo houver homens com apetite, e bois com lombo.»
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
leitaobatista@gmail.com
Voltamos a Trindade Coelho, distinto jurista e escritor, natural do Mogadouro, que iniciou a vida profissional no Sabugal, como delegado do procurador régio. Em referência anterior falámos dos sabores dos contos insertos no seu livro «Os Meus Amores», impondo-se agora seguir por novo trilho, ao encontro de outro dos seus livros emblemáticos: o «In Illo Tempore».
Esta obra literária é considerada uma das maiores evocações à vida estudantil na lendária e académica cidade de Coimbra, também chamada a «Lusa Atenas». São lembranças de juventude, enquadradas no ambiente académico dos jovens de todo o país que na cidade do Mondego se encontravam para frequentar a universidade.
Nos finais do século XIX a maior parte dos estudantes permaneciam em Coimbra durante todo o ano lectivo, alojados em quartos alugados ou arregimentados em repúblicas. Eram tempos de diversão, de arruaça, de namoro eloquente, de amizade, de gozo e de partidas.
No meio estudantil a súcia e o bom petisco faziam parte da vida quotidiana. E, para além da descrição das figuras típicas e das cenas de maior humor, o autor não deixa de referir os momentos de lazer, quando a malta se juntava em farta patuscada, compondo e cantando versalhadas espontâneas, exaladas pelos que tinham veia poética. À maneira das terras do interior, donde provinha boa parte da malta, também se desfechava a expressão «entre quem é» quando quem quera batesse à porta. Do que se comia, parco que fosse, a todos se ofertava, num espírito de partilha que os estudantes trouxeram das terras distantes de onde provinham.
Trindade Coelho fala-nos mesmo de uma célebre república de varudos transmontanos que, fartos de comer os «gaspachos» que as criadas lhes serviam, decidiram trazer da terra um moço com ares de patego, mas muito bom cozinheiro, para lhes dar preparo aos bons paladares que em Coimbra queriam degustar. Assentando praça, logo o patusco tratou de confeccionar a boa comida transmontana, passando a casa a receber de amiúde hostes de estudantes sequiosos de provar as iguarias do mestre de culinária, que fez largo sucesso na cidade.
De entre as descrições da vida coimbrã, cabe aqui realçar a diferenciação entre os estudantes ricos, colectores de abonada mesada, mas senhores de desmandos que os traziam quase sempre empenhados e mal alimentados, e os estudantes remediados, como o era o autor, de mais modesto pecúlio, mas que tinham melhor viver. Os filhos dos ricos levavam vida desregrada, pensando que o dinheiro lhes bondava para tudo, mas quando davam fé estavam endividados e a recorrer às casas de prego. E Trindade Coelho explicita com mestria:
«Não acontecia assim com os remediados! Esses governavam-se! Em regra, arranchavam todos em república, em qualquer rua do Bairro Alto, em cujo topo ficava a Universidade; – e eles e uma criada, em geral “já de certa idade”, lá se arranjavam de portas a dentro, – e arranjavam-se bem: almocinho sempre de garfo, metendo os seus ovos e o seu bife, café com leite e pão com manteiga, ou chá! Ao jantar, a bela da sopa, o belo do cozido, os seus croquetes e coisa parecida, um regalado “prato de meio”, frutas à sobremesa, queijo, café. – e Baco sempre presidindo, e a Alegria!».
«In Illo Tempore», um livro que se lê de um fôlego, tais os quadros pitorescos da vida dos estudantes em Coimbra que ali se descerram.
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
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Carlos Alberto Marques, professor nascido em Vale de Espinho, freguesia raiana do concelho do Sabugal, deixou preciosíssimos estudos acerca da vida dos povos de Riba Côa, com abundantes referências aos costumes e tradições populares.
Professor no liceu da Guarda, onde leccionou Geografia, Carlos Alberto Marques, foi um dos mais prestigiados pedagogos do seu tempo, dado o empenho que colocava na docência e a permanente disponibilidade para o estudo.
De cariz científico, enquanto geógrafo, realizou e publicou dois estudos fundamentais: «A Serra da Estrela» e «A Bacia Hidrográfica do Côa». Ambos os livros foram fruto do seu labor, sobretudo visível no trabalho de campo, que realizou em complemento à leitura dos estudos já publicados. De lápis e bloco de notas em punho, o «Geógrafo da Côa», come lhe chamou Pinharanda Gomes, embrenhava-se nos barrocais da serra ou nos desfiladeiros dos rios, anotando a vegetação, a fauna, a composição dos solos e das rochas e demais elementos de interesse para a caracterização dos lugares.
Amante do conhecimento, também estudou os costumes e as tradições do povo raiano, culminando na publicação do livro «Notas Etnográficas de Riba Côa», onde reuniu alguns dos trabalhos saídos da sua pena. Aí descreve as técnicas ancestrais de caça e pesca usadas pelo povo na luta pela sobrevivência. Também anota as impressões de uma montaria aos javalis na serra da Marvana, onde costumava acompanhar o grande monteiro da raia, Francisco Maria Manso. Fala também da inevitável capeia arraiana, nas fogueiras de S. João e S. Pedro, assim como das artimanhas dos contrabandistas de Quadrazais e do cerimonial religioso e profano designado por «Fama dos Santos».
Elucidativo, é o texto intitulado «As Matanças», em que descreve um dia passado em casa de Manuel Coelho, lavrador da Junça, localidade do concelho de Almeida. Nessa manhã o lavrador, família e amigos mataram o marrano, trabalho de cerimonial antigo, pelo qual se garantia a abastança da casa para todo o ano e que nenhum dos habitantes remediados da aldeia dispensava.
Depois do porco morto, chamuscado, lavado, dependurado e aberto, vem o almoço da matança que junta toda a família e os que vieram ajudar no trabalho:
«O tardio almoço está nas mesas (a dos matadores, a dos velhos e mulheres e a das crianças) e toda a gente se lava em duas águas. Muito vinho, substanciosos pratos de carne de porco do ano anterior, arroz, pão e o indispensável e fresquíssimo fígado assado, com azeite e vinagre, ou guisado e com batatas cozidas à parte. Há saúdes e cumprimentos: “que de hoje a um ano o vinho corra pelo mesmo cano e se mate outro marrano, que Deus dê saúde aos de casa para comerem o porco, que a alegria e a paz reinem sempre naquela casa como no presente dia”… Depois a reza, a acção de graças e os Padres-Nossos pelas almas dos mortos da família. As raparigas lavam e arrumam as louças, enchem as morcelas, cosem as tripas enquanto os homens vão à sua vida ou jogam a bisca, entornando copos de vinho.»
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
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A sabedoria popular guarda sabores antigos que tomam parte da nossa cultura e dos nossos afectos, como o fez notar o escritor Célio Rolinho Pires, grande conhecedor dos usos e costumes do povo.
Conhecido pelos seus estudos e escritos sobre o valor das pedras que povoam os horizontes da nossa região beirã, Célio Rolinho Pires, natural de Pêga, é também um revelador de afectos. É neste espírito que se enquadra o seu livro de recordações intitulado «Rosas de Santa Maria», publicado em 1997. É um livro de vivências e de saudades de um tempo que só a memória conserva. Nesse tempo o ciclo anual da vida aldeã estava perfeitamente demarcado, inclusive na gastronomia, com ementas próprias em cada época.
De todas as quadras anuais ressalta o Entrudo, tempo de excessos em toda a linha, incluindo na alimentação. A carne reinava neste época, como que a prepar o corpo para as privações e exigências da Quaresma. Dentre as iguarias deste tempo de festança pontuava o bucho servido com grelos e batata cozida:
«A ementa típica para esta quadra é guardada intencionalmente no masseirão ou salgadeira: pé de porco, orelha e quiçá o rabo, salvo seja, tão simplesmente cozidos na altura ou previamente condimentados e “enchidos” no estômago ou na bexiga do falecido bácoro de que resulta o tão falado bucho, paio ou palaio. Curtido e seco no fumeiro, cozido ao lume, em panela de ferro, com batatas e grelos de nabos, é comer e gritar por mais.»
A saborosa citação foi retirada do capítulo «o ciclo dos vivos», que nos dá conta das andanças periódicas que sujeitavam o viver colectivo nas aldeias de antanho. Ali se lamentam as tradições perdidas e a descaracterização da vida aldeã com a progressiva ausência de fenómenos gregários que o tempo cilindrou impiedosamente.
A referência à tradição alimentar torna premente a importância da recuperação de sabores antigos, onde exista uma réstia da naturalidade dos alimentos e onde se reponham as formas de cozinhar e os segredos que a cozinheira conhecia e que faziam com que produtos simples e até banais, viessem à mesa transformados em iguarias de divinal sabor e riquíssimo teor alimentício.
O livro «Rosas de Santa Maria» é pois um repositório de memórias, onde perdura o sentimento do navegador que há muito partiu para longa viagem, sulcando os mares, e a um tempo regressa ao porto de partida. Traz com ele novas experiências, outros conhecimentos e até diferentes formas de pensar a vida e o mundo. Mas ali, à vista das terras que envolvem o porto de abrigo, o viajante reencontra as paisagens e as gentes que sempre fizeram parte do seu imaginário, mas que os seus olhos não observavam há longo tempo. Perante este esplendor, o navegante abre o baú das memórias e revela a quem o ouve, as vivências marcantes do seu passado.
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
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O escritor da serra da Estrela e dos serranos que partiram em diáspora, fala-nos das ansiedades e das aventuras dos que nasceram nas encostas batidas pelo vento, sem nunca esquecer as referências às ementas tradicionais dos portos onde acosta esta gente errante.
Gabriel Raimundo nasceu na falda sul da serra, na vila do Tortosendo, de onde emigrou aos 17 anos, passando a viver a aventura dos que procuram melhor sorte em terras longínquas. Esteve em vários países da Europa e de África e também pisou as terras do Brasil. O gosto pela língua portuguesa e pelo povo serrano, levou-o a escrever e publicar vários livros, muitos deles tendo por base a aventura da emigração.
