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Paulo Leitão Batista tem sido um atentíssimo «repórter» das capeias que neste Verão decorreram na Raia sabugalense. Nós, os leitores do blogue «Capeia Arraiana», estamos-lhe todos muito gratos por isso, sobretudo aqueles que, como eu, não puderam assistir ao vivo.
A propósito do texto de Paulo Leitão Batista intitulado «Os malabarismos das capeias» peço-lhe licença para acrescentar algumas «notas» antropológicas e históricas.
Na verdade, estes saltos acrobáticos remontam a uma tradição antiquíssima. Muito provavelmente, aqueles que, de forma tão ágil e corajosa os praticam nas nossas capeias, fazem-no tão espontaneamente que nem lhes passa pela cabeça que, na ilha de Creta, há cerca de 3500 anos, outros como eles faziam o salto mortal por cima de touros sagrados. Numa das fotografias aqui reproduzidas podemos ver um fresco do Palácio de Cnossos que nos mostra três momentos de um salto acrobático ritual. Os cretenses da época minóica veneravam o touro como símbolo da fertilidade e estas “acrobacias taurinas” efectuavam-se no âmbito de cerimónias religiosas. Muito provavelmente foram estas práticas que deram origem ao mito do minotauro.
Mas o curioso é que este ritual permaneceu na memória popular dos povos da orla mediterrânica e ainda hoje persiste: no sul de França efectuam-se as chamadas «corridas landesas» (courses landaises), nas quais jovens como o Frank ou o Balhé saltam por cima de vacas bravas ou dos pequenos touros da Camargue, conforme podemos ver nas fotografias. Também em várias regiões de Espanha encontramos uma prática semelhante, chamada «recorte»: rapazes destemidos e fisicamente bem preparados, chamados “recortadores”, saltam por cima de touros bravos, neste caso animais encorpados e poderosos.
As capeias arraianas sempre tiveram este segundo momento: depois do forcão «corria-se» o touro, com ou sem acrobacias. É sobretudo a pensar nesta segunda parte que Joaquim Manuel Correia chama «folguedo» à capeia. Ainda bem que estes rapazes, muitos deles «franceses-arraianos», alegram as capeias com a sua agilidade. Cabe-nos aplaudi-los.
Lembro-me bem de alguns dos mais «leves» rapazes de Aldeia do Bispo fazerem saltos espantosos, tanto por cima dos bois como para cima das calampeiras. Quando eu era garoto, dizia-se que o mais «leve» de todos era o António da Ti Claudina, também conhecido por António das Meninas: com as suas calças de pana metidas dentro das meias e as suas alpergatas espanholas, foi durante muitos anos um verdadeiro «líder» das capeias de Aldeia do Bispo. Morreu há pouco, com 93 anos. Merece descansar em paz e que a terra lhe seja leve.
«Na Raia da Memória», opinião de Adérito Tavares
ad.tavares@netcabo.pt
Aqui há um par de meses, a imprensa espanhola e europeia em geral «crucificou» o rei Juan Carlos I devido a um acidente que ele sofreu durante a participação numa caçada aos elefantes. Todavia, se as razões de ordem ecológica eram óbvias, existia por trás uma outra questão, esta de ordem ética: o rei encontrava-se acompanhado por uma alegada amante. Uma das muitas que a imprensa «cor-de-rosa» lhe costuma atribuir.

Muitos dos meus leitores lembrar-se-ão, por certo, de um caso semelhante, que envolveu o antigo presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton e uma jovem estagiária da Casa Branca, caso que chegou às mais altas instâncias do Poder americano. O bom-senso acabou por levar os senadores americanos a pôr um ponto final no folhetim. Na sociedade romana, os «senatores» eram os cidadãos nobres mais velhos e conceituados, supostamente os mais avisados, prudentes, sábios e sensatos. Infelizmente, antes como hoje, nem sempre isso acontecia. Muitos senadores romanos eram o protótipo antecipado do Frei Tomás: «Fazei o que ele diz, mas não o que ele faz.» E as denúncias sensacionalistas do jornalismo tablóide têm mostrado que alguns dos julgadores americanos também têm telhados de vidro. As pedras que, hipocritamente, atiravam sobre a Casa Branca, fizeram ricochete e estilhaçaram os seus próprios telhados.
Ninguém veja nas minhas palavras a desculpabilização do comportamento do Presidente Clinton e, do mesmo modo, do rei de Espanha. Na minha modestíssima opinião, eles agiram mal antes, durante e depois dos factos. Mas isso é uma questão, e o aproveitamento político e jornalístico do caso é outra.
Ao tempo da «lewinskyzação» da política americana, o histerismo sobre a vida privada dos políticos mostrava um sinal exterior de uma mentalidade puritana, que aparecia, aos olhos de qualquer europeu com milhares de anos de civilização às costas, como que um infantilismo histórico. Vejamos apenas alguns exemplos tirados dessa história europeia secular, cheia de casos tão ou mais explícitos que os de Clinton ou de Juan Carlos I.
Poderíamos falar de César e Cleópatra, ou de Calígula e as suas bacanais, ou da imperatriz Messalina, que parece ter hospedado no seu leito mais homens do que os que cabiam na arena do Coliseu; ou de Luís XV e a Pompadour. Ou de muitas rainhas e princesas que também não deixaram os seus créditos por mãos alheias: Catarina da Rússia, que preferia cossacos espadaúdos cheirando a vodka; ou Paulina Bonaparte, irmã de Napoleão, que, depois de se divorciar do general Leclerc, casou com o Príncipe Borghese, membro da mais alta aristocracia italiana, mas que vivia separada do marido porque este se envergonhava do seu comportamento libertino e licencioso. Poderíamos começar por tudo isso, mas comecemos antes pela nossa própria História.
São muito raros os reis de Portugal que não tiveram amantes. Abundam os bastardos e alguns deles até se tornaram reis, como acontece com D. João I, filho ilegítimo de D. Pedro I. Os casamentos régios eram geralmente uniões políticas, combinadas entre as casas reinantes da Europa, e só por sorte a um príncipe podia calhar uma princesa por quem viesse a sentir verdadeiro amor. Tanto lhe podia calhar em sorte uma mulher bela, sensível e bondosa (como parece ter acontecido com D. Dinis e D. Isabel, a futura Rainha Santa), como lhe podia sair uma mulher agreste e de pêlo na venta (como aconteceu com D. João VI e D. Carlota Joaquina). Portanto, nada de admirar que, cumprida a obrigação de assegurar descendência legítima, os monarcas procurassem outros leitos. É verdade que a religião condenava o adultério, mas havia sempre um confessor disponível para aliviar as consciências. E os reis sempre trataram bem os seus bastardinhos, nobilitando-os e doando-lhes vastas propriedades. O já citado D. João I, apesar de casado com a virtuosa e culta D. Filipa de Lencastre, não deixou de ter as suas aventuras extra-conjugais. De uma delas nasceu D. Afonso, que ele faria conde de Barcelos e duque de Bragança. Este D. Afonso, que casou com D. Brites Pereira, filha de D. Nuno Álvares Pereira, encontra-se ainda na raiz de outra das mais antigas famílias aristocráticas portuguesas, a Casa de Cadaval. E, para além disso, está também na origem da dinastia de Bragança. Duas das dinastias portuguesas tiveram, portanto, origem bastarda. E, se virmos bem, até a primeira: D. Afonso Henriques era filho de D. Teresa, ilegítima de Afonso VI de Leão e Castela. E isso que importância tem? Nenhuma.
O segundo rei de Portugal, D. Sancho I, teve 19 filhos, 11 legítimos, da rainha D. Dulce, e 8 bastardos, de várias mulheres. O próprio D. Dinis (casado com uma santa, como acima se diz!), também teve os seus amores mais ou menos clandestinos, dos quais nasceram 6 bastardos. Quanto a D. Pedro I, é bem conhecida a sua paixão extra-conjugal, avassaladora e trágica. Casado com D. Constança, viria a tomar-se de amores por uma das suas damas de companhia, a castelhana Inês de Castro, de quem teve três filhos. Já depois do assassinato de D. Inês (em 1355), D. Pedro teria ainda, de uma dama chamada Teresa Lourenço, mais dois bastardos – o já referido D. João, Mestre de Avis e futuro rei D. João I, e uma menina, D. Brites ou Beatriz. E consta até que este nosso rei D. Pedro, chamado o Cru ou o Cruel, demonstrou igualmente o seu apreço por alguns dos jovens pajens que o rodeavam.
Poderíamos multiplicar os exemplos. Ainda na história de Portugal, demos apenas mais um, o de D. João V. A rainha que lhe destinaram era uma austríaca frígida e friorenta, D. Maria Ana de Áustria, que, segundo conta José Saramago no Memorial do Convento, o fazia suar abundantemente debaixo de edredons de penas, enquanto se esforçava por garantir a sucessão ao trono. Logo que Nosso Senhor lhe deu descendência suficiente (e pela qual construiu, em troca, o próprio Convento), D. João V tratou de procurar amores mais ardentes. (Por alguma razão, no Palácio-Convento de Mafra, o quarto do rei e o quarto da rainha estão separados por um corredor com mais de 200 metros de comprimento!) Esses amores encontrou-os o Rei Magnânimo nos braços de uma freira de Odivelas, a célebre Madre Paula, de quem teve três bastardinhos. Instalou-os, juntamente com a mãe, no Palácio de Palhavã, em Lisboa, onde hoje fica a Embaixada de Espanha. Por isso, os infantes eram chamados os «meninos de Palhavã». Um deles viria a ser arcebispo de Braga e o outro Inquisidor-Mor do Reino. Como vê, leitor, em Portugal a bastardia régia nunca impediu ninguém de voar bem alto.
Na aristocrática e tradicionalista Grã-Bretanha não faltam também exemplos de amores ilícitos ao mais alto nível. Sem ser preciso recuar às tragédias históricas shakespeareanas, basta lembrarmos dois ou três casos relativamente recentes, a começar pela moralista rainha Vitória (1819-1901). Tendo subido ao trono muito jovem, com apenas 18 anos, casou em 1840 com um homem que muito amou, o Príncipe Alberto de Saxe Coburgo-Gotha. Teve um indiscutível e enorme desgosto quando enviuvou precocemente, em 1861. Durante alguns anos encerrou-se num luto puritano e obcecado, quase exigindo que o Reino inteiro partilhasse com ela esse luto. Era tão intransigente e rigorosa com os comportamentos e as aparências que ainda hoje aplicamos o adjectivo «vitoriano» a uma pessoa moralista e recatada. Pois bem: a moderna história da vida privada ainda não esclareceu suficientemente as relações que a rainha Vitória manteve com um inseparável mordomo escocês e, mais tarde, com um criado de origem indiana, com o qual viajava para onde quer que fosse. Mas tudo leva a crer que o comportamento da viúva rainha Vitória não seria lá muito «vitoriano».
Também o seu herdeiro, Eduardo, príncipe de Gales e futuro rei Eduardo VII, teve uma vida recheada de aventuras galantes, que já deram lugar a filmes e séries televisivas. Eduardo VII passou uma eternidade à espera do trono (como está a acontecer, aliás, com o actual príncipe de Gales). A rainha Vitória morreu com 82 anos e Eduardo VII já tinha 60 quando subiu ao trono, em 1901. Entretanto, enquanto esperava, foi aproveitando bem o tempo. Embora casado com a princesa Alexandra da Dinamarca, teve sempre amantes mais ou menos oficiais ou oficiosas, tendo uma especial predilecção por actrizes (o nosso rei D. Luís também tinha um fraquinho por bailarinas e cantoras espanholas). Um dos amigos íntimos de Eduardo VII foi o marquês de Soveral, diplomata português em Londres. Sabe-se que o marquês de Soveral era muito discreto e eficiente na forma diplomática como preparava os encontros amorosos do príncipe de Gales. Era, se quiséssemos usar uma linguagem vicentina, uma espécie de alcoviteiro-mor do herdeiro do trono britânico.
Não falemos, porque seria pouco «caridoso», dos amores e desamores do actual herdeiro do trono de Inglaterra. Lembremos apenas que, bem perto de nós, François Miterrand manteve, em todo o tempo em que foi Presidente da República francesa, duas mulheres e duas casas, uma a oficial e outra a secreta, situação que só assumiu publicamente quando se encontrava próximo da morte.
A vida privada dos políticos, particularmente a sua vida sexual, na Europa, raramente foi motivo para a sua exclusão do poder. E até mesmo o rei Eduardo VIII de Inglaterra, que foi forçado a abdicar do trono em 1936, quando se apaixonou pela americana divorciada Sra. Simpson, sabe-se hoje que foi mais devido às suas simpatias pró-nazis do que ao seu casamento. Ao contrário do que se passa na América, a velha sabedoria dos europeus tem-nos levado a relativizar as fraquezas humanas, sobretudo as fraquezas da carne, e a valorizar as capacidades políticas, intelectuais e humanas dos governantes. Foi talvez por isso que o antigo chanceler conservador alemão Helmut Kohl declarou aos jornalistas que a novela Clinton-Lewinsky apenas lhe «dava vómitos».
Concluamos esta crónica com uma citação de «O Príncipe», de Nicolau Maquiavel: «Não é necessário a um príncipe possuir todas as qualidades, mas sim parecer possuí-las.»
«Na Raia da Memória», opinião de Adérito Tavares
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Aqui há tempos, numa crónica intitulada «Não Matarás!», eu comentava no «Capeia Arraiana» o sempre polémico problema da pena de morte. E escrevia, logo no início desse artigo: «Vivemos tempos de insegurança e de violência urbana: a delinquência, os assaltos, as violações, a droga, os homicídios, os maus-tratos, tudo contribui para criar na boa-consciência burguesa uma predisposição quase involuntária para a aceitação da pena de morte, ainda que frequentemente as pessoas guardem dentro de si essa opinião mais radical.»

Periodicamente, a propósito de crimes de sangue muito violentos, a questão volta a ser aflorada na comunicação social. Os assassinos são por vezes condenados ao cúmulo jurídico de 80 ou 90 anos, sempre traduzido na pena máxima legal de 25 anos de prisão.
Muitos desses crimes selváticos e hediondos, sobretudo quando as vítimas são mulheres ou crianças, levam muita gente, no calor da indignação e sob o efeito da repulsa, a reclamar a pena de Talião: «olho por olho, dente por dente»; ou, na versão bíblica, «quem com ferros mata, com ferros morre».
Não vou aqui repetir as considerações que já explanei no artigo acima referido. As sociedades modernas, organizadas em Estados de direito, procuram ultrapassar os instintos primários e aplicar uma justiça de rosto humano. Racionalmente, civilizadamente, não podemos admitir que, num Estado moderno, se substitua a Justiça pela Vingança. E, muito menos, aceitar que sejam os cidadãos a fazer justiça pelas suas próprias mãos.
Ora é isso que, ultimamente, se tem vindo a verificar entre nós, com uma frequência inquietante. Os réus dos julgamentos mais mediáticos e chocantes, como aconteceu com o «caso de Joana», no Algarve, ou o do chamado «Rei Ghob», têm que ser constantemente protegidos da fúria irracional das populações. Caso contrário seriam linchados. O que, aliás, já aconteceu algumas vezes (lembremos o caso dos assaltantes de um armazém de electrodomésticos, em que um deles foi morto à pancada por populares, antes de a Polícia ter tempo de chegar).
E lembremos também as milícias populares que, um pouco por todo o País, se vão organizando espontaneamente, sempre que surge um problema local, real ou aparente: os que estamos atentos à comunicação social guardamos na memória nomes como Francelos, Oleiros, Cabanelas, etc., onde os telejornais nos têm mostrado magotes irados e gesticulantes, gente armada de varapaus e de barras de ferro, pronta a fazer justiça na praça pública. Umas vezes terão as suas razões para reclamar a atenção do Estado, outras vezes nem por isso. Seja como for, nada desculpa a intolerância, o racismo e a xenofobia, nada justifica a aplicação da lei da selva. Nos dias de hoje, melhor ou pior organizados, respondendo com maior ou menor eficiência, dispomos de vários corpos policiais cuja missão fundamental é exactamente aquela que as milícias populares pretendem usurpar: proteger os cidadãos e defender o Estado de direito.
Nos nossos dias, as sociedades modernas têm à sua disposição um vasto conjunto de polícias: urbana, rural, municipal, florestal, militar, marítima, fiscal, aduaneira, de viação, sanitária, judiciária, secreta, etc. Mas nem sempre foi assim. E, quando não havia quem as defendesse, as populações organizavam-se em milícias de vigilância e de defesa, então sim plenamente justificadas. Olhemos um pouco para trás, em busca da perspectiva histórica deste problema.
A palavra «polícia» tem a mesma origem que a palavra «política»: ambas derivam do conceito grego de «polis», a «Cidade-Estado». A política é a «arte de governar a polis»; a polícia é a «força pública encarregada de manter a ordem e defender os cidadãos».
A Polícia, tal como hoje a conhecemos, é relativamente recente. Mas sempre houve, nas sociedades antigas, senão corpos policiais organizados, pelo menos militares destacados para a manutenção da ordem pública e a defesa da estrutura social estabelecida. Em Roma, por exemplo, no tempo de Augusto, essa missão era desempenhada pelos stationarii, dirigidos por 12 curatores (um por bairro). Outros magistrados, os edis, velavam pela limpeza e abastecimento da cidade, tratando também dos divertimentos.
Durante a Idade Média europeia, a vigilância da ordem pública era efectuada pelas próprias comunidades, que se organizavam para o efeito. Todavia, à medida que se foram constituindo os Estados modernos (após o Renascimento), foram surgindo polícias governamentais, quase sempre com o objectivo primordial da manutenção da ordem social e política vigente. O conceito de polícia de segurança só irá surgir com o iluminismo setecentista.
Em Portugal, desde o século XIV que os monarcas criaram corpos de patrulhamento urbano (os quadrilheiros), mais ou menos numerosos consoante as épocas, mas sempre relativamente ineficientes. O grande sismo de 1755 revelou como os lisboetas estavam desprotegidos: centenas de ladrões e assassinos saíram das prisões desmoronadas e invadiram a cidade. Pombal, com a dureza e a rapidez de decisão que o haveriam de tornar famoso, reprimiu a ferro e fogo a criminalidade, mandando a tropa enforcar no local qualquer delinquente apanhado em flagrante. E, cinco anos depois, criou a Intendência-Geral da Polícia da Corte e Reino (lei de 25-6-1760). No entanto, a Intendência pombalina visava sobretudo objectivos políticos e menos a segurança pública. Esta vertente só seria acentuada mais tarde, depois de 1780, quando Diogo Inácio de Pina Manique foi nomeado intendente-geral.
A Lisboa desta época era uma cidade suja, sombria, infestada de ladrões, vagabundos, assassinos, prostitutas e… cães (nada menos que 80 mil!). Pina Manique tinha uma tarefa ciclópica à sua frente. Tratou, em primeiro lugar, de retirar muita daquela gente das ruas: os criminosos foram perseguidos e aprisionados, introduzindo o intendente nas cadeias portuguesas as modernas práticas de ocupação prisional; as crianças abandonadas, as prostitutas e os vagabundos foram recolhidos na Casa Pia, em sectores diferenciados. Em seguida, Pina Manique criou um sistema de recolha de lixo (inexistente em qualquer cidade portuguesa) e procedeu à instalação do primeiro sistema de iluminação nas principais ruas de Lisboa. Eram já passos importantes, indispensáveis para a prevenção do crime.
Mas o intendente dispunha de um reduzido corpo de funcionários policiais. Em 1793 eram apenas 100, numa cidade de 150 mil habitantes! E muitos deles, particularmente depois de 1789 (início da Revolução Francesa e das suas repercussões em Portugal), foram utilizados como agentes secretos (os «moscas»).
Perante a escassez de meios humanos com que garantir a segurança pública, Pina Manique, um político educado na «escola» pombalina, tomou uma decisão drástica: criou as Rondas Civis, autênticas milícias populares legais. Em 1785, surgiram rondas formadas pelos habitantes de cada rua, que eram escalados para o efeito. Cada casa tinha que disponibilizar, periodicamente, um elemento para a ronda, e nenhum homem ou rapaz se podia eximir a esta obrigação. Os ricos (nobres ou burgueses) podiam fazer-se substituir pelos respectivos criados. A ronda tinha uma matraca, um instrumento de percussão com o qual dava o alarme, alertando as outras rondas e a Guarda Civil a cavalo (duas patrulhas de cinco homens cada uma, que circulavam pela cidade).
Mas tudo isto era obviamente insuficiente. Os crimes violentos continuavam, e Diogo Inácio de Pina Manique não se cansava de exigir do Estado a constituição de um corpo policial numeroso e bem organizado. Demorou 20 anos a ser escutado. Só em 1801, por decisão do Príncipe Regente D. João, sob proposta do intendente ao secretário de Estado D. Rodrigo de Sousa Coutinho, foi formada a Guarda Real da Polícia de Lisboa. Um corpo militarizado constituído, inicialmente, por 628 homens e, a partir de 1805, 1241 guardas (a pé e a cavalo).
Nesse mesmo ano morria Pina Manique, o verdadeiro fundador da Polícia de Segurança, no nosso País(1).
(1) Para mais informações sobre este assunto, leia-se o excelente estudo de Albino Lapa, História da Polícia de Lisboa, publicado em 1964.
«Na Raia da Memória», opinião de Adérito Tavares
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Nem sempre a História foi feita por solenes senhores de respeitáveis barbas brancas, ou por ministros de puritanas suíças ruivas, ou por autoritários imperadores de bigode eriçado. Entre desgraças e maus-humores encontramos sempre quiméricos Quixotes e prosaicos Sanchos Panças, à mistura com subtis Erasmos e irónicos Eças. No entanto, nos testes escritos (os «pontos»), os nossos alunos conseguem o prodígio de nos revelar uma História insuspeitada, divertida, sacudida da poeira e das teias de aranha que, por vezes, a tornam tão maçadora.

«Pontos»! Fazê-los. Vê-los. Às centenas. Repeti dos. Monótonos. Cheios de erros ortográficos. É o nosso tormento, a nossa cruz, o nosso pesadelo! Claro, não é isso que manda a cartilha didáctico-pedagógica: o ensino planificado, as metas, os testes de diagnóstico e de posição, os testes formativos e sumativos, etc., etc. Os testes são indispensáveis, eu sei. Mas corrigi-los! E se o desgraçado professor tem 10 turmas de 30 alunos? Trezentos pontos!!!
Bom, mas não estou aqui para me encostar ao muro das lamentações. Pelo contrário: o título, lá em cima, promete coisa leve. No meio de toda a monotonia e aridez da correcção das provas escritas surge, aqui e além, um oásis repousante: são as «anedotas» involuntárias que os alunos nos oferecem. Qual o professor que as não encontrou? Quando nos juntamos, temos sempre uma na ponta da língua. Ainda recentemente uma revista escrevia sobre o assunto e, há anos, foi editado um livro sobre o tema. Quanto a mim, desde há muito que vou anotando graças involuntárias, quase sempre fruto da ignorância, da distracção ou da ingenuidade. O riso, ao contrário do que se diz, não é sinal de pouco siso. Só os animais inteligentes riem. E nós temos direito ao riso. Aqui ficam registadas algumas das muitas piadas recolhidas ao longo de vários anos de «pontos» de História.