Sentindo o apelo das origens, Gabriel Raimundo deu à estampa um livrinho dedicado por inteiro aos que nasceram e viveram nas terras acolitadas na serra mais alta de Portugal. Intitulado «Estrela», o livro dá-nos conta das vivências das mulheres e homens serranos, revelando-nos o seu carácter, as ansiedades e os problemas que os afligem.
O livro é formado por um conjunto de contos, ou de crónicas, sobre a vida de tortosendenses e covilhanenses, criados ao som dos teares mecânicos, num sinal da industrialização têxtil, que é uma das marcas da região.
Não raro, o cenário é de outras urbes. A narrativa leva os personagens a Lisboa , aos Açores, à Madeira, ao Alentejo, e também a Paris e a terras de Espanha, mas volta sempre à terra-mãe. Dinis, e o seu irmão Amável, serranos típicos, amigos dos seus amigos, e homens dados a aventuras, estão quase sempre presentes nestas crónicas serranas, em que as vivências se sucedem.
São sucessivas as referências à gastronomia das terras por onde a acção decorre. Estando-se no Natal come-se a bacalhoada em família, viajando-se até ao Funchal, vem à colação o famoso bolo do caco, falando-se nos emigrantes de Paris, lá está a inevitável tachada de franco com massa, que era o mais usual prato da sua frugal alimentação.
Mas a mais significativa referência à gastronomia está na alusão aos amigos que se juntam na Taverna 2005, «cantinho convidativo à paródia e ao soltar da veia do fado vadio». O estabelecimento é local de petisqueira e arregimenta nas tardes de súcia «bons trabalhadores do garfo e do caneco». Hermínio, primo de Dinis e de Amável, juntou ali aos seus amigos das patuscadas a fim de emborcarem umas dezenas de tordos e um coelho bravo, a preparar por «mulher que em França assimilou todas as propriedades especiais do aromatismo, desde a flor de sabugueiro à de carqueja».
Contavam-se estórias, debatia-se o presente e o futuro da região, quando a comida veio à mesa:
«Os compinchas bateram palmas e pediram a D. Tangera que avançasse com a travessa de coelho bravo na sua caminha de carqueja e ainda agasalhado com salsa, rodelas de cebola e limão, acompanhado de umas batatinhas cozidas com molho, ao paladar da experiente cozinheira».
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
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José Cardoso Pires nasceu em 1925, em São João do Peso, concelho de Vila de Rei e distrito de Castelo Branco, filho de um oficial. Já em Lisboa, faz os estudos secundários no Liceu Camões e frequenta o curso de Matemática da Faculdade de Ciências de Lisboa, sem todavia concluir o curso. Colabora na página literária do jornal «O Globo» e publica comentários de leitura na revista «Afinidades» do Instituto Francês de Lisboa.
A um tempo lançou-se na produção literária, onde esteve sempre ligado à ficção de implicação social, aliando as concepções neo-realistas às existencialistas. Notabilizou-se por usar um estilo escorrido e de grande rigor, reflexo da extrema sobriedade com que encarou as coisas da vida.
No livro «Jogos de Azar», compilou um conjunto de contos que havia escrito em épocas diferentes. A ligá-los há um denominador comum: são histórias de gente angustiada com o andamento da vida, de pessoas que atravessam dificuldades e reagem perante isso. Há uma posição firme do autor ao reunir esses textos: a sua preocupação com a miséria e a fome que atravessa o mundo e o olhar indiferente da sociedade. A própria literatura, nota-o José Cardoso Pires, afastou-se do tema. A fome pode ser resolvida pela economia, pelo bom planeamento e a óptima afectação dos meios de produção. A fome já não é uma preocupação social.
O conto «Amanhã, se Deus Quiser» é uma história de esperança num futuro melhor, face a um presente de extremas dificuldades. Tempos difíceis na vida de uma família citadina, onde o desespero marca o compasso dos dias. As mulheres, mãe e filha, costuram para angariar algum pecúlio, os homens, pai e filho, buscam em vão por emprego. A guerra assolava a Europa, inundada pela cruz suástica. A ditadura impedia a livre expressão e havia medo nas palavras, que podiam levar à prisão. A fome instalara-se nos lares, mas o medo da guerra dominava as preocupações: «se a fome é triste, a guerra ainda é pior.»
A dado ponto descreve-se mesmo uma refeição tomada em casa, em que cada qual comia a seu tempo, reflexos dos problemas que a família enfrentava:
«Bem podias esperar pelo pai…»
O gato saltou da floreira de cana para cima da mesa.
“Chta, gato.” A minha mãe afastou-o com um safanão. “Quando o pai vier, vou ter que ouvir… Sabes bem que ele não gosta que coma cada um por sua vez.”
Peguei num carapau, mastiguei-o com espinhas e tudo. Tinha pressa, comia e, sem perder tempo, enchia o púcaro de vinho.
“Tira dos do fundo”, continuava a minha mãe. “Desses maiores. Assim, confesso, nem a comida rende. Agora come o filho, agora come o pai… vida de ciganos, é o que isto me faz lembrar.”»
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
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Em S. Martinho de Anta, concelho de Sabrosa e distrito de Vila Real, nasceu, em 1907, Adolfo Correia da Rocha, que para as letras ficou conhecido como Miguel Torga. Médico de profissão, com consultório em Coimbra, e viajante inveterado pelas terras de Portugal e de todo o mundo, sem nunca perder a ligação às origens.
Adorava a caça, muitas vezes nos montes da sua região, saboreando o contacto com a terra e o povo que ali vivia.
Na escrita foi poeta, romancista, memorialista e contista de alta estripe, sendo unanimemente considerado como expoente das letras pátrias. Toda a sua vasta obra literária é um tributo ao amor e à amizade entre os homens.
Parte dos seus livros (na poesia e na prosa) são a afirmação de um homem rural, que recusa a fatalidade da vida citadina, impondo-se como filho do campo que não mais aceita desligar-se das origens. Nas suas obras estão presentes as serras e as fragas transmontanas, os pais, o professor e os colegas de escola e a demais gente da aldeia. As terras transmontanas e o valeroso povo que as habita são, afinal, os grandes amores da sua vida, a eles dedicando o melhor da sua escrita.
O livro «Contos da Montanha» é o melhor exemplo do amor filial às terras de nascença. É uma colecção de retratos da vida do seu povo, as suas paixões, os dramas, as rivalidades e as lutas de um povo arreigado, bravo, mas também humilde, que luta pela vida em cada momento. São quadros vivos do pitoresco das vivências aldeãs, deles se retirando o essencial das formas de viver e de sentir populares. Realce aqui para o conto «Inimigas», onde se esboça a vida de duas jovens mulheres que o tempo tornou desavindas. Há referência a uma feira ou arraial, onde a populaça se juntava em peregrinação e para feirar e onde se degustavam os melhores sabores:
«Coisa rica! Pipas e pipas de vinho debaixo da carvalhada, e do melhor, que parece que todos capricham nisso, tascas de fritos, mesas de cavacas e de refrescos, medas de regueifas, carros de melancias, um louvar a Deus. Fartura de tudo para quem tiver conques. De maneira que quem diz: vou ao arraial da Senhora da Fraga, e vai, já se sabe que não arranca de lá antes do alvorecer.»
Mas todos os demais contos compilados na obra são peças essenciais para compreender o espírito do povo transmontano, e, bem assim, a sua forma de vida. Retratam tempos que passaram, mas a índole das gentes, essa resta perene, como perenes são os penedos que povoam as serras que envolvem as aldeias.
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
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O livro «Até Amanhã Camaradas», de Manuel Tiago, narra a organização do Partido Comunista Português num período difícil e apaixonante para os que sentiam o espírito revolucionário. A ditadura estava possante, sucedendo-se contudo as greves, manifestações, reuniões clandestinas, distribuição de imprensa subversiva. Tudo, ou quase tudo, em resultado da acção do partido que, a ocultas, semeava a revolta.
Estas acções, historicamente verídicas, revelam a responsabilidade, a disciplina e a coragem dos heróis comunistas que, na penumbra e sujeitos a mil perigos, divulgavam as iniciativas partidárias. São relatos de vidas inseguras, onde o alento e o sentido de uma causa, não conseguem excluir a angústia e as sucessivas apreensões.
Cada um dos personagens é diferente dos outros, pois são seres humanos que, para além da disciplina partidária, têm a sua própria personalidade e os seus sentimentos. É assim que no livro têm lugar o ódio e a traição, o amor e a amizade, o ciúme e a inveja, compondo um enredo que evolui.
«Até Amanhã Camaradas» não é apenas o romance político que para alguns se afigura, é também um romance que nos embrenha no mosaico social e nos sentimentos de pessoas que lutam por um projecto comum.
Sabemos hoje que Manuel Tiago é, afinal, Álvaro Cunhal, o histórico secretário-geral do partido. Assim, temos ainda maior tendência de colar o livro ao projecto político, mas a leitura do romance revela-nos, afinal, um livro singular, repleto de paixões que o indicam como um grande romance da literatura portuguesa.
A um dado passo fala-se de Paulo, um militante que vive na clandestinidade, trabalhando junto dos comités locais. Paulo era nome encoberto, próprio da organização, que sob identidades diferentes colocava no terreno uma rede de comunistas empenhados na expansão da ideologia e na subversão à ditadura. Paulo é, afinal, um homem comum, provindo de famílias pobres, que a todo o instante recorda os prazeres da sua infância. Atentamos ao momento em que a sua mente evoca os trabalhos no forno, na cozedura do pão, alimento essencial em todas as épocas:
«Esse cheiro a pão cozido (apenas mais ácido) era o cheiro característico do lar de seus pais.
A mãe escaldava o pão, amassava-o e, fazendo uma cruz na massa, punha-lhe no centro um dente de alho e recitava:
Marta cozinheira
filha de Jesus Cristo,
pelo caminho que andaste
com Jesus Cristo te encontraste.
Assim como cresceu a graça
de Deus pelo mundo todo,
assim cresça este pão
até ao cimo do forno.