Comecemos pela Pré-História. Um aluno distinguia assim os três grandes períodos do Paleolítico: «No Paleolítico Inferior, os homens usavam pedras, no Paleolítico Médio usavam espadas e no Paleolítico Superior usavam espingardas.» Outro, fez uma curiosa estatística demográfica: «Os pré-históricos faziam deusas da fertilidade porque em cada criança que nascia muitas morriam.»
A arte do povo do Nilo sempre intrigou aquele aluno que escrevia: «Os Egípcios eram um povo muito engraçado: andavam de lado.» Outro, à pergunta: «Na monarquia teocrática egípcia, qual era o papel do faraó?», respondeu com uma lógica irrefutável: «O papel do faraó era o papiro.» Ainda a propósito da história egípcia, escrevia um rapazinho: «No Egipto, a medicina não era propriamente para curar mas sim para tratamento dos mortos.» Finalmente, esta curiosa conclusão epis temológica: «Os Egípcios desenvolveram a astronomia hidráulica.»
A civilização hebraica inspirou mais estas: «Os Hebreus foram para a Palestina pastar»; «Abraão levou os Hebreus para Israel, que era a terra onde corria o leite e a manteiga»; «A Bíblia é o livro sagrado onde está escrita toda a vida de Jesus Cristo, antes e depois de Ele nascer».
A civilização romana também tem os seus apreciadores: «Roma foi fundada por dois recém -nascidos»; «A organização do Império Romano era uma organização muito bem organizada.» Por sua vez, «a Península Ibérica foi muito difícil de conquistar, porque estava rodeada de água por todos os lados menos por um». E Nero, dizia um dos meus alunos que «era imperador porque bebia muitas imperiais».
Avançando agora para a Idade Média, encontramos aquela menina que afirmava que «o Papa con cedeu ao rei o direito de investir». Ou ainda o outro que estabelecia conceitos inovadores: «A lei mental excluía os descendentes varões femininos.» E o leitor sabia que «D. Fernando fez a lei das Seis Marias»? Aliás, na História de Portugal não faltam exemplos graciosos, como aquele do aluno que, depois de baralhar os nomes, afirmava: «Pedro Álvares Pereira descobriu o Brasil depois de ganhar a batalha de Aljubarrota.» Quais são as características da arte manuelina? É fácil: «Os componentes da arte manuelina são a pedra, o cimento e a cal.»
E, acerca dos descobrimentos, esta prodigiosa descoberta: «Antes de descobrirem as terras, os Portugueses estudavam a sua situação nas cartas de marear.» Um autêntico ovo de Colombo, portanto. Quanto ao D. Sebastião, o Encoberto, dizia um rapazinho: «D. Sebastião morreu na batalha de Alcácer-Quibir, sendo aprisionado pelos Castelhanos. Ele morreu numa manhã de nevoeiro.» E, se o leitor não sabia, fica a saber que «a baixa pombalina chama-se assim porque tem muitos pombos».
O Renascimento italiano é um período que costuma fascinar os jovens. Só que, por vezes, os conceitos saem ligeiramente distorcidos pela ortografia, como no caso daquela menina gue escrevia, com ingénua ignorância: «Miguel Ângelo desenhou a cópula da Basília de S. Pedro.» Ou, ainda, no caso de um moço sem grande sensibilidade para as subtilezas da língua portuguesa, que afirmava: «Os mecenas eram senhores do Renascimento que costumavam acariciar os artistas.» Claro que o que eles costumavam era acarinhar os artistas. Honi soit qui mal y pense! Se não fosse deseducativo, eu podia ter escrito por baixo: «Às vezes também!»
Em Portugal, D. João III foi um rei-mecenas. Pergunta, a um aluno do 10.º ano: «Fale da política cultural de D. João III.» Resposta: «Pode-se dizer que D. João III era mais culto que D. João II e muito mais que D. João I.» Apeteceu-me anotar por baixo, com uma dupla ironia que ele, seguramente, não alcançaria: «Que grande cultura não teria D. João VI!»
A revolução industrial, o sindicalismo, as ideias socialistas, etc., também têm originado boas piadas (por favor, não me interpretem mal). Dizia um jovem e aplicado estudante, matando dois coelhos de uma cajadada: «A Inglaterra dispunha de muita mão-de-obra-prima.» Por sua vez, outro afirmava que «o Comboio revolucionou a revolução dos transportes». E um terceiro garantia que «o socialismo utópico é aquele que chega ao topo». Ainda dentro do mesmo tema: perante a miséria da classe operária, no século XIX, qual foi a resposta do movimento sindical? Conclusão óbvia de um aluno com nítida vocação burocrática: «O movimento sindical respondeu dizendo que ia estudar o caso…»
Finalmente, um exemplo daquilo a que nós chamamos «palha», isto é, escrita para encher, sem ideias nem conteúdo, numa hábil manobra de «deitar o barro à parede». Pode ser que pegue! Pedia-se para os alunos, num exame de História das Artes Visuais, falarem da arquitectura romântica. E surgiu esta preciosidade: «As características básicas deste edifício são inovadoras, pois a dinâmica elaboral flui sem precedentes do exotismo das linhas arquitectónicas. A linha básica é canalizada por detorpismo de formas e pelo exagero de cenas decadentes e improvisadas, representativas da cultura romantesca não incluída nos padrões projectuais vigorizantes.» Um espanto! Com neologismos e tudo.
É tempo de acabar. Aguardemos por mais. A originalidade e a criatividade dos nossos jovens alunos são uma promessa de humor constante e renovado. E Clio (a musa da História) não se zanga.

«Na Raia da Memória», opinião de Adérito Tavares
ad.tavares@netcabo.pt
Já por mais que uma vez, nesta «raia da memória», pedi títulos emprestados. Volta a ser o caso de hoje: «Noite e nevoeiro» é o título de um admirável filme de Alain Resnais sobre o Holocausto, um verdadeiro libelo acusatório sobre a barbárie nazi e, simultaneamente, uma reflexão sobre os limites da crueldade humana.
Já foram escritos milhares de livros e realizados inúmeros filmes sobre esta temática; os factos ocorreram há setenta anos, numa Europa varrida pela maré negra dos extremismos (fascismo, nazismo e estalinismo); vivemos em democracia, não vislumbramos no horizonte europeu novos Mussolinis, Hitleres ou Estalines; então porquê insistirmos no mesmo tema?
Não tenho certezas sobre isto. Costumo dar a ler aos meus alunos de História Contemporânea um texto de Umberto Eco intitulado «O protofascismo», no qual o conhecido escritor italiano desenvolve a ideia de que o fascismo não é um fenómeno histórico localizado no tempo, que surgiu e se afirmou um pouco por toda a Europa nos anos 20 e 30 do século passado, e ao qual a vitória das democracias em 1945 pôs um ponto final. Para Umberto Eco, o fascismo é intemporal, encontrando-se de forma embrionária e latente no seio das sociedades humanas; bastará que as circunstâncias económicas, sociais e políticas se conjuguem para ele ressurgir. O «ovo da serpente» está pronto para ser chocado pelas dificuldades económicas, o hiper-desemprego, os nacionalismos exacerbados, os egoísmos nacionais, o militarismo, o proteccionismo, etc.
Já assistimos, nos anos 90 do século XX, ao afloramento de práticas nazi-fascistas nos Balcãs. Voltámos a ver prisioneiros esqueléticos em campos de concentração sérvios e descobrimos, horrorizados, o massacre de milhares de bósnios muçulmanos em Srebrenica, cujas valas comuns se assemelhavam às da floresta de Katyn.
Mas será que a civilizada União Europeia corre o risco de regredir à «noite e nevoeiro» da «era dos extremos»? Não estaremos já vacinados contra os extremismos e os anti-semitismos? Talvez não. O ressurgimento de forças políticas de ultradireita na Áustria, na Holanda, na Alemanha, na Itália e até nos civilizadíssimos países escandinavos não nos deixa descansados. Outro sinal preocupante é o alastramento do negacionismo relativamente ao Holocausto: «As câmaras de gás e os fornos crematórios onde foram assassinados milhões de seres humanos nunca existiram.» Afirma-o (sem grande credibilidade é certo) o presidente do Irão, mas também filósofos como Roger Garaudy, corifeu daqueles a quem Mário Vargas Llosa chama «los Purificadores». E o senhor Le Pen, sem coragem para ir mais longe, classifica o Holocausto como «um detalhe da História».
A 2.ª Guerra Mundial deixou atrás de si um rasto de morte e destruição (50 milhões de mortos, incontáveis feridos, deslocados e desaparecidos, cidades arrasadas). O sofrimento humano foi indescritível, mas existem episódios que, por si só, nos dão a dimensão da desumanidade alcançada nesta época; uma desumanidade tão extrema que levou a historiadora Hannah Arendt a falar, relativamente ao totalitarismo nazi, em «banalização do mal». Podíamos aqui referir os casos das cidades de Oradour-sur-Glane, em França, e de Lídice, na Checoslováquia, cujas populações foram completamente exterminadas pelos nazis – homens, mulheres e crianças. Mas limitemo-nos a transcrever um episódio ocorrido em 10 de Julho de 1941 na aldeia polaca de Jedwabne, descrito por Jan Tomasz Gross, no seu livro Vizinhos. Este massacre, segundo Gross, teria sido perpetrado com a colaboração activa de parte da população não-judia da aldeia:
«Depois de cercarem a vila por guardas para que ninguém pudesse escapar, os judeus foram obrigados a dirigirem-se até ao celeiro, numa via dolorosa pontuada por violentos espancamentos: ensanguentados e feridos, foram empurrados para o interior do celeiro. Depois, este foi regado com querosene e incendiado. A seguir, os selvagens andaram de casa em casa à procura dos doentes e crianças que tivessem ficado para trás. Transportaram para o celeiro os doentes que encontraram, enquanto as crianças eram atadas pelas pernas, umas às outras, em pequenos grupos e levadas às costas e depois colocadas em forquilhas para serem atiradas às chamas.»
Em contraponto, para reforçar a ideia de intemporalidade do racismo e dos extremismos religiosos, defendida por Umberto Eco, podemos citar um drama semelhante a este mas muito mais antigo, narrado por Damião de Góis na sua Crónica do Felicíssimo Rei D. Emanuel, a propósito do massacre de judeus em Lisboa no ano de 1506. Apesar da distância temporal, as semelhanças são evidentes:
«Juntos mais de quinhentos, começaram a matar os Cristãos-novos que encontravam pelas ruas, e os corpos, mortos ou meio-vivos, queimavam-nos em fogueiras que acendiam na Ribeira e no Rossio. […] E, nesse Domingo de Pascoela, mataram mais de quinhentas pessoas. A esta turba de maus homens e de frades que, sem temor de Deus, andavam pelas ruas concitando o povo a tamanha crueldade, juntaram-se mais de mil homens, os quais, na Segunda-feira, continuaram esta maldade com maior crueza. E, por já nas ruas não acharem Cristãos-novos, foram assaltar as casas onde viviam e arrastavam-nos para as ruas, com os filhos, mulheres e filhas, e lançavam-nos de mistura, vivos e mortos, nas fogueiras, sem piedade. E era tamanha a crueldade que até executavam os meninos e crianças de berço, fendendo-os em pedaços ou esborrachando-os de arremesso contra as paredes.»
Paremos um pouco para respirar fundo. Os tempos de crise e de desnorte que vivemos, em que todas as nossas certezas parecem desmoronar-se como castelos de cartas, obrigam-nos a repensar o presente à luz dos erros do passado. Na Espanha, o desemprego total anda pelos 24% e o desemprego jovem aproxima-se dos 50%! Os números em Portugal ainda não são tão dramáticos mas são igualmente assustadores. Sem querer fazer induções anacrónicas, lembro que, quando os nazis chegaram ao poder, em Janeiro de 1933, o desemprego total na Alemanha tinha atingido 43%! Estamos na hora de a Europa acordar e de se olhar ao espelho da sua História.

«Na Raia da Memória», opinião de Adérito Tavares
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Estamos em «Ano Olímpico»: não tarda, desta vez em Londres, iniciar-se-á mais uma Olimpíada Moderna. Talvez valha a pena, como temos feito nesta «Raia da Memória», tentarmos estabelecer mais algumas relações passado-presente.
O historiador inglês Arnold Toynbee considerava que, na origem das civilizações, se encontrava sempre um processo de desafio-resposta. A humanidade avançava, progredia, criava civilização quando respondia positivamente aos desafios naturais – a caça, a pesca, a agricultura foram respostas ao desafio fome; a disputa das cavernas aos animais ferozes, a construção de cabanas, de casas, de arranha-céus, foi a resposta ao desafio frio. E assim por diante. Dito de outro modo: todo o processo histórico se teria resumido a uma constante fuga à dor e busca do prazer. Nas áreas onde os estímulos eram demasiado fortes (como as regiões polares) ou demasiado fracos (como os trópicos), as civilizações não se desenvolveram ou estagnaram.
E quem respondia aos estímulos? Seria uma resposta colectiva ou individual? Seria dada por toda a comunidade ou só por alguns dos seus elementos? Na opinião de Toynbee, apenas alguns indivíduos excepcionais, que ele designava por «minoria criadora», respondia aos estímulos e, portanto, geravam cultura e civilização. Esses teriam sido os génios, os insubmissos, os inconformistas, os inovadores − os Aristóteles, os Arquimedes, os Galenos, os Da Vincis, os Galileus, os Hertz, os Darwins, os Einsteins, os Picassos, etc. Teriam sido esses os homens que ultrapassaram os limites, que dilataram as fronteiras do conhecimento.
Trata-se de uma tese, de uma opinião, da qual podemos obviamente discordar. Pessoalmente, penso que esta análise do processo evolutivo das sociedades humanas é demasiado esquemática, demasiado linear. As coisas nem sempre são apenas isto ou aquilo. Há inúmeras variáveis que podem condicionar o processo histórico. Até o acaso, como vimos numa destas crónicas. E, se é verdade que o papel do indivíduo como agente da história não pode ser ignorado, não é menos verdade que cada vez mais tem que ser tomado em consideração o papel das massas, das classes sociais, dos grupos de pressão, das instituições, etc. A concepção de história baseada exclusivamente na decisiva actuação dos Césares e dos Napoleões está ultrapassada. Mais que a história das árvores, procura-se hoje fazer a história da floresta. Ainda que no meio dela existam árvores mais altas ou mais frondosas, que dão mais frutos ou mais sombra. Mas essas árvores, por si, não formam a floresta. Hoje, a história é a «ciência dos homens no tempo», como dizia Marc Bloch. Dos homens e das mulheres no seu todo, em sociedade.
E, no entanto, vivemos tempos de individualismo e de fortíssima competição. Mas só na aparência este facto é contraditório em relação a uma história cujo agente primordial é colectivo. Cada vez mais, nas sociedades contemporâneas, exaltamos os ganhadores, o triunfo, o sucesso. Teria Toynbee razão? As nossas sociedades progridem e avançam em função da resposta de uma «minoria criadora»? Não forçosamente. É verdade que incensamos os heróis da política, do espectáculo e do desporto. Mas que tem isso de mal? Absolutamente nada. A competição estimulante faz parte da natureza humana. É natural e saudável que as crianças e os jovens lutem pelas melhores classificações, pelo primeiro lugar nos jogos, pelo emprego melhor remunerado. Foi precisamente a convicção de que o estímulo concorrencial era maléfico, de que os homens deviam ser tratados todos igualitariamente, que conduziu à atrofia económica e cultural das sociedades ditas socialistas. Segundo parece, o homem gosta de lutar pelo triunfo, sobretudo se souber que, no final, pode obter uma recompensa. Ainda que essa recompensa seja uma simples coroa de oliveira brava, como acontecia nos Jogos Olímpicos antigos.
Em Olímpia, de quatro em quatro anos, entre 776 a.C. e 392 d.C., atletas vindos de todo o mundo grego reuniam-se em honra de Zeus para tentar ir mais alto, ir mais longe, ser mais forte. Ser o primeiro, para receber depois as honras do triunfo, as ovações da assistência, a glória efémera dos deuses do estádio. Regressar à sua cidade-estado, ser vitoriado pelas ruas e apontado às crianças como um modelo, eis a suprema ambição do jovem atleta helénico.
O espírito competitivo não impediu os Gregos de cultivarem o amor pelos altos valores do espírito e da moral. Não impediu o florescimento da filosofia, do teatro, da poesia, da arte. Não impediu a formação de personalidades profundamente humanas e humanistas como a de Sócrates. O próprio Aristóteles foi atleta olímpico. O espírito competitivo, em si mesmo, é positivo. Negativa é a competição sem regra nem lei.
Quando, em 1896, o barão Pierre de Coubertin promoveu a realização dos primeiros Jogos Olímpicos modernos, procurou restaurar o espírito da competição desinteressada. Hoje cada vez menos desinteressada, é certo, mas nem mesmo isso é forçosamente negativo. Até porque não é rigorosamente verdade que os atletas da Grécia antiga competissem apenas pela coroa de oliveira. No ano de 594 a. C., Sólon decretou que os campeões de Olímpia podiam receber um prémio de 500 dracmas, o que apenas oficializou o costume de o povo e as autoridades vencedoras recompensarem generosamente os seus heróis.
Tudo isto não significa a apologia da concorrência desenfreada e a todo o preço, da competição selvagem, do triunfo custe o que custar, do sucesso maquiavelicamente obtido sem olhar a meios para alcançar os fins, usando e abusando dos outros para «subir mais alto, ir mais longe e ser mais forte».
O doping, seja ele químico, social ou moral, deverá ser sempre penalizado.
«Na Raia da Memória», opinião de Adérito Tavares
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O CERN (Centro Europeu de Investigação Nuclear) acaba de confirmar a existência do «bosão de Higgs» ou «partícula de Deus». Esta descoberta coloca a física no caminho para a compreensão das origens da matéria e da vida, demonstrando, mais uma vez, que não existem «ciências exactas», definitivas, acabadas. Toda a ciência está permanentemente «em construção», graças ao contributo de sucessivas gerações de cientistas. Newton dizia: «…vejo mais longe porque me sentei sobre os ombros de gigantes.»
A moderna astronomia põe hoje na nossa frente um espantoso Universo! Poderosos telescópios perscrutam os céus e recebem luz emitida há milhares de milhões de anos. Sondas espaciais medem radiações e calor, em busca dos testemunhos do «big-bang», uma gigantesca explosão ocorrida há talvez 15 mil milhões de anos, que teria dado início à formação das estrelas e das galáxias.
Esses potentes telescópios, como o Hubble, ou o do Monte Palomar, nos Estados Unidos, dotados de lentes com vários metros de diâmetro, atingem distâncias impensáveis: estão hoje ao seu alcance dez mil milhões de galáxias, algumas das quais situadas a centenas de milhões de anos-luz (lembro que um ano-luz equivale à distância percorrida pela luz durante um ano, à velocidade de 300 mil quilómetros por segundo, isto é, cerca de 10 biliões de quilómetros).
Uma galáxia é um enorme aglomerado de estrelas. A galáxia de que faz parte o Sol, a Via Láctea, é composta por cerca de 100 mil milhões de estrelas. A galáxia mais próxima da nossa, a Grande Nebulosa de Andrómeda, igualmente formada por um número de estrelas semelhante ao da Via Láctea, situa-se à distância de 2 milhões de anos-luz. Por outras palavras: a luz que agora nos chega da Nebulosa de Andrómeda é uma luz «arqueológica», partiu de lá quando na Terra viviam os australopitecos.
Perante a prodigiosa grandeza destes números, somos irremediavelmente remetidos à nossa própria pequenez. Se conseguíssemos auto-observar-nos a partir de um ponto situado algures nesse Universo distante, que significado teriam as nossas mesquinhas disputas? Dizia Erasmo de Roterdão, em 1511, no Elogio da Loucura, que «se alguém pudesse observar os mortais a partir da Lua, julgaria ver milhares de moscas e de mosquitos envolvidos em rixas, guerras, maquinações, rapinas, enganos».
Na verdade, o Homem tem passado demasiado tempo a olhar para o seu próprio umbigo. Durante milhares de anos, acreditou mesmo que era o centro do Universo e que tudo girava à sua volta. A Terra constituía um ponto fixo em torno do qual se moviam os restantes planetas e o próprio Sol. Esta concepção geocêntrica do Universo, exposta por Ptolomeu no século II, foi aceite quase unanimemente até ao século XVI. Antes de Ptolomeu, apenas o grego Aristarco de Samos tinha defendido a hipótese de a Terra girar à volta do Sol, mas as suas ideias contrariavam de tal modo o senso comum que foram rapidamente esquecidas. Os livros de Aristarco perderam-se e só conhecemos o seu pensamento através das escassas referências que lhe faz Arquimedes de Siracusa.
No século XVI, o polaco Nicolau Copérnico retomou as propostas de Aristarco de Samos e, depois de algumas viagens a Itália e de demorados estudos, publicou em 1543 o seu De Revolutionibus Orbium Coelestium, no qual defende a teoria heliocêntrica: o Sol é uma estrela fixa, em torno da qual giram a Terra e os outros planetas.
Ainda nesse século, o dinamarquês Tycho Brahé e o alemão Johannes Képler confirmam o heliocentrismo de Copérnico e determinam as órbitas elípticas dos planetas. Já no século XVII, o italiano Galileu Galilei prova matematicamente a teoria heliocêntrica e procede às primeiras observações dos astros com um telescópio construído por si próprio. Na Inglaterra, Isaac Newton estabelece a teoria da gravitação universal dos corpos e desenvolve a astronomia experimental, designadamente através da invenção do telescópio de reflexão, que permitiria aumentar sistematicamente o diâmetro das lentes.
Estes foram alguns dos homens que «fizeram girar a Terra». Eles estão na origem de uma verdadeira revolução científica: juntamente com outros físicos, matemáticos e filósofos, como Francis Bacon, Pascal, Descartes, Leibniz e Torricelli contribuíram decisivamente para a substituição de uma mentalidade aproximativa por uma mentalidade de rigor. Daí em diante, as distâncias, os pesos, o tempo, a temperatura, tudo passou a ser medido rigorosamente, através de instrumentos então inventados – o relógio de pêndulo, o termómetro, o barómetro, etc.
No entanto, não se pense que todo este progresso científico foi conseguido sem oposição. As grandes e profundas mutações, sejam de carácter sociopolítico, económico ou cultural, encontram sempre resistências. E as resistências à mudança vieram, no caso da revolução científica do século XVII, sobretudo da Igreja Católica.