Depois abafava a massa com uma toalha, punha por cima todas as mantas da casa, acrescentava umas calças de homem viradas do avesso, quando desconfiava da massa e punha-se a aquecer o forno com ramada seca, animada com a esperança numa boa fornada: «Até ao cimo do forno!» Ele ia buscar ao quintal a pá e o varredouro, sempre encostado à chaminé da casa. Ao voltar, varria o forno, enquanto a mãe tendia o pão com uma tigela polvilhada de farinha e o ia colocando sobre as folhas de conteira estendidas na pá. Com o pão já a cozer, a mãe dizia-lhe:
– Chico – nesse tempo também Paulo não era ainda Paulo. – Acorda os pães filho!
Ele abria a porta do forno e, com uma varinha, batia em cada pão para ficar bem favado:
– Deus te acorde e te abra os olhinhos! Deus te acorde e te abra os olhinhos! Deus te acorde e te abra os olhinhos!
Como tudo isto ia longe. E como tudo isto estava vivo na sua memória despertada pelo cheiro a pão cozido que se espalhava cada vez mais intenso por toda a casa.»
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
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Saramago percorreu Portugal de olhar atento, seguindo quase sempre roteiros pré-definidos, tomando notas para depois escrever as impressões da digressão. Não podia ali faltar uma passagem pelo Sabugal e por Sortelha, bem como a outros lugares da Beira, onde se destacou Cidadelhe, o «calcanhar do mundo», onde comeu pão e queijo.
O livro «Viagem a Portugal», teve a primeira edição em 1981, quando José Saramago ainda não estava no seu esplendor. Escrevera já o «Manual de Pintura e Caligrafia», por muitos considerado o seu melhor livro, e já estava também editado o «Levantado do Chão», a grande epopeia do Alentejo e do seu povo lutador. Só depois viriam os livros de referência, como «Ano da Morte de Ricardo Reis» ou o «Memorial do Convento», que rapidamente o atiraram para a ribalta.
Esse livro de viagens pelo país, de que aqui damos nota, é, antes de mais, o resultado de uma jornada que tinha por intuito descobrir caminhos diferentes daqueles que todos conhecem e indicam. Descreve originalidades, observando e notando o que achou digno, saindo do esboço a que estamos habituados.
Mas a descrição da viagem deu numa interessante narrativa. A narrativa de um viajante que vive interiormente do percurso que faz. Descobre caminhos e lugares, confirma expectativas, esbarra com surpresas, como que viajando dentro de si próprio, reflectindo os sentimentos e as impressões que a viagem lhe coloca. «Viagem a Portugal» não é um simples livro de viagens, na convencional classificação do género literário. É afinal um livro de reflexões e de sensações estampadas na mente de um viajante que anda na missão de descobrir.
O viajante aportou na Guarda, em fim-de-semana, a altas horas, bateu à porta do Hotel de Turismo, mas não achou quarto disponível, o que o levou a passar a noite no automóvel, sentindo aí o frio tenso destas paragens. Tomaria depois por base esse hotel e partiu da cidade, que primeiro visitou, em exploração.
Parcas são as referências ao comer deste original viandante, coisa pouco comum em relatos de viagens. Na verdade o viajante alimentou-se, degustou alguns dos nossos pratos típicos, mas estava mais voltado para descrever o que via do aquilo que lhe sabia.
Logo quando ficou no carro, naquela primeira e gélida noite, refere que passou a noite «trincando bolachas para enganar o apetite nocturno e aquecer ao menos os dentes». E também nos diz que, depois de obter quarto e dormitar um pouco, almoçou no hotel e só então foi ver a cidade. À noite jantou em maior sossego, de novo no hotel, onde achou a comida divinal, e descobriu a simpatia do Sr. Guerra, chefe de cozinha, natural de Cidadelhe. A inesperada amizade levou-o no dia seguinte ao «calcanhar do mundo», de onde retiraria as melhores impressões da passagem pelas nossas terras.
Encontrou em Cidadelhe uma terra surpreendente onde, para além das pedras, do precioso palio e do original «cidadão», descobre o verdadeiro prazer da gastronomia popular:
«”São horas de merendar”, diz Guerra. “Vamos a casa de minha irmã.” Descem pelo caminho que trouxeram, lá está o Cidadão de sentinela, e vão primeiro a uma adega beber um copo de tinto-claro, ácido, mas de uva franca, e depois sobem os degraus da casa, vem Laura ao limiar: “Entre, esteja na sua casa.” A voz é branda, o rosto sossegado e não é possível que haja no mundo mais límpidos olhos. Está na mesa o pão, o vinho e o queijo. O pão é grande, redondo, para o cortar é preciso apertá-lo contra o peito, e nesse gesto fica a farinha agarrada à roupa, à blusa escura da dona da casa, e ela sacode-a, sem pensar nisso. O viajante repara em tudo, é a sua obrigação, mesmo quando não entender tem de reparar e dizer. Pergunta Guerra. “Conhece o ditado do pão, do queijo e do vinho?” “Não conheço.” “É Assim: pão com olhos, queijo sem olhos, vinho que salte aos olhos. É o gosto da terra.” O viajante não crê que as três condições sejam universais, mas em Cidadelhe aceita-as, nem é capaz de conceber que possam ser diferentes.»
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
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Silvestre da Silva era um fidalgote minhoto que não atinava com um modo de viver e, de experiência em experiência, descobre que nada suplanta a vida do campo, onde os regalos do estômago ofuscam tudo o resto e proporcionam a maior das felicidades.
«Coração, Cabeça e Estômago» é uma novela humorística de Camilo Castelo Branco, onde um homem, Silvestre da Silva, procura um sentido de vida. Primeiramente procurou a felicidade no amor, ou melhor, no «coração». Foram intensas e autênticas as suas paixões amorosas, mas as mulheres desiludiram-no, até porque raramente corresponderam ao seu declarado amor.
Decepcionado, Silvestre decide desenvolver o seu intelecto, a «cabeça», e passou a escrever nos jornais da época. Porém, as suas doutrinas andavam desfasadas com as teorias dominantes e os artigos que escreveu geraram reacções adversas, dentre as quais a de um advogado do Porto, que dele se queixa e o faz ir parar à cadeia por ordem judicial.
No final, Silvestre volta-se para os prazeres mais materiais da vida e regressa ao campo, às suas origens, onde redescobre o valor da óptima e variada cozinha minhota, que lhe contenta o «estômago».
A revelação da importância da vida serena do campo e da importância do bom trato alimentar teve-a Silvestre em casa de Tomásia, a filha morgada do sargento-mor de Soutelo, com quem viria a casar.
«O pai de Tomásia, erguida a toalha da mesa, onde almoçávamos, às sete horas da manhã, sopa de ovos, salpicão, batatas ensopadas com toicinho, e toicinho cozido com batatas, disse-me que sua filha estava casadeira, e ele disposto a casá-la comigo, se eu quisesse. Antes que eu respondesse, inventariou os seus cabedais, o valor do património dos seus quatro irmãos padres, os quais estavam presentes, e unanimemente disseram que tudo deixavam por escritura a sua sobrinha.»
Silvestre pensou no assunto e, passados alguns dias voltou a casa do lavrador, onde aceitou comer na cozinha, correspondendo a um pedido expresso de Tomásia:
«Encontrei sobre a mesa do escabelo, adorno da lareira, uma tigela vermelha vidrada com requeijão, e um pichel reluzente de estanho a transbordar de espumoso vinho verde. Tomásia sentou-se do outro lado, e comeu e bebeu como a filha de Labão com Jacob.
Conversámos nestes termos também patriarcais:
– Quantos anos tem a senhora Tomásia? – perguntei.
– Vinte e seis, feitos pela Santa Luzia.
– Muito bem empregados. Admiro que vossemecê ainda não seja casada!
– Ainda não é tarde.
– Também digo: mas quem é tão bonita como a Srª Tomásia onde quer acha um noivo.
– Sou sã e escorreita, Deus louvado. Se lhe pareço bonita, isso é dos seus olhos. Coma uma colher de requeijão, e beba, que o vinho está muito fresco.»
Pois seria destino de Silvestre casar de facto com aquela rapariga desempenada, «de carne e osso mais que o ordinário» e «mais larga de cintura que nos ombros», que nunca experimentara doença e que «almoçava caldo de ovos com talhadas de choiriço».
Já enlaçados, viveram ambos para a degustação da boa culinária minhota, ganhando fama pelo farto e saboroso comer de sua casa, de mesa sempre posta para os amigos, que cresceram a olhos vistos.
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
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O professor Joaquim R. Dias publicou, no início de 2008, um fabuloso livro dedicado à sua terra, os Fóios, ou Daquelado, fórmula popular que gosta de repetir, a que deu o sugestivo e saboroso título de «A Pita do Ti Zé Plim».
O livro constitui uma saborosa viagem, com o seu quê de epopeico, aos tempos de juventude. Há uma passagem pelos lugares dessas memórias vivas e tecem-se curiosas apreciações acerca da vida cheia desses tempos idos.
Um grupo de jovens estudantes dos Fóios decidem aproveitar o tempo de férias para procurarem uma aventura que não era nada usual naquela época: ir acampar junto à aldeia espanhola das Eljas, portanto uns bons quilómetros para lá da linha de fronteira. Quim Dias, Chico Léi, Chico Jiró, Léi Carloto, Mário Mateus, Zé D’avó e Zé da ti Chão, são os heróis desta gloriosa façanha juvenil.
Metem-se a caminho decididos, mas o frio e a fome sobrevieram logo após a primeira noite dormida no campo. O facto motivou o regresso furtivo de dois aventureiros à aldeia em busca de agasalhos. Não queriam ser vistos por vergonha de revelarem medo à frialdade das noites de Verão. Na arremetida notaram também que era importante prevenir a fome, e decidiram rapinar a galinha ao Ti Zé Plim, exemplar único da sua capoeira.
E a pita morta lá foi com os convivas para ser assada sobre as brasas quando chegados ao destino, como justa recompensa pelo esforço da viagem. Só que com o calor a carne do animal já fedia e acabaram por não lhe por o dente:
«Tratámos de montar as tendas e de preparar o lume para fazer de comer. A galinha que trazíamos vinha mesmo a matar. Depená-la e deixá-la pronta para ir à brasa foi num ápice, porque todos tínhamos um ratito no estômago.