A Igreja não aceitava que fosse posto em causa o saber tradicional. Vivia-se então uma grave crise religiosa, desencadeada pela Reforma Protestante e pela resposta católica, traduzida no movimento da Contra-Reforma. As ideias inovadoras eram portanto consideradas perigosas e heréticas. Copérnico apenas escapou a um eventual julgamento porque morreu poucos meses depois da publicação do seu livro. Todavia, um dos seus continuadores, Giordano Bruno, viria a morrer na fogueira por ideias semelhantes. Galileu foi também julgado pela Inquisição e só evitou a fogueira porque aceitou renegar publicamente as suas teses (não deixando, todavia, de murmurar para si próprio: «E, no entanto, ela move-se!»). Só recentemente, 350 anos depois do julgamento, a Igreja Católica procedeu à reabilitação de Galileu. O amanhecer da tolerância é espantosamente lento!
A história, durante muito tempo, apenas estudou a mudança. Hoje investiga também as resistências à mudança. Interessa-nos saber como William Harvey, no século XVII, estabeleceu com segurança o princípio da circulação do sangue mas também nos interessa estudar todo o processo que levou muitos médicos a recusarem este conhecimento inovador durante dezenas de anos. Ou estudar as razões por que se ridicularizou a teoria da evolução das espécies, de Charles Darwin. Ou ainda as razões da rejeição do impressionismo, do cubismo ou do surrealismo na época em que apareceram.
Alguém definiu a ciência como «curiosidade organizada». Se não fosse o inconformismo, o espírito de descoberta e de aventura, a ânsia de saber, muito provavelmente o «homem» ainda hoje viveria nas árvores. Como as outras 192 espécies de primatas.
«Na Raia da Memória», opinião de Adérito Tavares
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Para concluir este novo conjunto de crónicas, voltemos às viagens, retomando a prática já aqui seguida em vários outros artigos sobre Roma, Veneza, Nova Iorque, Istambul, etc.
Numa longa e diversificada viagem pelo Norte de Espanha e pelo Sul de França, visitei cidades fascinantes como Bilbau, Barcelona, Carcassonne, Nimes, Arles, Aigues-Mortes e Avignon. E locais de grande beleza natural ou de extraordinária riqueza patrimonial, como os deslumbrantes parques naturais das duas vertentes dos Pirenéus, ou os mosteiros de Poblet, Monserrate e Ripoll, na Catalunha, ou ainda a Pont du Gard, essa grandiosa ponte-aqueduto, obra-prima do génio construtor da Roma antiga.
Os leitores adivinham facilmente neste roteiro uma fonte abundante e cristalina de temas, não para uma mas para várias crónicas. Hoje, porém, fiquemo-nos pelo tema já anunciado no título deste artigo: Avignon, a bela cidade da Provença, senhora de um riquíssimo património arquitectónico e de uma fervilhante vida cultural.
O nome desta cidade traz-nos de imediato à memória (pelo menos aos mais velhos) duas reminiscências dos bancos do liceu – o Grande Cisma do Ocidente (com a Cristandade dividida na obediência a dois papas, um a residir em Roma e o outro em Avignon) e uma cantiguinha que aprendíamos nas aulas de Francês («Sous le Pont d’Avignon… on y danse, on y danse…»). A ponte de que fala a canção é a Pont Saint Bénézet, sobre o Rhône, uma lindíssima e romântica construção medieval, arruinada desde o século XVII, que termina a meio do rio. Alguns dos meus leitores, talvez associem também esta cidade ao famoso quadro de Picasso «Les Demoiselles d’Avignon». Todavia, neste caso, as tais «demoiselles» não eram de Avignon; tratava-se de gentis meninas das «casas de passe» da Calle de Avignon, em Barcelona. Quanto ao facto de Avignon ter sido, durante mais de uma centena de anos – «a outra Roma» – isso obriga-nos a lançar «um olhar sobre a história».
Em 1305, no conclave de Perugia, foi eleito papa o arcebispo de Bordéus, Bertrand de Got, que adoptou o nome de Clemente V e seria o primeiro dos papas de Avignon. O novo pontífice, ao contrário do que era habitual, não foi para Roma, optando por ser sagrado em Lyon e fixar residência em Avignon (1309). No entanto, seria apenas o seu sucessor, João XXII (1316-1334), que tinha sido bispo desta cidade, quem viria a declarar explicitamente que não sairia de França, decidindo instalar formalmente a “Santa Sede” na “nova Roma”. Durante os pontificados de Bento XII (1334-1342), Clemente VI (1342-1352) e Inocêncio VI (1352-1362), a residência dos Papas, em Avignon, transformou-se progressivamente num autêntico palácio-fortaleza. A própria cidade recebeu, entre 1355 e 1370, uma fortíssima cintura de muralhas, ainda hoje praticamente intacta (se bem que restaurada).
Em 1367, Urbano V (1362-1370) tenta o regresso a Roma, mas em breve concluiria que a cidade do Tibre se tinha tornado perigosa para um «papa gaulês» e regressa a Avignon. Sucede-lhe Gregório XI (1370-1378), o último dos «papas franceses», que transfere de novo a cadeira de Pedro para Roma, em 1376. Em 1378 foi eleito um papa italiano, Urbano VI, bispo de Bari. Urbano VI propôs uma profunda reforma da hierarquia eclesiástica que, porém, suscitou uma violenta recusa. A sua eleição foi declarada nula pelo Sacro Colégio e, pouco depois, procedeu-se a nova escolha. O eleito seria o cardeal Roberto de Genebra (Clemente VII), que optou por se fixar em Avignon, acompanhado pelo Colégio Cardinalício rebelde. Entretanto, em Roma, Urbano VI recusa-se a resignar e nomeia um novo Colégio. Surgiam, deste modo, duas «obediências» e a Igreja dividia-se: era o Cisma.
Esta dramática ruptura surgida no seio da Cristandade ocidental acentuou clivagens político-militares já existentes: alguns países, como a Inglaterra (envolvida na guerra a que depois se chamaria dos Cem Anos, contra a França), ou Portugal (aliado da Inglaterra) obedeciam ao papa de Roma, enquanto outros, como Castela ou a própria França, obedeciam ao papa de Avignon.
Finalmente, em 1414, reuniu-se o concílio de Constança, onde se tentou ultrapassar a cisão. O objectivo era o de destituir os dois papas rivais e proceder a uma nova eleição. Três anos depois, em Novembro de 1417, a escolha de Martinho V, um italiano da nobre família dos Colonna, pôs fim ao Grande Cisma do Ocidente (lembremos que, nos meados do século XI, tinha ocorrido outra cisão na Cristandade, o Grande Cisma do Oriente, que originara a Igreja Cristã Ortodoxa). No entanto, apesar de reunificada, a Igreja Católica sairia fragilizada desta grave crise e a autoridade papal ficou enfraquecida. Cem anos depois, em 1517, iniciar-se-ia a rebelião de Martinho Lutero, que conduziria a uma nova cisão, que ainda hoje permanece.
A prolongada estadia dos pontífices marcaria definitivamente Avignon. O Palácio dos Papas e a impressionante muralha que cerca a cidade dominam a paisagem urbana. Tal como sucedeu com muitos outros monumentos, a residência papal não conseguiu atravessar incólume o passar dos séculos. A iconoclastia da Grande Revolução Francesa de 1789 deixou no edifício profundas marcas negativas, posteriormente agravadas pela longa ocupação militar. Pelo meio, um terrível incêndio danificou quase irremediavelmente algumas zonas do Palácio, que seria sujeito a um restauro nem sempre respeitador das origens.
Mas o leitor, se for a Avignon, verá que «a outra Roma» possui muitos outros motivos de interesse. Visite a Catedral de Notre-Dame-des-Doms; e a flamejante Igreja de Saint-Pierre; e a Igreja de Saint-Agricol, com a sua fachada gótica e o seu admirável retábulo dos Doni; ou os muitos museus da cidade; e perca-se nas praças e pracinhas com acolhedoras esplanadas e nas ruelas pontuadas aqui e além por grupos de rua que tocam música de encantar; depois, atravesse o Rhône e jante na esplanada de um dos restaurantes da «Ilha», ao entardecer, com o rio e a velha cidade a ficarem progressivamente dourados pelo pôr-do-sol. Finalmente, se for tempo disso, à noite assista a um dos espectáculos do Festival Internacional de Teatro de Avignon, no grande palco instalado na Cour d’Honneur do Palácio dos Papas. E, estou certo disso, quando partir, prometerá voltar.
«Na Raia da Memória», opinião de Adérito Tavares
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Na já longa série de «histórias» aqui contadas, houve algumas que resultaram de impressões de viagens. Aliás, tal como já anteriormente tive oportunidade de dizer, as viagens são um excelente tema para crónicas e reflexões. Mergulhemos, portanto e mais uma vez, na mesma fonte.

A Turquia é um país fascinante, verdadeira fronteira entre o Ocidente e o Oriente, entre o mundo europeu e o mundo asiático. Local de encontro de povos e de culturas, por ali encontramos alguns dos mais antigos vestígios da história da Humanidade: foi na Península da Anatólia (depois chamada Ásia Menor) que surgiram algumas das primeiras cidades (como Çatal-Hüyuk) e se estabeleceu uma das mais brilhantes civilizações antigas (a dos Hititas). Mais tarde, no início do 1º. milénio a. C., vagas de povos provenientes da Grécia, como os Jónios e os Eólios, fundaram várias cidades na costa asiática banhada pelo mar Egeu. Algumas destas cidades (Mileto, Éfeso, Pérgamo, Halicarnasso e outras) foram o berço de uma autêntica revolução no conhecimento: aqui surgiu a filosofia, aqui se desenvolveu a matemática, a geografia, a história, etc. O cientista Carl Sagan escreveu que o progresso científico da Jónia foi tão extraordinário que, se não tivesse sido interrompido, hoje estaríamos 600 anos adiantados. Por outras palavras: teria havido aviões no tempo do nosso rei D. Dinis e naves espaciais no tempo de D. João II. E, claro, hoje estaríamos a fazer aquilo que os nossos descendentes farão dentro de seis séculos.
No começo do século V a.C., as cidades gregas da Ásia Menor foram conquistadas pelos Persas e, mais tarde, reconquistadas por Alexandre Magno. E, no século II a.C., seria a vez de os Romanos integrarem toda a Anatólia no seu vasto Império. Uma das cidades fundadas pelos Gregos, na estreita passagem do Egeu para o mar Negro (Bizâncio), seria transformada numa espécie de segunda capital do Império no tempo de Constantino (Constantinopla). E, quando o Mundo Romano se dividiu em dois, Bizâncio-Constantinopla tornar-se-á a esplendorosa capital do Império Romano do Oriente.
No século XV, todavia, o velho Império Bizantino foi progressivamente ocupado pelos Turcos, um povo islamizado originário do Médio Oriente. No ano de 1453, Constantinopla foi conquistada pelos Turcos Otomanos, que lhe alteraram o nome para Istambul. A ambição turca, todavia, não se contentou com esta riquíssima cidade. Acabariam por ocupar toda a Península Balcânica, incluindo a Grécia e os territórios que depois seriam a Roménia, a Bulgária, a Hungria, a Jugoslávia, etc. (a existência de muçulmanos na Bósnia deve-se à ocupação turca, que se prolongou até ao século XIX). A fulgurante expansão turca originou um dos maiores impérios de todos os tempos, sobretudo no reinado do sultão Solimão o Magnífico (século XVI). No seu apogeu, este Império incluía, para além do actual território turco e dos Balcãs, o Norte de África (desde a Tunísia ao Egipto), a Palestina, a Síria, a Arábia e o Iraque. A partir do século XIX, todavia, iniciar-se-ia o declínio: a Grécia, a Sérvia, a Roménia e a Bulgária alcançam a independência. Outros territórios balcânicos são anexados pela Rússia ou pelo Império Austro-Húngaro. E, com a derrota do Império Turco Otomano na 1.ª Guerra Mundial, perdem-se todos os territórios do Norte de África e do Médio Oriente, a favor dos vencedores, sobretudo a França e a Inglaterra, que os transformam em protectorados.