Começou-se a assar a galinha. Porém, quando a maior parte de nós se dispunha a saborear o pitéu, que estava quase pronto e de que o Zé da ti Chão, por ser o benjamim do grupo, já tinha provado a bassó, forma nossa para cujo conteúdo se utiliza correntemente o termo moela, o Léi Carloto apurou o seu sentido de olfacto e, torcendo o nariz, afirmou que a galinha já cheirava mal, no que foi secundado de imediato pelo Chico Léi que logo sentenciou que estava estragada, o que afinal nem era de admirar, uma vez que, morta como vinha, tinha connosco feito todo aquele percurso em horas de calor.»
Escrito numa linguagem fluente, pejada de expressões populares e de frases de forte sentido irónico, o livro é uma peça importante da nossa literatura regional, pois trata-se de um excelente contributo para a recolha das nossas formas de expressão. À medida que a aventura dos jovens se desenrola, o autor aborda aspectos fundamentais das vivências colectivas dos que habitam Daquelado. Lá estão saborosíssimas descrições da matança de um cochino, das capeias arrainas, das façanhas do contrabando e da emigração. No que toca à candonga há até uma história comovente de transporte de carregos a cavalo, os quais, tal como os contrabandistas, também era por vezes vítimas do fogo dos guardas:
«Embora não haja cruzeiros a assinalar as mortes dos cavalos, também estes, muitas vezes, eram vitimados pelas mesmas balas. E, apesar de poder parecer estranho, quando isso acontecia, a carne destes animais era aproveitada por alguns para, pelo menos nessas alturas, matarem a fome devidamente ou, como por cá se diz, com l’é dado.
Os animais eram esquartejados no mesmo local em que os tinham feito tombar e a carne era metida em vinha-d’alhos. A tristeza e a dor dalguns eram, afinal, contentamento de fartura pontual para outros.»
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
leitaobatista@gmail.com
José Pinto Peixoto foi um dos mais destacados geofísicos e meteorologistas portugueses. Mas este cientista de renome, que viveu radicado em Lisboa, quis legar à sua terra de nascimento uma extensa e cuidada monografia, o que fez em cumprimento de um dever de homem citadino que nunca esqueceu as suas origens humildes.
«Miuzela a Terra e as Gentes» é uma monografia completa, dedicada a uma terra pertencente a concelho de Almeida mas com imensas afinidades com o concelho do Sabugal.
Depois de uma breve justificação e da referência às memórias da infância, que lhe ficaram para sempre gravadas, José Pinto Peixoto entra na história da região. Escreve acerca das origens da Miuzela, os povos antigos que a habitaram e os vestígios que deixaram. Também aborda as questões geográficas, e aventura-se pela colecta de expressões, adágios e provérbios populares.
No que toca ao registo histórico, a povoação viu ali nascer e viver gente importante e foi palco de guerras e das consequentes devastações, com manifesto prejuízo para as populações, alvo das mais variadas atrocidades. Neste particular, assumem importância as invasões francesas, sobretudo a terceira, onde a Miuzela foi saqueada, quando as tropas de Massena recuavam, acossadas pela tropa anglo-lusa.
Mas o mais relevante da monografia são as referências aos usos e costumes, quase todos hoje perdidos, mas que constituem um importante património da aldeia. Ligado a cada ciclo anual, estavam as tradições e, com elas, os sabores gastronómicos. Festas de nomeada, com o Natal e a Páscoa estavam ligadas a um conjunto de iguarias que eram preparadas com todo o rigor, seguindo ementas antigas que passavam de mães para filhas. O mesmo sucedia no referente aos grandes trabalhos colectivos, como a ceifa e as malhas, que eram momentos de esforço, compensado com boas e suculentas refeições.
Pinto Peixoto, descreve com especial denodo a importância dos enchidos na alimentação popular e, especialmente, a sua peça de excelência, o bucho, comido pelas famílias reunidas no Domingo Gordo. Fala-nos do jantar do bucho, que noutro tempo correspondia ao que hoje chamamos almoço. De facto o almoço comia-se pela manhã, sendo o jantar ao meio do dia e a ceia a refeição da noite.
«Era um jantar, quase tão importante, como o do dia da matança, mas mais elaborado e de mais cerimónia. Era uma festa!
O jantar do bucho ocorria, em geral, antes de entrar na Quaresma, por volta do Entrudo, porque a partir daí vinham os jejuns e as abstinências e, já, não se podia comer carne! Muitas vezes era no “Domingo Gordo”.
O jantar constituía um pretexto para se reunirem as famílias de parentes, e de amigos, mais queridos, num convívio são, afectivo e fraterno.
O bucho é, talvez, o enchido mais saboroso da Miuzela e é, por isso, o melhor das redondezas. É um manjar delicioso.
O bucho é o estômago do porco, cheio com ossos especiais, com cartilagens, orelheira e o rabo, depois de terem estado dois ou três dias em vinha de alhos. Mas no tempero é que está o segredo. O vinho, para a vinha de alhos, tem de ser de boa qualidade. E o pimento (colorau) não há-de ser só do doce, que tem que se lhe juntar do “queimoso”, com muito alho, bem migado, um pouco de sal, mais alguns “cheiros”, e tudo fica bem de molho, durante alguns dias.
Mas muito do sucesso, além da qualidade da matéria prima e “dos temperos”, vai da maneira de temperar e de encher o bucho. Os ossos têm de ser entremeados com outros bocados do recheio, mais suculentos, em camadas bem ordenadas. E vai-se calcando, sempre, porque depois, no fim, é mais fácil de aconchegar o bucho e espremê-lo bem, para não deixar lá dentro bolhas de ar! E, por fim, há-de ser muito bem atado e com segurança.
Depois de bem limpo (por fora), fica dependurado, a escorrer umas horas e só depois é que vai para o fumeiro, onde continua a pingar durante uns dias, até se começar a fumar e a ficar seco, bem vermelho e lustroso.
Depois, é a delícia, que se sabe: é queimoso, sem ser picante; é gorduroso, sem enjoar; é apetitoso, sem enfartar; é saboroso, sem ser indigesto; é gostoso, sem cansar. Até a pele do bucho, depois de cozida e bem torrada, constitui um manjar de eleição.»
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
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No tempo das invasões, em que a maior parte das perdas militares do lado francês resultou das revoltas e acções de retaliação do povo confrangido e humilhado, dá-se uma aventura de luta abnegada em favor da libertação do solo pátrio, onde a par dos actos de heroicidade, próprios da guerra, se desenrolam histórias de paixão amorosa.
José Marques Vidal, juiz conselheiro do Supremo Tribunal Administrativo, revelou-se agora como romancista, depois de uma vida inteira embrenhado no estudo e na publicação de textos de carácter jurídico. Deu à estampa o livro «O Amor em Armas», editado pela Oficina do Livro, o qual tem por cenário as vastas terras beiroas, de Celorico da Beira ao Caramulo, e as terras, ora pedregosas ora úberes, entre os rios Águeda, Marnel e Vouga.
João do Préstimo, militar experimentado que marchava para França integrado na Legião Portuguesa, comandada pelo Marquês de Alorna, decidiu desertar quando a caravana passou em Porto da Carne e se preparava para subir para a Guarda. Na fuga acabou por socorrer uma jovem, que era órfã e vivia só, quando dois facínoras se preparavam para dela abusarem. A moça acabaria por o acompanhar no seu retorno à terra natal, nas margens do rio Vouga, e dali nasceu uma paixão que deu frutos.
Pelo caminho receberam prestáveis ajudas, como a do lavrador Augusto Frias, de Barrelas, que lhes facultou aboletamento e lhes deu por guias dois criados que os conduziram a local seguro. E foi assim que Margarida e João acabaram a saborear um belo petisco confeccionado com os peixes capturados no Vouga e seus afluentes.
«Diogo e Gabriel, os criados do Frias, montados em éguas e de reiuna a tiracolo, deixaram-nos na taberna da Vesga, assim nomeada por fazer honra à dona de olhos enviesados, afamada por nela se comerem as melhores trutas do rio, situava-se ao lado da povoação de Vouguinha e já perto da ponte.
Banquetearam-se com trutas de escabeche, pintalgadas de ouro sobre a pele de cor cinza-clara e apaladadas pelo azeite, vinagre e cebola que lhe faziam o sabor de três estalos, na ideia de poupar as viandas com que o Frias lhes atafulhara os alforges.»
Contada a aventura de João do Préstimo o romance revela um novo herói: o jovem Daniel Pinto, filho de lavrador abastado, estudante de Medicina em Coimbra, que integrou o Batalhão Académico e deu em chefe de uma guerrilha que dava combate aos franceses.
Por entre a descrição das movimentações dos guerrilheiros e da soldadesca e os enredos amorosos, o livro conduz-nos sempre aos petiscos que se saboreavam à mesa, com maior ou menor denodo. Disso é exemplo a descrição do jantar servido ao general Franceschy, do exército de Napoleão, pelos frades franciscanos: «Uma malga de caldo, feito com os produtos da horta do convento, e uns roubacos fritos, pescados nas águas turvas do rio, acompanhados por um palhete da pequena vinha da cerca guardado para as ocasiões solenes».
Noutro ponto refere-se a visita fugaz de Daniel Pinto à Vila de Vouga, a casa do administrador Fontes, apanhado «a comer o mata-bicho, uma fritada de ovos com presunto, a quem se juntou por obséquio na pitança».
Também se revela o belo petisco degustado sofregamente por dois frades, os irmãos António e Bernardo, sendo o primeiro a contar a façanha: «arrastei-o até Vouga, à tasca do Miranda, onde tinha mandado preparar um coelhinho à caçador, já com batatinhas novas e aloiradas por cebola quanto abonde na caçarola de barro. Passámo-lo ao estreito em três tempos, a fazê-lo escorregar com um palhete de estalo que o vendeiro guarda para os amigos de palato apurado».
O tempo era de guerra e de fortes privações, mas, ainda assim, por entre as adversidades dos combates e os saques violentos dos invasores, tratava-se do estômago.