Esta longa (e talvez maçadora) dissertação histórica pareceu-me necessária para compreendermos o esplendor e a riqueza monumental da Turquia dos nossos dias. Quem visita Istambul fica deslumbrado com o Hipódromo, a Basílica de Santa Sofia ou a Cisterna de Justiniano, dos tempos romano-bizantinos; ou com a maravilhosa Mesquita Azul e a não menos impressionante Mesquita de Solimão o Magnífico; ou com o Topkapi, a antiga residência dos sultões, verdadeiro palácio das mil e uma noites.
E é exactamente sobre o Topkapi que eu gostaria de dizer mais alguma coisa aos leitores. O palácio fica situado no local mais belo de Istambul, num ponto elevado, com uma vista deslumbrante sobre o Bósforo (o estreito que separa a Europa da Ásia) e sobre o Corno de Ouro (uma reentrância do Bósforo que, ao pôr-do-Sol, apresenta reflexos dourados). Os salões do Topkapi mostram-nos hoje o que foi a riqueza e o poderio do Império Turco: armas, porcelanas, tapeçarias, mobiliário, jóias lindíssimas, tudo nos deixa boquiabertos. O famoso diamante do Topkapi, com 86 carates; o trono Bayran, de ouro puro e pedraria; ou o trono turco-indiano, de um luxo verdadeiramente «asiático»; a lindíssima adaga Topkapi, de ouro e diamantes, com três enormes esmeraldas do tamanho de ovos de pomba no cabo; candelabros de ouro maciço, pesando 50 quilos cada um; dezenas de esmeraldas, rubis, turquesas e todo o género de preciosidades que possamos imaginar, verdadeiro tesouro de Ali-Babá, tudo nos deixa estarrecidos. Isso e a arquitectura do palácio, os jardins, as cozinhas, a biblioteca, etc. etc. E, «last but not least», o harém.
Como se sabe, o Alcorão, o livro sagrado do Islamismo (a religião praticada por 99% dos turcos), autoriza a poligamia. Actualmente, a prática da poligamia não é permitida na Turquia. A revolução nacional dos anos 20, encabeçada por Mustafá Kemal Ataturk, aboliu o sultanato e instaurou uma República laica, ocidentalizada. No entanto, antes disso, a poligamia era tão frequente na Turquia como nos restantes países muçulmanos. A tradição poligâmica remonta ao próprio Profeta Maomé, que tinha quatro esposas quando morreu. O crente islâmico podia, portanto, ter tantas esposas quantas pudesse sustentar. Trata-se, obviamente, de uma prática populacionista. Em tempos de grande mortalidade, convinha incentivar o populacionismo como forma de os países serem fartos em mão-de-obra, exércitos, etc.
Pouco a pouco, porém, o número de esposas tornou-se um sinal de prestígio e de poder. Se um mercador rico tinha 20, um ministro devia ter 50 e o rei muitas mais. Há o caso conhecido de um xá da Pérsia, no século XVI, que tinha um harém com 60 esposas legítimas e 3000 concubinas (três mil, leu bem). Aqueles leitores que estiverem a pensar que elas se destinavam a satisfazer os apetites carnais do xá, fiquem sabendo que não era para isso que as concubinas serviam (ao ritmo de uma por dia, ele demoraria cerca de 10 anos a dar a volta!). Aliás, o xá raramente entrava no harém. Chegavam-lhe as esposas legítimas (das quais teve 180 filhos). O harém, ferozmente guardado pelos eunucos, era uma instituição de afirmação do poderio real. As jovens concubinas, recrutadas por todo o País por funcionários especiais, permaneciam alguns anos no harém e regressavam depois às suas terras, com um bom dote, sem que alguém lhes tivesse tocado.
O harém do Topkapi não tinha tanta gente. Habitualmente, o número de mulheres do sultão turco (as odaliscas) andava pelas 300. Chegavam ao palácio muito jovens, com 5 ou 6 anos, recebendo depois uma esmerada educação, preparando-se para agradar ao rei. Vinham de todos os pontos do imenso Império: eram árabes, egípcias, núbias, etc. As mais apreciadas eram as caucasianas, pela sua beleza, a sua pele branca e, em alguns casos, os olhos azuis. Começavam por ser noviças, depois tornavam-se concubinas (aí pelos 15 anos) e, finalmente, esposas. Todas disputavam os favores do sultão porque, se caíssem nas suas graças, podiam obter enormes riquezas e privilégios, ser mães dos príncipes ou mesmo do herdeiro.
As dependências do harém real, no Topkapi, são de um luxo requintado, com as paredes revestidas de lindíssimos azulejos e reposteiros, e o chão coberto de riquíssimas tapeçarias. E, por todo o lado, cochins e almofadões, rendas e brocados. E, pairando no ar, parece-nos escutar ainda melodiosos sons de flauta e de alaúde, vozes chilreantes de jovens e belas mulheres, risos, suspiros. E o mais que deixo à imaginação dos leitores. Porque, como dizia Camões, nestas coisas, «melhor é experimentá-lo que julgá-lo, mas que o julgue quem não puder experimentá-lo».
«Na Raia da Memória», opinião de Adérito Tavares
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O mundo em que vivemos está ameaçado. Pelas guerras, pela globalização selvagem, pelo aquecimento planetário e pela degradação ambiental, pelo esgotamento dos recursos. Mas existem também muitas razões para termos esperança no futuro. Carl Sagan, um dos mais notáveis divulgadores da Ciência, dizia que «os tempos mais gloriosos da Humanidade ainda estão para vir». Oxalá tenha razão.

«No Admirável Mundo Novo da minha fantasia, o eugenismo e o seu contrário eram sistematicamente praticados. Numa série de frascos, óvulos biologicamente superiores, fertilizados por esperma biologicamente superior, recebiam o melhor tratamento pré-natal possível e eram finalmente decantados como Betas, Alfas e até Alfas+. Noutra série de frascos, muito mais numerosa, óvulos biologicamente inferiores, fertilizados por esperma biologicamente inferior, eram sujeitos ao Processo Bokanowsky (noventa e seis gémeos retirados de um só ovo) e tratados, prenatalmente, com álcool e outros venenos proteínicos. As criaturas finalmente decantadas eram quase sub-humanas; mas eram capazes de realizar trabalhos que não requeressem perícia e, quando convenientemente condicionados, relaxados por livres e frequentes relações com o sexo oposto, constantemente distraídos pelo divertimento gratuito, e incitados a cumprirem os padrões do seu bom comportamento por doses diárias de soma, podiam considerar-se como incapazes de causarem qualquer preocupação aos seus superiores.»
Aldous Huxley escreveu estas palavras em 1958, num livro intitulado Regresso ao Admirável Mundo Novo. Huxley tinha publicado, em 1931, um dos mais famosos livros de ficção científica de todos os tempos, justamente intitulado Admirável Mundo Novo (Brave New World) e, agora, neste estudo, escrito 27 anos mais tarde, procurava mostrar que algumas coisas que, no seu romance, eram ficção, se aproximavam da realidade. Aldous Huxley, infelizmente, morreu em 1963. Se fosse vivo, provavelmente escreveria um novo ensaio para se congratular com o rigor das suas «profecias». É que, cada vez mais, a ficção se vai tornando realidade. E muito mais depressa do que o próprio Huxley previa: a fábula huxleyniana situava-se aí pelo século VI d. F. (depois de Ford), ou seja, lá para dois mil quinhentos e tal. Ora a verdade é que, antes ainda do final do século I d. F., já se tornaram possíveis práticas como a fertilização in vitro, a manipulação genética e, recentemente, a clonagem de mamíferos. Não estamos muito longe da produção artificial de seres humanos em série, tal como acima a descreve o grande escritor inglês.
No Admirável Mundo Novo, o problema da superpopulação desaparece. Os seres humanos deixam de nascer de «mães». Todos são «produzidos» em grandes laboratórios do Estado, em placentas artificiais. Produziam-se tantos quantos eram necessários, homens ou mulheres. Alguns eram «fabricados» excepcionalmente inteligentes (poucos, os Alfas), outros bastante inteligentes (os Betas); os Gamas e os Deltas constituíam a camada medianamente inteligente, capaz de executar mas não de decidir; e, finalmente, todos os restantes (os futuros trabalhadores indiferenciados e submissos), eram programados para atingirem um quociente intelectual abaixo da média. Para isso, durante a «produção», na placenta artificial, aos futuros líderes e quadros superiores ministravam-se alimentos e medicamentos meticulosamente seleccionados e, ao comum dos mortais, substâncias que lhes atrofiassem o cérebro e os impedissem de alcançar um desenvolvimento normal. Depois do nascimento (ou melhor, da «decantação»), seguia-se um cuidadoso processo educativo, baseado no condicionamento psicológico e na hipnopedia. Deste modo, não só existiam exactamente os indivíduos necessários como apenas os suficientes. Chegados a adultos, iam ocupar o lugar que lhes cabia no aparelho produtivo e na sociedade, mantidos em sossego graças às distracções, às relações sexuais inteiramente livres e sem quaisquer riscos e à abundância de soma (uma droga distribuída gratuitamente pelo Estado Mundial, sem consequências para o organismo mas de efeitos eufóricos e relaxantes extraordinários, uma espécie de super-prozac). Todos aceitavam pacificamente o destino que lhes cabia. A Humanidade alcançava a grande utopia: fim da superpopulação, da pobreza, da instabilidade social, dos protestos, das greves, das guerras.
Noutra excepcional obra de ficção, 1984, escrita em 1948, outro escritor inglês igualmente céptico quanto ao futuro da Humanidade, George Orwell, descreve-nos uma sociedade ultra-totalitária, uma espécie de nazi-estalinismo, com um super-ditador que por todos velava e a todos vigiava: o Big Brother. Aqui, o controlo dos indivíduos é alcançado pelo terror. Na sociedade imaginada por Huxley, as pessoas deixam-se dominar pacifica e alegremente. E ainda agradecem. De qualquer desses dois terríficos «mundos novos» está ausente a liberdade individual de agir e de pensar. Trata-se de parábolas, é verdade, mas inspiradas na experiência pessoal dos seus autores e numa visão crítica da história recente. São visões pessimistas e obviamente desiludidas, mas que não deixam de conter premonições alarmantes. E as notícias sobre a clonagem de animais aí estão para o confirmar.
Há alguns anos, a revista Nature trazia um artigo relatando uma experiência bem sucedida de «produção artificial» de uma ovelha, a que chamaram Dolly, exclusivamente a partir de células extraídas da glândula mamária de outra ovelha, sem intervenção de espermatozóides. Deste modo, Dolly é geneticamente igualzinha à sua mãe, ou seja, é um duplicado dela. A este processo chama-se clonagem: teoricamente, a partir de quaisquer células de qualquer ser vivo (ou morto, se elas forem conservadas), podem fazer-se vários duplicados desse ser. Absolutamente idênticos, em termos genéticos, uma vez que não resultam de qualquer cruzamento. Assim, poderíamos ter 11 gémeos perfeitos do Cristiano Ronaldo, ou 20 Shakiras, ou mil Kim Jong – qualquer coisa.