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
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«A Toca do Lobo», de Tomaz de Figueiredo, é um livro de memórias, onde a saudade está obsessivamente presente. Fala dos fantasmas e mortos-vivos que povoam o pensamento de Diogo Coutinho, um morgado moderno e citadino, oriundo de gente nobre, que decidiu voltar à casa da família, numa quinta, sumida nos montes.
Nessa velha casa de campo passara os melhores tempos da sua existência, na juventude: «Ali viveu muito, muito de vida vivida, outro tanto, ou muito mais, de vida imaginada: tão violentamente imaginada que valia por ter vivido muitas vidas».
Chamavam à casa senhorial, no Alto Minho, a Toca do Lobo, por ali ter estado encovilado, no «tempo dos franceses», o seu bisavô, Rodrigo Coutinho. Feroz, o bisavô possuía dentes pontudos e descompassados e não dava tréguas ao invasor abatendo franceses à cronhada, à navalha ou, quando não, filando-os à dentada.
O tempo passou e, irremediavelmente só, Diogo sente que o seu mundo de juventude, de exímio caçador de perdizes e de grandes caminhadas pelos campos, se perdeu com o correr dos anos, nada mais lhe restando que as recordações desse mundo longínquo. O livro de Tomaz de Figueiredo, é pois uma imensa e sentida rememoração do passado, de revisitação aos locais de antigamente, às conversas com os familiares já desaparecidos e com a gente simples e heróica que ajudava nos trabalhos da quinta.
É verdadeiramente encantador saborear a escrita metódica de Tomaz de Figueiredo, com as suas frases lapidares, carregadas de expressões populares, e as descrições vivas e sentimentais. Atente-se a estas expressões colocadas na voz do povo:
Ascorda, home, que nos estão a puxar à porta.
Ai! Que me mataram!
O binho do fidalgo é marinheiro, carambas! Assobe ao capacete!
Nunca fui de botar famas a ninguém.
Mas o livro também fala dos antigos prazeres da boa mesa, como quando descreve o regresso à casa senhorial após algum tempo de ausência:
«Chegavam e dava-lhes a todos a fome: era frigir à pressa um pastelão de chouriço, esfatiar o traço de vitela assado já de véspera. Não demorava a mulher do caseiro como duas infusas de leite – de vaca e de cabra, mungidas na própria hora – ainda quente dos úberes, a espumar. Daí a nada algum filho, com uma cesta-vindima de figos bacorinhos, murchos, de lágrima em ponto de fio, e alguns depenicados dos pássaros, de té torcido, “a cair da corneira”, como o rapaz dizia. A tia Mariana desenformava uma tigela da sua marmelada, primava em a apresentar na mesa tremente como um pudim gelado, tão fina era, tão carregada no açúcar, puxado até secar…».
Este romance, o primeiro de Tomaz de Figueiredo, foi publicado em 1947 e, no ano seguinte, foi agraciado com o prémio Eça de Queirós
Merece a pena ler a obra deste escritor de truz, sobre quem o crítico literário sabugalense João Bigotte Chorão, da Academia das Ciências, nos diz ser «um escritor, um cavador de palavras, um servidor do idioma».
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
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Republicano de primeira água e dirigente partidário empenhado nas lutas políticas do seu tempo, Manuel Brito Camacho chegaria, com a implantação da República, a ministro do fomento e alto-comissário em Moçambique. Também se notabilizou como tribuno, sendo considerado um dos mais exímios oradores da Câmara dos Deputados.
Mas este médico e militar de profissão ficaria sobretudo conhecido como jornalista, publicista e escritor. Algumas das suas obras literárias tiveram assinalável êxito, onde se destacam as narrativas e as reflexões políticas. Brito Camacho é porém hoje um escritor esquecido, impiedosamente cilindrado pelo tempo, sendo importante redescobrir a sua notável obra.
O seu livro «Gente Rústica» reúne um conjunto de memórias e de contos, cujo epicentro é o Alentejo, sua amada província de nascimento. O enquadramento é a planura pejada de searas e de sobreiros, onde se dá conta das formas de vida de antigamente, do tempo da infância e juventude do autor. É uma eloquente sucessão de textos que narram a vida do campo, falando nos defeitos e virtudes das pessoas que ali enfrentavam as rudezas de uma existência difícil. A cada página surge a descrição dos variados trabalhos campestres, as formas de divertimento do povo, as tradições, as festas e as romarias.
O livro é também autobiográfico, dando testemunho das experiências de vida do autor, que recorda com enlevo pessoas, imagens e acontecimentos que marcaram a sua juventude. No capítulo com a epígrafe «O Romana», aborda a vida de um criado do seu pai, que adorava andar no trato dos animais, desprezando tudo o mais que lhe surgisse pela frente. Descreve também a festa de S. Romão, em Rio de Moinhos, terra natal do autor, realizada anualmente no campo. Para além do serviço religioso, a romaria incluía arraial, feira de estalo, merenda e uma noite passada ao relento.
Assim descreve Brito Camacho o bródio campestre que a festa proporcionava:
«Estendem-se as toalhas no chão, muito brancas, e cada qual serve-se como pode, um garfo para três e um copo para todos. Na improvisada mesa dos lavradores há geralmente borrego, galinha ou peru e a todos se oferece de comer, umas vezes por mera delicadeza – é servido? –, outras vezes com a insistência de quem deseja que o oferecimento seja aceite.
– Chegue-se para cá, senhor Fulano, e coma alguma coisa. O que há está à vista. É pouco mas é oferecido de boa vontade. Isto em festas…
Poucos comem, mas quase todos bebem, e é de rigor a saúde:
– Pois lá vai pela saúde do sr. Fulano e da mais família.
Melancias vermelhas destacam-se nas toalhas brancas partidas com mestria, por forma que o coração, formando castelo, se ergue no meio das talhadas como uma fortaleza de ameias.
À melancia é que ninguém resiste.
– Isto não enche a barriga. Olhe que é muito boa. Derrete-se na boca como um torrão de açúcar.»
Brito Camacho, escritor hoje arredado dos escaparates e esquecido na história literária, bem merece ser revisitado. Homem de escrita simples e escorreita, pouco afeito a estilos elaborados, descreve genuinamente a vida antiga, reflecte sobre as tradições populares, põe a nu os encantos das paisagens campestres e opina abertamente sobre questões de política e religião.
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
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Trindade Coelho nasceu no Mogadouro, distrito de Bragança, em 1861. Magistrado de profissão, iniciou a sua actividade na vila do Sabugal enquanto Delegado do Procurador Régio, em 1886. Mestre na arte de narrar, seguindo as apertadas regras que ao contista são exigidas, deixou-nos autênticas obras-primas, as mais significativas reunidas no excelente volume «Os Meus Amores», que são uma referência da literatura portuguesa.
Os seus contos, de grande esplendor estilístico e apurado rigor narrativo, inspiram-se nas vivências populares que ele, filho do povo, tão bem conhecia. Alguns deles, mais do que contos, são poemas, ou, diríamos mesmo, odes. Odes à harmonia da Natureza e à sublimidade do amor. Poucos escritos tem a nossa literatura que emparceirem com Trindade Coelho na profundidade emocional. Descreve o amor sincero entre as pessoas, numa simbiose perfeita entre o seu afecto mútuo e o quadro natural que as envolve. Aborda os diversos quadros da vida colectiva, em que o povo simples e agreste aparece numa onda de humildade e de abnegação, que comovem.
Mas no que se refere a quadros etnográficos, o maior registo está no conto «À Lareira», precisamente no livro «Os Meus Amores», que descreve um antigo serão na aldeia. Com as cores vivas de uma espátula, Trindade Coelho pinta em tela o convívio de tempos idos, quando escasseavam as formas de passar o tempo. As mulheres fazem meia ou, munidas da roca, fiam o linho. Já os homens dedicam-se à bisca, enquanto que os mais novos se vão entretendo com simples jogos infantis ou ouvindo atentamente as conversas dos adultos. Dirigidas às crianças soltam-se catadupas de adivinhas, cabendo-lhes encontrar a solução. Também para elas vão os contos e as fábulas antigas, herdadas de tempos distantes, passadas de geração em geração, ali à roda da lareira, nos vetustos serões da província.
Antes do início do serão, houve a ceia, que as mulheres da casa cozinharam e colocaram sobre a mesa no fim do dia de trabalho. Vejamos essa descrição sublime da ceia de uma família do povo:
«- Olha que vens de frio! – ralhou de cima a Tia Maria. – Depressa, António, que vai o caldo prá mesa. É só recolher as vacas, porque a manjedoura já está feita. (…).
– deixa-os! – avisou do lume o José Lorna. – Põe tu a mesa e deixa-os lá.
Baixou a tia Maria a mesa de escano, pôs-lhe em cima a toalha de linho, muito lavada, ao mesmo tempo que a Ana, já de volta, tirava do secrinho e punha na mesa o pão centeio de sete arráteis. Abancou o José Lorna, defronte da sua grande malga castelhana e pôs-se a partir as fatias. Tinha já na mão a sua tigela, a tia Maria; em frente do velho, sobre a mesa, fumegava a outra para o António; estava em cima do murilho a do José Redondo, com o respectivo carolo em cima; e junto do louceiro, muito desembaraçadas, as duas irmãs aviavam o resto: a Teresa debulhava as batatas, e a Ana partia-as por três grandes pratos em que previamente fizera o molho.
Entretanto chegava o António: logo atrás dele o José Redondo; e a ceia começava: o caldo desapareceu e a seguir ao caldo as batatas cozidas.»
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
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Em meados do século XVI, em plena época renascentista, foi publicado em Espanha um romance revolucionário que, ao invés do canto da aristocracia dos livros de cavalaria, se atrevia a narrar a vida de um homem de baixa condição social que abnegadamente lutava pela sobrevivência.
«Lazarillo de Tormes» inaugurou um novo género literário: o pícaro. Trata-se de uma narrativa burlesca, que usa uma linguagem irónica e popular, por vezes muito grosseira e contundente, que esbarra com o género literário dos livros que retratavam os cavaleiros andantes da Idade Média, que na altura tinham um sucesso extraordinário.
De autor anónimo, o «Lazarillo de Tormes» expõe a aventura de um homem de baixa condição social, revelando as suas misérias e grandezas. Órfão de pai, um rapaz pobre de Salamanca é entregue aos cuidados de um cego, que abruptamente o explora e o faz passar fome. Fugindo ao cego que o maltratava, o moço anda depois de dono em dono, sofrendo sempre maus-tratos e opressões. Vivia uma vida precária, de sucessivos vexames e de muita miséria no quotidiano, sem que tivesse sonhos nem alimentasse perspectivas de futuro. Lázaro, assim se chamava o rapaz, tinha fome e a sua razão de existir era conseguir comida para satisfazer o apetite.
Todo o livro é uma crítica feroz à sociedade do tempo em que o pobre Lázaro percorreu Espanha em busca de alimentação. Os sabores gastronómicos ibéricos estão sempre presentes nos relatos, mas prevalecem os paladares pobres e simples do povo, que correspondiam à também elementar ânsia de Lázaro por se alimentar. Ainda que apanhasse pão, seco e duro ele fosse, isso era divinal para o pobre rapaz. Pão e vinho eram, aliás, os elementos capitais da alimentação que este livro de privações de vida austera retrata. O importante era mesmo matar a fome, que imperava a cada instante.
Condói-se o leitor que atente na vida terrível deste anti-herói, ainda que se ria com a forma pícara em que o livro está escrito. Alimentam-se bem alguns dos amos de Lázaro, que ainda folgam com a miséria do criado:
«Aos sábados come-se nesta terra cabeças de carneiro, e ele mandava-me comprar uma, que custava três maravedis. Cozia-a e comia-lhe os olhos, e a língua, e o pescoço, e os miolos, e a carne e as maxilas, e a mim dava-me os ossos roídos. Punha-os no prato dizendo: “Toma lá, come, e regala-te, que o mundo é teu. Tens melhor vida que o papa”.»
A dado ponto, dá-se porém o contraste, quando Lázaro serve um desafortunado escudeiro que, nada lhe dando de comer, o impeliu a ir pedir por caridade. Uma tarde volta a casa do amo trazendo numa ponta da fralda um naco de pão e uma maravilhosa mão de vaca, que acabou por partilhar com o escuteiro que, também faminto, o observava a comer as papas:
«– Digo-te Lázaro, que pões no comer mais requinte que em minha vida vi a outra pessoa, e que ninguém te poderá ver comer que não lhes dês gana de fazer outro tanto, mesmo que não tenha apetite.
(…)
– Senhor: a boa ferramenta faz o bom artífice. Este pão está saborosíssimo, e esta mão de vaca tão bem cozida e temperada que não haverá ninguém que não fique de água na boca se a cheirar.
– É mão de vaca?
– Sim, senhor.
– Digo-te que é o melhor petisco do mundo e que não há faisão que me saiba tão bem.
– Pois prove, senhor, e veja que tal está.
Pus-lhe nas unhas a unha da vaca e três ou quatro pedaços de pão do mais alvo. E ele sentou-se a meu lado e começou a comer com quanta gana tinha, roendo cada ossinho daqueles melhor que um galgo seu o faria.»
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
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Alves Redol destacou-se como romancista e dramaturgo, sendo considerado um dos grandes expoentes do neo-realismo literário português. «Barranco de Cegos» é o seu último livro, editado em 1962, e considerado a sua obra-prima. Em sinal diferente das obras anteriores, a intervenção política e social é posta em segundo plano, centrando-se nas personagens e na sua evolução psicológica.
O livro retrata a vida de um rico lavrador do Ribatejo, que simboliza o poder agrário, cuja história Redol relata a partir de 1891, ano da revolta republicana do Porto. Senhor duma vila, dos terrenos envolventes e de toda a gente que ali habita e trabalha, Diogo Relvas era amo implacável, castigando os que lhe desafiavam o poder, mas compensando os que lhe eram inteiramente fiéis.
Cada homem e respectiva família dependiam por inteiro do proprietário, que tudo administrava com mão de ferro. O seu domínio estendia-se pela Lezíria e também por alguns montes no Alentejo, criando gado cavalar e touros bravos, que eram o regalo das corridas de Portugal e de Espanha. Contrário aos avanços da indústria, que em seu entender ameaçavam o poder da lavoura e os bons costumes, embrenhava-se também nas lides da política, intervindo a favor da monarquia, que se queria de novo absoluta para destronar a força dos liberais e dos republicanos. Influenciava os demais proprietários e mantinha apertado controlo aos movimentos da sua descendência, querendo evitar a decadência do seu império.
Senhor de vida austera e regrada, não evitava porém os desmandos dos filhos e demais jovens descendentes dos proprietários da lezíria, que se entretinham em jogos de sorte e de amores fugidios.
A páginas tantas, quando já se inalava o odor da queda da lavoura tradicional, com o avanço do caminho-de-ferro e das fábricas, descreve-se uma caçada às lebres. Seguiam os ilustres monteiros a cavalo e, após um contratempo, os jovens proprietários e sua companheiras, embrenhados na lide, juntaram-se para descansar e retemperar forças. Sendo momento de descontracção, aproveitou-se para comer. Mas, impondo-se ração de campanha, o acepipe não teve ares de fidalguia, sendo antes uma simples punheta de bacalhau, preparada pelo maioral dos campinos, que acompanhara a comitiva.
«O Salsa pusera-se a preparar uma pívea de bacalhau, desfiando-o o melhor que podia, a frio, após o que se dispunha a temperá-lo com bom azeite da casa, vinagre e pimenta de mão larga, boa para puxar a pinga, sim senhor, enquanto outro campino cozia em duas caldeiras de folha, com lume de bosta de boi, o feijão branco e o toucinho que dariam o caldo.
Começara o Salsa a tratar do torricado, cortando fatia finas de pão de milho que torrava em lume brando, e sobre as quais largava um fio de azeite para lhes dar mais sabor.
– Falta muito, maioral? – perguntava a Quintela, a quem o susto parecia ter arrancado um apetite voraz.
– Da minha mão está pronto…
E assim que os vinhos chegaram com o almoço preparado pela cozinheira dos Relvas, abancou perto do lume, comendo o bacalhau desfiado à mão (não havia garfo melhor que o de cinco pontas) e já a inventar novo capricho. Gostava de saber até que ponto fechava os homens na sua mão pequena.
– Quem comer dum lado não pode petiscar do outro. Nada de lambarices…»
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
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O livro «Trabalhos e Paixões de Benito Prada» é um brilhante testemunho da ligação do seu autor, Fernando Assis Pacheco, à cultura galega. O poeta, ficcionista, jornalista e crítico, nasceu em Coimbra, sendo neto de um galego, facto que o terá feito interessar pela Galiza, de que se tornou profundo conhecedor.
O empolgante romance retrata a vida de um galego, Benito Prada, que aos treze anos, resolve seguir as pisadas do pai que caíra doente, indo para Portugal ganhar o sustento da família. Não foi porém como afiador, que era o ofício do progenitor, mas como simples pedinte, por conta de outro galego, que chefiava um bando de miseráveis que percorriam o norte de Portugal. Depois, passou a ajudante de um comerciante de panos e, ao fim de dois anos, estava, praticamente, dono do negócio. De vendedor ambulante, dono de um mulo e de uma carroça, passaria a pequeno lojista instalado em Coimbra, cidade que o acolheu e onde o negócio prosperou tornando-se um dos maiores comerciantes de fazenda ali fixados.
Em paralelo às aventuras de Benito, o livro é também uma crónica da vida difícil na Galiza e da aflição nas famílias durante a guerra civil de Espanha. É também uma acirrada crítica à política portuguesa, com especial ênfase no conturbado período da presidência de Sidónio Pais e, depois, no domínio de Salazar e de Cerejeira.
Como grande repórter Fernando Assis Pacheco evidenciou-se como homem de grandes revelações. Escreveu sobre variados temas, onde esteve sempre presente a referência à boa gastronomia, especialmente a que assenta no saber popular. Quem o conheceu e com ele conviveu recordará um homem bem disposto, amante das coisas boas da vida, de onde se contavam a degustação dos bons acepipes da cozinha tradicional. O seu fascinante romance ora evocado não deixa de mostrar esta faceta do autor, que a cada passo dá referência a boas e importantes ementas, pois a vida das pessoas passa também por pegar numa naifa e cortar uma fatiga de broa para emborcar acompanhada por uma rodela de chouriça ou sentar-se à mesa e servir-se da panela para comer de faca e garfo. Muitos escritores, na ânsia de descreverem a acção mais relevante quase esquecem que ao falarem de pessoas, as têm de ir sentando à mesa. Sem manjar não há sobrevivência possível, além de que a refeição tem um interesse social que não pode ser olvidado quando se relata a vida de pessoas.
Assis Pacheco descreve a parca e miserável alimentação que os galegos de antanho comiam de portas a dentro, fala-nos na fugaz merenda dos afiadores e dos comerciantes ambulantes, mas também da comida divinal servida em restaurantes e preparada por mãos experientes. Partindo do caldo de berças, temperado com toucinho, saído das mãos da mãe de Benito Prada em Casdemundo, o autor conduz-nos até às comidas de eleição degustadas nas casas de pasto: galinholas estufadas, paella à sevilhana, arroz de polvo, cozido à portuguesa, cabrito estufado.
Magistral é a descrição da alimentação do protagonista do romance quando se instalou em Coimbra numa pequena loja de panos:
«O galego almoçava a frio de um tacho que trazia do quarto em Santa Clara, fechando a porta do estabelecimento para não ser surpreendido. Como levasse a poupança ao exagero, as sobras serviam-lhe de ceia. De tempos a tempos, um domingo por outro, metia-se no eléctrico e subia até Santo Agostinho dos Olivais, onde ia enganar a solidão de emigrante no Agostinho, cuja especialidade era chanfana de cabra velha cozinhada em vinho carrascão. Fome e mau comer tinham-no perseguido desde a Galiza e fora da Galiza, e só no tempo de feirante ganhou o gosto pelas refeições a horas, bem regadas, não raro em companhia do Grego, que era sócio com o dr. António Santiago de uma marinha que estava a peixe e nunca se esqueceu de partilhar com ele as canastras de enguias, mandadas fritar em alho e pimentão à moda dos almocreves».