Só teoricamente. Pelo menos para já. É que os novos seres não surgem adultos, são crianças idênticas, em termos físicos, ao indivíduo de que derivam, mas nunca o serão em termos psíquicos. Para obtermos um Kim Jong-il exactamente igual àquele que governou a Coreia do Norte até há pouco, seria necessário que o seu pequeno duplicado recebesse a mesmíssima educação, passasse por experiências iguais, tivesse as mesmas alegrias e as mesmas tristezas, etc.
Procurando exorcizar os temores que se começaram a instalar após a divulgação da notícia da clonagem da Dolly, escrevia José Vítor Malheiros, num excelente artigo do «Público»: «O património genético constitui apenas um dos factores da individualidade. A clonagem não é uma transplantação do cérebro. Um clone será necessariamente uma outra pessoa, porque a sua idade será diferente, a sua gestação, nascimento, educação, serão diferentes. A sua consciência será diferente porque a sua circunstância, a sua história, será diferente. Para mais, tudo o que hoje se sabe sobre o cérebro leva a pensar que é a experiência que molda a pessoa e cria os padrões a que chamamos pensamento, memória e escolha – e não os genes.»
Por outras palavras: a partir de algumas células de Hitler nunca conseguiríamos fazer uma réplica de Hitler. Concordo plenamente com o jornalista. A questão da hipotética clonagem de seres humanos deverá ser olhada com cuidado, analisada de forma calma e sensata do ponto de vista bioético e jurídico, mas sem sensacionalismos exacerbados nem temores excessivos. A experiência da ovelha Dolly constitui, de facto, um marco de inegável valor científico. No futuro, há-de ser lembrado como um dos grandes momentos da investigação científica do nosso tempo. Mas, tal como aconteceu com muitas outras assinaláveis conquistas da Ciência, da clonagem poderão resultar grandes benefícios ou grandes malefícios para a Humanidade. Depende do próprio Homem.
Quando, há alguns anos, nasceu o primeiro «bebé-proveta» na Inglaterra, levantou-se no mundo um coro de protestos semelhante ao que se levantou a propósito da Dolly. E os habituais profetas da desgraça previram consequências que não se concretizaram. Deixemos assentar a poeira. Como diz o povo, «Deus escreve direito por linhas tortas». Apetece-me contar aos leitores, a este propósito, a história do sacristão de Winchester, contada pelo escritor Somerset Maugham: um dia, o sacristão da catedral de Winchester foi despedido por ser analfabeto. Triste e amargurado, caminhava por uma longa avenida, à procura de um maço de cigarros. Não tendo encontrado nenhuma tabacaria, lembrou-se de abrir ele próprio uma. O negócio correu-lhe bem e em breve tinha várias tabacarias e até fábricas de tabaco. Tornou-se milionário, um verdadeiro «Rei do Tabaco». Numa ocasião em que estava a tratar do fornecimento de matéria-prima com um produtor americano, este passou-lhe o contrato para assinar, tendo o nosso homem respondido: «Não sei assinar. Sou analfabeto.» O americano exclamou, assombrado: «Se o senhor chegou a milionário sem saber ler nem escrever, onde estaria hoje se soubesse!» E o «Rei do Tabaco» respondeu, fleumaticamente: «Eu sei o que teria acontecido: seria sacristão na catedral de Winchester.»
Nem sempre os factos aparentemente negativos desencadeiam desgraças. Se é verdade que a dinamite inventada por Alfred Nobel pode decepar o braço do pedreiro, também é verdade que sem ela não se teriam construído os túneis dos caminhos-de-ferro de todo o mundo. E, com os lucros obtidos, Nobel ainda hoje continua a estimular o progresso científico, os estudos económicos, a literatura e a paz.
«Na Raia da Memória», opinião de Adérito Tavares
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No final do século XIX, a Europa dominava o planeta. Era a fábrica do mundo, o banco do mundo, o cérebro do mundo. O europeu acreditava na força da sua cultura, da sua economia, da sua História.
Em 1859, Charles Darwin, na sua obra «A Origem das Espécies», tinha exposto a teoria evolucionista, segundo a qual todos os seres vivos foram originados por outros anteriores, sobrevivendo apenas os mais aptos, os mais velozes, os mais fortes, os mais inteligentes. Aqueles que, devido a um «erro» de carácter genético (uma mutação), nascem desadaptados (deficientes, frágeis, incapazes de caçar ou de se defender), não têm qualquer hipótese de sobreviver. Portanto, não transmitem as suas deficiências ou insuficiências não existem leões coxos, coelhos desdentados ou águias cegas. A Natureza encarrega-se de os eliminar: é a selecção natural. Pode, no entanto, acontecer que uma mutação, por um feliz acaso, torne um animal mais apto: uma girafa que, circunstancialmente, nasce com o pescoço mais alto que as outras, numa época de escassez de vegetação, sobrevive melhor que as outras, de pescoço mais baixo, transmitindo a sua mutação aos descendentes.
Na óptica darwinista, o homem evoluiu pelo mesmo processo. Não descendemos dos actuais macacos (como, erradamente, alguns interpretaram as afirmações de Darwin, ridicularizando-o por isso), mas sim de antepassados comuns. Quando, há 4 ou 5 milhões de anos, a África austral, densamente povoada por florestas, sofreu profundas alterações geológicas e climáticas, muitas espécies animais extinguiram-se. Outras, por se encontrarem casualmente adaptadas às novas condições do meio, sobreviveram e multiplicaram-se. Foi o caso dos Homo habilis que, por conseguirem caminhar verticalmente, desenvolveram mãos hábeis e cérebros mais evoluídos. Puderam, assim, sobreviver no ambiente hostil da savana e originar, ao que se pensa, toda a humanidade.
O darwinismo surgiu numa época de crença absoluta nas potencialidades inesgotáveis da ciência. O positivista acreditava que o futuro e a felicidade do homem residiam no progresso científico. O homem, finalmente liberto das amarras da ignorância, da superstição e do irracionalismo, tornar-se-ia senhor do seu destino. Foi essa confiança ilimitada nas capacidades do homem para traçar o seu próprio caminho que o filósofo Nietzsche sintetizou na teoria do super-homem.
Friedrich Nietzsche (1844-1900) recusa as concepções morais e religiosas judaico-cristãs e defende um homem que, acima das paixões, impõe a si próprio deveres e obrigações, finalidades criadoras, desenvolvendo ao máximo aquilo que deverá ser o cerne da sua vida: a vontade de poder. Para Nietzsche, a vida apenas tem sentido se cada homem for livre de determinar o seu próprio destino. Só assim ele pode recusar a escravidão e escolher a condição de senhor, de super-homem.
Infelizmente, como muitas vezes acontece, tanto o darwinismo como o pensamento nietzscheano foram abusivamente interpretados. Não faltaram aqueles que, apropriando-se do conceito de sobrevivência dos mais aptos e da ideia nietzscheana de super-homem, imaginaram um mundo de dominadores e dominados, de senhores e escravos, de raças superiores e raças impuras e degeneradas. Melhor ou pior elaboradas, não tardaram a afirmar-se doutrinas justificativas de colonialismos e de imperialismos, de racismos de todo o tipo, de holocaustos e genocídios. E surgiram também práticas eugénicas que, «substituindo» ou «ajudando» a Natureza, procuravam «tornar mais eficaz» a selecção natural eliminando os velhos, os doentes terminais, os deficientes, os portadores de taras, os loucos, os ciganos, os negros, os judeus. Criando, em síntese, o «verdadeiro super-homem»: ariano, alto, louro, forte, imune à piedade e à dor alheia, nascido para dominar e ser servido.
Foi essa a hedionda utopia nazi, alicerçada num meticuloso e frio desprezo pelo ser humano. Um desprezo de tal modo eficiente que levou ao extermínio programado de muitos milhões de pessoas. Ao Homo germanicus tudo seria permitido, porque pertencia a uma raça de deuses.
E, no entanto, em 1936, nos Jogos Olímpicos de Berlim, um negro humilhou os «super-homens» arianos. O norte-americano Jesse Owens ganhou quatro medalhas de ouro de um só fôlego e Hitler abandonou apressadamente o estádio para não ter de o felicitar.
Hoje, ao vermos os modernos «super-homens» do desporto, de todas as raças e de todos os credos, não podemos deixar de dar razão a Nietzsche (mas não aos seus abusivos intérpretes) – o homem faz-se a si próprio. Através do estudo, do treino persistente, do sacrifício, do livre arbítrio. Em suma, da vontade de poder.
Quando assistimos à notável performance de um atleta, temos alguma dificuldade em imaginar quanto esforço está por trás – geralmente são «três por cento de inspiração e noventa e sete de transpiração», como alguém disse. Foi por isso que o pintor Degas preferiu retratar os ensaios de ballet em vez da exibição final. Atraíam-no os nove décimos do iceberg. Exactamente como naquela conhecida história de Picasso: um dia, quando o famoso pintor se encontrava num restaurante da moda, abeirou-se dele um admirador que pediu para Picasso fazer ali mesmo um desenho e lho vender. O pintor fez o desenho e, em seguida, pediu-lhe cinco mil francos. «Cinco mil francos por três minutos?!» – exclamou o comprador. «Não» – respondeu Picasso – «Cem francos pelos três minutos e o resto pelos oitenta anos que estão para trás.»
Um homem nunca se mostra inteiro. Vemos dele muito menos do que aquilo que ele é. Mesmo quando a apresentação pública não resulta brilhante, quando o pianista se engana, ou quando o atleta falha e não ganha medalhas, quando se retira cabisbaixo e de lágrimas nos olhos, mesmo então ele merece os nossos aplausos. Por todo o esforço oculto. Uma queda não tem importância, importante é sabermos levantar-nos sempre que caímos.
«Na Raia da Memória», opinião de Adérito Tavares
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O título da crónica que se segue (e só o título) foi-me sugerido por um subproduto televisivo transmitido pela RTP1 há alguns anos – uma história lamecha, do género «romance da Coxinha» –, uma das múltiplas novelas com que quotidianamente nos ensaboam o juízo.
Fernando Pessoa foi um homem constantemente torturado por uma angústia metafísica que lhe atormentou a existência. Num dos seus mais conhecidos poemas, Tabacaria, céptico, amargo e desiludido, confessa: «Vivi, estudei, amei e até cri / E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.» Pessoa inveja os ignorantes por serem ignorantes da sua ignorância. Inveja a rapariga pobre e suja que come chocolates, porque «não há mais metafísica no mundo senão chocolates». Inveja «o Esteves sem metafísica» que sai da tabacaria metendo o troco na algibeira. E, todavia, tanto Pessoa como Mário de Sá-Carneiro interrogam-se sobre o que seja a autêntica felicidade. O inocente, o louco, o ignorante, serão felizes? Que é ser feliz sem o saber? Uma pedra será feliz? Para se ser verdadeiramente feliz não será indispensável consciencializar a felicidade?
Será verdade que a sabedoria mata a felicidade? Ao comer a maçã, Adão foi condenado à infelicidade? Será a felicidade inatingível? E será mensurável? Os cinco escudos que a minha madrinha Vieira me dava no dia da festa da Senhora dos Milagres, em Aldeia do Bispo, proporcionavam-me uma felicidade incomensuravelmente maior que os milhares de euros que, eventualmente, me pudessem sair amanhã no totoloto. Por outro lado, hoje, ler um bom livro, ver um bom filme, ouvir um concerto, visitar Paris, Florença, Siena, Nova Iorque ou Toledo (as minhas cidades preferidas!), comer uma boa refeição em boa companhia, dão-me uma felicidade que na infância ou na juventude não existia. Em cada idade existe uma felicidade diferente. Ou, glosando Pirandello, é legítimo dizer que para cada um existe a sua felicidade. Um golo, no momento mais decisivo do mais importante desafio de futebol deixa-me perfeitamente indiferente. Em contrapartida, proporciona momentos de indiscutível felicidade a muitos futebolómanos.