«Trabalhos e Paixões de Benito Parda», o romance que nos traça a epopeia de um galego errante que acabou por assentar arraiais, tornando-se em próspero comerciante, é também um bom roteiro gastronómico, que se lê com prazer e com água na boca.
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
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Na meada do século XX os jovens estudantes que aportavam na cidade da Guarda viviam intensamente os momentos que passavam juntos. O convívio era são e a amizade era profunda. Falava-se de literatura, escreviam-se sonetos, planeavam-se serenatas à janela das moças e ia-se beberricar e petiscar à Cova Funda, a mais emblemática taberna da cidade.
Manuel Poppe, que estudou na Guarda por razões de saúde, pois fora-lhe aconselhado o ar da montanha, descreveu no seu livro «Memórias, José Régio e Outros Escritores» muitas dessas vivências de adolescente.
Aí conviveu com muitos jovens estudantes do distrito, que estudavam na cidade, entre os quais Pinharanda Gomes: «Um dos companheiros de lazer e discussão era o Pinharanda Gomes, lembro-me de planearmos um levantamento contra o regime, que envolveria o quartel da Guarda e duas camionetas de quadrazenhos».
Saindo da cidade, acompanhava por vezes alguns amigos que iam de fim-de-semana às suas terras. Assim conheceu as aldeias e os casais humildes da Beira, os «lares negros do fumo, com os enchidos pendurados e os caldeiros de ferro». Era gente pobre, que recebia com gosto quem lhe passava por casa, ainda que a comida fosse parca: «Uma vez, a mãe do Claudino, parceiro de futebol que morreu em 1962, em Angola, recebeu-me com um almoço especial: doze ovos estrelados. Era o melhor que podia oferecer.»
Por pertencer a família remediada, o pai era juiz, o jovem Manuel Poppe também viajava e experimentava os sabores de cada terra. Isso mesmo aconteceu numa pensão em Vila Nova de Paiva, onde as refeições eram servidas à mesa comum e a conversa entre o pai e um hóspede meio imbecil estava turva e agreste, valendo a comida que veio à mesa:
«A Dona Aurora, a patroa, trouxe a terrina fumegante, a canja de galinha com arroz e ovinhos a boiar, e o ambiente desanuviou-se.
– Ora aqui vem a sopinha!…».
A páginas tantas Manuel Poppe, que já adulto viajou muito e conheceu Mundo, revela-nos que é, afinal, um profundo apreciador da boa gastronomia. Fá-lo reagindo à afirmação de um amigo, com quem almoçava num restaurante, de que gostava que inventassem pílulas alimentícias porque a comida não lhe interessava para nada:
«Ora eu sempre apreciei a boa mesa: a boa comida e os bons vinhos, não entendo que se viva sem eles. É uma falha. Nas terras, nos países em que fui e vivi, apreciei a gastronomia, componente fundamental de culturas. Que disparate desprezar o ensopado de cabrito de Aldeia da Serra, a caminho do Redondo, ou as sopas de sarrabulho de Famalicão (onde me levava o meu querido amigo Rui Polónio Sampaio); o pato assado de Mântua (no Cigno d’Oro); o calulu de S. Tomé; o delicioso “tcholent” oferecido pela Shlomit, às sextas-feiras, no café Dizza, em Telavive!».
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
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Nascido em Quadrazais, concelho do Sabugal, Pinharanda Gomes é um dos mais prolixos escritores portugueses, com largas dezenas de livros publicados. Diversa é também a temática abordada, que vai da Filosofia à História, passando pela Religião, a Etnografia e mesmo a Biografia.
Para além da actividade literária propriamente dita Pinharanda Gomes é um homem da vida. Incapaz de recusar um pedido, a vida levou-o a manter colaboração, regular ou pontual, com uma imensidade de jornais e de revistas, a proferir largas dezenas de conferências, e a escrever perto de cem prefácios e posfácios em livros alheios, tendo ainda colaborado em dezenas de dicionários e enciclopédias.
A sua área de excelência é a Filosofia, onde integra o «pensamento português», na esteira de Leonardo Coimbra, Álvaro Ribeiro e José Marinho. Uma boa parte da obra literária está pois dedicada ao pensamento. Outra faceta importante, que talvez secunde o trabalho filosófico, é a dos textos de índole religiosa, alguns apologéticos outros historiográficos, todos realçando a profundeza e o enraizamento da doutrina católica nas convicções do nosso povo.
Dentro desse mesmo espírito se enquadra o volume «A Cidade Nova», que reúne um conjunto de reflexões acerca da religião e da sociedade. Seguiu-se a «Duas Cidades», sendo-lhe uma espécie de segundo volume, por dar continuidade ao tratamento dos mesmos temas. Os ensaios abordam a temática religiosa em diferentes quadrantes: a relação da Igreja Católica com as demais religiões, a renovação do pensamento católico, o papel de Maria no catolicismo e, por fim, o culto do Divino Espírito Santo em Portugal.
Precisamente neste último ponto, Pinharanda aborda a teologia do Divino numa perspectiva popular. Explica como esse culto se tornou tão celebrado entre o povo e como evoluíram as festividades, integradas no «ciclo da alegria», que se segue ao Domingo de Páscoa. Ali nos fala das loas, ou folias, dedicadas ao Espírito Santo, levando-nos até ao vôdo, ou bodo, que era a dádiva destinado inicialmente aos mais pobres e carenciados, e que depois evoluiu para lauto banquete, cuja confecção e composição variam consoante o lugar:
«O vôdo pode constar de caldo de carne, a sopa do Divino, e carne e pão e vinho, como nos Açores; ou leite, o que sucede em Vila Franca do Rosário (Açores) em que o promitente do voto traz as vacas para serem ordenhadas na praça pública e, o leite, distribuído pelos pobres. No Continente, onde o gado bovino de trabalho abundava mais do que o gado leiteiro, raro era o costume de matar a vaca. Preferiam-se os borregos, os cabritos, os coelhos, e outros animais miúdos, e também os comeres com ovos: chouriças embebidas em gema, fritas; enchidos vários; biscoitos de farinha triga e ovos, os coscoréis, espécie de filhó, amassada com ovos, uma base de farinha triga. Por então cantavam os moços:
É a moda dos coscoréis
E também a das rosquinhas
E também a das amêndoas
Que se dão às raparigas.»
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
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Nenhum escritor português ganha a Eça de Queirós nas referências à nossa cultura gastronómica. Os seus fascinantes textos em prosa abordam recorrentemente a importância do alimento na cultura humana. O comer e o beber são facetas da vida social a que Eça dá presença. Na ficção como nos textos jornalísticos, e mesmo na correspondência, encontramos sucessivos louvores à nossa gastronomia tradicional.
O creme queimado de «A Cidade e as Serras», a sopa juliana e a cabidela de «O Crime do Padre Amaro», o bacalhau com pimentos e grão-de-bico do «Fradique Mendes: Memórias e Notas», a sopa seca e os ovos com chouriço de «A Ilustre Casa de Ramires», são referências obrigatórias para qualquer compilação das receitas literárias queirosianas.
Mas nenhuma das ementas retiradas dos seus livros chega, em estilo e em grandeza, às receitas do caldo de fígado e moelas e do arroz de favas, vertidas nas páginas de «A Cidade e as Serras». É de um enquadramento deslumbrante.
O fidalgo Jacinto chega do luxo de Paris para visitar a sua quinta em Portugal, que mandara sujeitar a obras. Rodeado de confortos, viajou de comboio e aportou na estação de Tormes, onde, inesperadamente, ficou despojado das bagagens, que não chegaram a ser descarregadas, apenas com a companhia do amigo e confidente Zé Fernandes (o narrador), que com ele viajara. Outros desacertos os impediram de se alojarem no solar e, desesperados, acabam por ser conduzidos à pobre mas remediada habitação do caseiro da quinta, o Melchior, que abnegadamente os alimentou e acomodou.
A fome imperava quando os caseiros os levaram à mesa, no meio da maior das humildades, fazendo o melhor pelo fidalgo. Zé Fernandes temeu o pior: aquela alma não estava habituada a outra coisa que não fosse a requintada comida parisiense, rodeada de asseios e aparências, que ali faltavam. A franqueza era muita e louvável, mas a carência e a simplicidade da casa popular portuguesa não deixavam qualquer esperança. O Jacinto sucumbiria à falta dos luxos e dos sabores divinais a que estava habituado. Mas puro engano. A cozinha tradicional portuguesa fez o milagre.
«Uma formidável moça, de enormes peitos que lhe tremiam dentro das ramagens do lenço cruzado, ainda suada e esbraseada do calor da lareira, entrou esmagando o soalho, com uma terrina a fumegar. E o Melchior, que seguia erguendo a infusa do vinho, esperava que suas Incelências lhe perdoassem porque faltara tempo para o caldinho apurar… Jacinto ocupou a sede ancestral – e durante momentos (de esgazeada ansiedade para o caseiro excelente) esfregou energicamente, com a ponta da toalha, o garfo negro e a fusca colher de estanho. Depois, desconfiado, provou o caldo, que era de galinha e recendia. Provou – e levantou para mim, seu camarada de misérias, uns olhos que brilharam, surpreendidos. Tornou a sorver uma colherada mais cheia, mais considerada. E sorriu, com espanto: – “Está bom!”
Estava precioso: tinha fígado e tinha moela; o seu perfume enternecia; três vezes, fervorosamente, ataquei aquele caldo.
– Também lá volto! – exclamava Jacinto com uma convicção imensa. – É que estou com uma fome… Santo Deus! Há anos que não sinto esta fome.
Foi ele que rapou avaramente a sopeira. E já espreitava a porta, esperando a portadora dos pitéus, a rija moça de peitos trementes, que enfim surgiu, mais esbraseada, abalando o sobrado – e pousou sobre a mesa uma travessa a transbordar de arroz com favas. Que desconsolo! Jacinto, em Paris, sempre abominava favas!… Tentou todavia uma garfada tímida – e de novo aqueles seus olhos, que o pessimismo enevoara, luziram, procurando os meus. Outra larga garfada, concentrada, com uma lentidão de frade que se regala. Depois um brado:
– Óptimo!… Ah, destas favas, sim! Ó que fava! Que delícia!»
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
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A Balada da Neve é o poema mais conhecido de Augusto Gil, escritor guardense cuja obra se inspira na cidade mais alta e na gente que a habita. Embora nascido (em 1870) no Porto, foi para a Guarda ainda petiz e ali cresceu e se fixou, mau grado alguns períodos de afastamento, nomeadamente em Coimbra enquanto estudante universitário e depois em Lisboa onde ocupou cargos na Administração Pública.
Para além da poesia, Augusto Gil também se aventurou pela narrativa, de onde se destaca o livro «Gente de Palmo e Meio» que é, afinal, uma colectânea de contos de grande profundeza humana. São trechos da vida de crianças, umas pobres outras ricas, ainda algumas remediadas, que evidenciam a enorme sensibilidade do autor para os dramas que o rodeiam. As histórias centram-se em Lisboa, e relatam curiosas peripécias de petizes, que comovem o leitor.
Alguns dos contos referem o sofrimento das crianças que vivem em extrema carência, ajudadas por uns e enxotadas por outros. Também retratam miúdos corajosos que, sozinhos, desafiam o mundo, num sinal da maturidade que a vida difícil lhes proporcionou. Ainda há outros onde impera a ironia ou o fino humor. O contos «O Pobrezinho Honrado» retrata a vida madrasta de um menino de Manteigas que desceu a Lisboa com o pai para o ajudar na profissão:
«- Donde és tu menino?
– Ê cá sou de Manteigas…
– Sim? E tens pai?
Dilatou-se-lhe a boca num sorriso claro que acendeu um brilho maior na chama dos seus olhos límpidos.
– Antão não havêra de ter pai!…
– E que vida é a dele?
– Vende fazenda coma mim…»
Augusto Gil relata em traços fortes esta gente pequena, que comia sopa desenxabida ou pequenos nacos de pão migado no leite, quando não apenas uma peça de fruta. São relatos de comida pobre, num mundo desventurado.
Mas, no que toca a comeres, ninguém fica indiferente ao conto «A Santinha», que expõe a bondade de uma menina, «linda como o luar, de boca fresca e rubra que nem uma cereja mordida». Filha de gente abastada, vivia numa grande quinta, brincando só, à sombra de um cedro gigante:
«A criada desceu com o lanche numa salva, poisou-lha no banco de sobro, ao pé do cedro e, furtando-lhe um beijo, foi-se.
Os dois filhos do feitor, nem que lhes tivesse dado o faro da pitança, surgiram do lado oposto e quedaram-se numa atracção muda, a dois passos da bandeja…
A Lili ergueu o guardanapo, a ver: e seis olhos caíram ao mesmo tempo sobre um pastel de folhado, uma fatia barrada de manteiga e um cacho d’uvas moscatéis.
Pegou no cacho e ofereceu-o ao mais velho.
Tirou o pastel e deu-o ao mais novo.
Por fim, erguendo o que restava – era a fatia – levou-a à boca…
Mas um cachorrito ladino, vindo d’algures, a dar à cauda, acercou-se do grupo, de focinho no ar e pupila reluzente, com os latidos e migalhices que estavam mesmo a dizer:
– E eu?!…
A Lili sorriu; e depois de reflectir por uns instantes, privou do pão a sua boca e chegou-o à boca do cãozito, num doce gesto, resignado e vagaroso…»
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
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Aquilino Ribeiro é porventura o mais notável dos romancistas portugueses no que se refere à escrita regional. Homem da província, profundo conhecedor do saber popular, mas também intelectual das urbes, onde acabou por assentar arraiais, escreveu mais de cinquenta romances e novelas evocando o povo português.
«- Que há de almoçar? – perguntámos à mulher da taberna, uma digna e bochechuda matrona aprumada por detrás do balcão, ao lado dos copos espetados num escorredor de dentes, boca para baixo, enquanto Ralph consertava a correia no meio de grande ajuntamento de olharapos. Não havia nada; minto, havia uns bolos muito ressecos, e azeitonas. “E ali que tem?” – tornei a perguntar à vendeira, apontando uma terrina desasada. “Peixes cá do corgo, mas nem lhos ofereço que são amanhados à nossa moda e as senhoras não gostam”. “Deixe ver…” Provámos; era uma deliciosa calda de escabeche, gorda e profunda como cheia do Nilo, que afogava uma boa dúzia de trutas, esses extraordinários salmonídeos que pediram a casaca aos marqueses de Luís XIV, para serem os janotas da água doce, e o sabor ao manjar dos deuses para não ir nada igual à mesa de gulosos. E, veja, com broa de centeio, negra e crivada de olhos pequeninos, como se tivesse levado tiros de escumilha, um vinhinho, oh, mon cher, um palhete dos sítios que passava tilitando nas goelas e sabia a amoras e framboesas, almoçamos com mais regalo que os heróis de Homero quando abancavam à sua tão decantada barriga de porco, que um deles assava nas brasas com duas pedras de sal. À despedida a taberneira, enternecida com as honras que lhe prestou o nosso paladar, agarrou-se a nós em choro desfeito como se as trutas que tínhamos comido fossem pedaços da sua alma.»
Passámos um trecho do livro «O Homem que Matou o Diabo», de Mestre Aquilino, no qual retrata uma viagem de janotas às Beiras. Carregados de fome, aportaram na Venda da tia Maria Gaga, na Ponte do Abade, lugar da freguesia e concelho de Sernancelhe. Também aqui os fidalgos citadinos, que cruzavam as estradas de macadame montados em vistoso automóvel, se atormentavam com a pobreza da terras beiroas, sentindo-se despojados dos luxos em que era costume viverem.
Uma maçada essa viagem pelo Portugal rural, do qual se queriam ver afastados depressa. Mas, mais uma vez, quando a fome aperta, a gente de requinte, como era aqui o caso, lança-se ao que há ao dispor por mais inverosímil que isso lhes pareça.
A medo provaram o petisco, pensando em apenas matar a fome, que de outro modo não tocariam em comida assim disposta. Só que quando o pitéu lhes roçou as papilas gustativas, deixaram-se de seus brios e emborcaram sofregamente o que havia, como se acabassem de descobrir a melhor maravilha do mundo.
Pobre e abandonado, entregue apenas a si mesmo, o aldeão sabia viver, conquistando o seu prestígio, fruto de uma vivência regrada, baseada nas orientações do saber empírico, tirado da vida. Afinal o interior beirão não era assim tão irremediavelmente atrasado. Ali estavam as trutas de escabeche da taberna da Maria Gaga, confeccionadas à moda popular, para demonstrar como o saber antigo consegue melhor delícia que os pratos de preceito servidos nos restaurantes e hotéis das cidades.
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
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Manuel Leal Freire é o melhor conhecedor das histórias de sabor raiano. Conhece as tradições, aprecia os gostos gastronómicos e preza a virtude pelo trabalho que caracteriza o povo da raia sabugalense.
Ele mesmo homem do povo, adora movimentar-se no ambiente aldeão, onde encontra o campo predilecto para as suas investidas literárias. Conhecido advogado e escritor, nascido na Bismula, concelho do Sabugal, é um dos grandes mestres do saber popular. Seja na narrativa ou na poesia, há na sua escrita um intenso sabor rural, vindo do âmago da vida do povo, que canta com funda dedicação.
Enquanto jovem examinou as tradições de antanho, conviveu com o povo simples, conheceu as agruras da sua vida, participou em festas e arraias, acompanhou as romarias e embrenhou-se nas fartas pândegas, onde se convivia e comia à tripa forra. Sabe como ninguém o que era a animação dos convivas que se juntavam à roda de um petisco e duma pipa de vinho. Da sua narrativa, de estilo solto, navegando sempre nas vagas da ironia e no humor, saíram inúmeras descrições de patuscadas populares, onde a alegria e a emoção se tornam rainhas.
A prosa de Leal Freire tem o condão de cativar o leitor, nutrindo nele simpatia pelas personagens que descreve e as acções em que estão envolvidas. Cada quadro etnográfico tem os seus paladares, numa sistemática exaltação à gastronomia popular.
Vejamos um exemplo retirado do seu livro «Ribacôa em Contra Luz», que é uma colecção de memórias dos tempos de antigamente, quando o contrabando e a lavoura eram as formas de viver do povo da raia.
A dado ponto descreve uma pândega em Poço Velho, aldeia da primeira linha de fronteira, em tempos idos apetrechada por duas guarnições da Guarda Fiscal, pois era ali forte o apelo ao contrabando. Um jovem pastor entra na taberna, onde se encontra o amo a beberricar numa roda de amigos. «Patrão, sem querer parti a pata do carneiro grande», declarou em voz alta. As palavras do zagal encolerizaram o dono do gado, que irrompeu numa onda de impropérios. Porém a clientela, incluídos os guardas-fiscais que ali tomavam um trago, conseguem conduzir a situação para o melhor campo, contando inclusive com o apoio da tasqueira: o pastor que fosse ao bardo, acabasse com o carneiro e o trouxesse para ali, onde depressa se amanharia para uma boa patuscada.
«E logo ali se combina almoço, jantar e ceia, que, se o carneiro não chegar, há um oferece o queijo, outro uma chouriça (ou um cambulhão delas), outro um naco de lombo, outro dois coelhos bravos ou até dois galos (porque, constava-se, vem aí a morrinha, e vale mais comê-los sãos)…
O entusiasmo substitui a ira e o temor. Pândega graúda requer a presença dos amigos todos. Vai estafeta ao posto de lá prezar a guarnição e levar um toca dentes ao plantão que, coitado, porque de sentinela, não pode largar o posto. Depois, para guardas e famílias, para alguns amos do negócio e consortes, vai ser uma jornada de arrebenta estômagos e fígados.
Deixá-lo, comer e beber até rebentar; depois, jejuar.»
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
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