Existem, é certo, causas óbvias de felicidade ou de infelicidade – ter ou não ter saúde, ter ou não ter acesso aos confortos da vida moderna, possuir ou não uma família estável e «normal», gostar ou não do trabalho que se faz, viver ou não com um mínimo de «qualidade de vida». Depois, a personalidade de cada um faz a diferença. Há os eternos descontentes e insatisfeitos e aqueles que se satisfazem com muito pouco e que valorizam as pequenas alegrias da vida. Tive um colega, o Henrique, que ficou cego e sem um braço devido à explosão de uma granada. Já depois do acidente, licenciou-se em História e tornou-se um professor apreciado e respeitado pelos seus alunos. Em casa, era ele quem tratava da mãe, idosa e entrevada. Tudo isto, que seria motivo para grande infelicidade, fez dele um homem lutador, que enfrentava quotidianamente a adversidade com uma coragem admirável. À sua maneira, era feliz. Lembra-me, aliás, aquela história de um fulano que sentia uma grande frustração por ser baixinho e a quem passou o desgosto quando um dia conheceu um homem sem pernas.
O ser humano é de uma complexidade espantosa. A própria infelicidade de uns pode ser causa indirecta de felicidade para outros. Teríamos a Nona Sinfonia sem a surdez de Beethoven? Ou os poemas de António Nobre sem a sua tuberculose? Ou os quadros de Van Gogh sem a sua loucura? Ou a filosofia de Nietzsche sem a sua sífilis?
É um lugar comum dizer-se que a riqueza e o poder não trazem a felicidade (embora se acrescente que «ajudam muito»). Na verdade, há pobres felizes e ricos extremamente infelizes. Podemos dar um exemplo histórico.
O rei de Portugal D. Afonso VI foi um homem destinado à desgraça. Ainda criança, teve uma doença que o deixou hemiplégico, deficiente mental e sexualmente incapacitado. Não era o filho primogénito de D. João IV e D. Luísa de Gusmão. Esse era o príncipe D. Teodósio de Bragança, que morreu em 1653, com 19 anos. Quando, por sua vez, o rei D. João IV faleceu, em 1656, subiu ao trono o jovem Afonso VI, com apenas 13 anos de idade. A regência da mãe primeiro e o governo do enérgico ministro conde de Castelo Melhor depois, conseguiram ultrapassar, temporariamente, as insuficiências do jovem monarca e a vida desregrada a que se entregou. Com vista ao apoio da França na luta pela restauração da independência portuguesa, D. Afonso VI veio a casar com D. Maria Francisca Isabel de Sabóia, em 1666. Não tardaria, porém, a desenrolar-se no Paço uma conspiração com vista ao afastamento do jovem monarca do trono e à sua substituição pelo irmão, o futuro D. Pedro II. Organizado o «processo do Rei», ficou «demonstrada» a sua «incapacidade de procriar» e, como tal, de «gerar descendência». D. Pedro torna-se regente, o casamento de D. Afonso VI com D. Maria Francisca é anulado em 1668 e esta casa com o cunhado. Em 1669, o pobre rei, perdido o trono e a esposa para o irmão, é desterrado para Angra, onde permanecerá até 1674. Transferido para o Palácio de Sintra, aí viria a morrer, triste e solitário, em 1683. Usando a linguagem popular das nossas terras: D. Afonso VI foi um «desinfeliz».
Rico ou pobre, nobre ou plebeu, sábio ou ignorante, belo ou feio, qual é o passaporte para a felicidade? Ninguém sabe. Há quem nasça para sofrer. E há até quem busque deliberadamente o sofrimento e o martírio como sublimação da existência e expiação das faltas cometidas. A outros, a vida estende-lhes uma passadeira dourada desde o berço até à cova. Existem pessoas que possuem tudo – riqueza, poder, sabedoria, beleza, e são profundamente amargas e infelizes. Onde está o segredo da felicidade perene e verdadeira? Talvez Ricardo Reis (Pessoa, de novo e sempre) tenha parte da resposta: «Para ser grande, sê inteiro. / Nada teu exagera ou exclui. / Sê todo, em cada coisa. / Põe quanto és no mínimo que fazes. / Assim, em cada lago a lua toda / Brilha, porque alta vive.»
«Na Raia da Memória», opinião de Adérito Tavares
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Para concluir a sequência de crónicas de viagens que propus aos leitores do «Capeia Arraiana», vou desta vez falar de terras muito próximas da nossa Riba-Côa natal: uma visita ao Mosteiro de Guadalupe, um dos berços da religiosidade hispânica e matriz da hispanidad.
Para os que vivem na raia sabugalense ou próximo dela, sugiro que passem primeiro por três belíssimas cidades próximas da fronteira: Coria, Plasencia e Trujillo. Trata-se de cidades monumentais, carregadas de história – «tierras de conquistadores” – como Francisco Pizarro, cuja estátua equestre domina a praça principal de Trujillo. A partir daqui, Guadalupe alcança-se em três quartos de hora. Antes porém de chegarmos a esse antiquíssimo e venerável local de culto, meditemos um pouco sobre estes estranhos tempos que vivemos.
Parece que passaram completamente de moda as ideologias e os idealismos, o associativismo está em crise, as religiões clássicas, moderadas e sensatas, cederam o lugar aos fundamentalismos irracionais ou às alienações histéricas e acéfalas. O lucro fácil, obtido sem olhar a meios para alcançar os fins, a vitória a todo o custo, o culto da lisonja e da mentira, a corrupção, o calculismo frio e maquiavélico, o sucesso económico e social, a ambição do poder, esses são os verdadeiros ídolos contemporâneos. O século XVIII colocou a razão no altar; o século XIX colocou a ciência; o século XX colocou o dinheiro; e o século XXI? – se bem nos apercebemos, parece ter lá colocado o caos. Todavia, não percamos a esperança, o último alento que permaneceu no fundo da caixa de Pandora. Como diz o poeta Carlos de Oliveira, «não há machado que corte / a raiz ao pensamento». Tal como sucede na Guernica de Picasso, no meio da dor, do sofrimento, da violência e da destruição, a luz conserva-se acesa. Tudo isto vem a propósito de Guadalupe? Sim.
O Mosteiro encontra-se numa região lindíssima, montanhosa, situada no coração da Extremadura espanhola, e é o centro de um dos cultos marianos mais antigos e prestigiados do mundo. O Real Mosteiro de Guadalupe, fundado no século XIV pelo rei Afonso XI, é constituído por um magnífico conjunto de edifícios gótico-mudéjar, aos quais foram acrescentadas, posteriormente, áreas renascentistas e barrocas. Entre as inúmeras preciosidades artísticas que possui, Guadalupe orgulha-se de alguns excelentes quadros de Zurbarán, de uma excepcional colecção de manuscritos iluminados e de um riquíssimo museu de paramentos.
A Virgem Morena de Guadalupe, uma singela imagem românica do século XII, foi, ao longo de oitocentos anos, venerada por sucessivas gerações. Símbolo da hispanidade, viu o seu culto estender-se a todo o mundo de língua castelhana, do México às Filipinas. Reis e cardeais, nobres e plebeus, conquistadores e conquistados, todos oraram à Virgem de Guadalupe, frequentemente pedindo coisas opostas. Nem faltam ofertas dos Reis Católicos, de Cristóvão Colombo e até do generalíssimo Francisco Franco «Caudillo de España por la Gracia de Dios». Os ricos e poderosos ofereceram-lhe tesouros de valor incalculável, tronos, coroas, ceptros, mantos bordados a ouro e cravejados de pérolas e de diamantes. Os pobres e humildes levaram-lhe comoventes e ingénuos ex-votos.
Conduzidos por um guia competente, num dia tranquilo, eu e minha mulher, de sala em sala, fomos ampliando o nosso espanto e o nosso fascínio. Em nome de Deus e da Virgem, os monges de S. Jerónimo, a quem o Mosteiro esteve entregue até ao século XVIII, foram ali acumulando inestimáveis testemunhos de uma fé duradoura. Hoje, o Real Mosteiro de Guadalupe continua habitado, agora por monges franciscanos. O espírito monástico está presente por todo o lado: pressente-se e ecoa na música gregoriana que se ouve na igreja e no rendilhado claustro mudéjar (existe um excelente Coro Gregoriano no Mosteiro); e transmite-se através das celebrações litúrgicas presididas pelos irmãos de S. Francisco, vestidos de burel e calçados com sandálias.
Quando chegámos ao lugar mais sagrado do Mosteiro, o Camarín (uma sala anexa ao altar da Virgem Morena, onde a imagem é preparada na altura das procissões), o guia laico cedeu o seu lugar a um monge. Foi então que aconteceu um momento mágico, muito raro: antes de nos mostrar a Senhora de Guadalupe, o irmão franciscano concentrou-se, recolheu-se, perfilado, olhos no chão, rosto sereno e calmo. Depois de uns breves momentos de profundo silêncio, falou-nos, com palavras brandas e tranquilas, sobre o culto da Virgem Morena e o seu significado. Há muitos, muitos anos que não me encontrava frente a frente com a FÉ. A fé autêntica, latente, translúcida. Aquele homem acreditava, de facto, no que dizia. E, suavemente, fez rodar o trono resplandescente, mostrando-nos uma singela figurinha de mulher, com o filho no regaço, de rosto quase negro, com uma surpreendente expressão de bondade no olhar penetrante. O monge franciscano orou, por um minuto ainda, em silêncio. E, naquele lugar de recolhimento, tão distante do mundo e dos seus imensos dramas, parecia pairar um espírito muito antigo: o do idealismo monástico de Francisco de Assis, o Poverello, o amigo dos lobos e dos cordeiros, o filho de burgueses que escolheu a pobreza evangélica e o cristianismo de Cristo.
Foi, de facto, um momento raro. Num mundo esmagadoramente sensorial e materialista, aquele lugar parecia uma ilha espiritualista, ideativa, uma ilha de fé.*
* Uma sugestão de carácter prático: se o leitor puder, não deixe de ficar uma noite na estalagem do próprio Mosteiro (Hospedería Real Monasterio). Poderá assim dormir numa das antigas celas monásticas e comer no antigo refeitório dos monges.
«Na Raia da Memória», opinião de Adérito Tavares
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Mais uma vez começo uma crónica com título emprestado, agora o da célebre canção popularizada por Liza Minnelli e Frank Sinatra, que retrata o fascínio exercido pela Big Apple sobre todos aqueles que a visitam e, principalmente, sobre os que nela moram. Na verdade, com todos os seus defeitos e os seus perigos, Nova Iorque é uma cidade única, apaixonante. Como dizia Fernando Pessoa acerca da coca-cola, «primeiro estranha-se, depois entranha-se».
Quando, às vezes, conversava com amigos sobre países, viagens e cidades, mostrava-me sempre um tanto ou quanto céptico relativamente aos Estados Unidos em geral e a Nova Iorque em particular. O cinema deixara-me na retina uma cidade perigosa, cheia de drogados e de mafiosos, loucas correrias de psicadélicos e ululantes carros da polícia, bairros pobres com tomadas de água esguichando por todo o lado e tampas de esgoto fumegantes. Para mim só existia a cidade do Scorsese em «Nova Iorque fora de horas» e no «Taxi Driver», ou então a Nova Iorque dos chocantes contrastes sociais, dos grandes especuladores financeiros, de Wall Street e Central Park Avenue, e também a terrífica megalópole dos “«ghettos» do Bronx e do Harlem, magistralmente descritos por Tom Wolfe na «Fogueira das Vaidades». Como podia alguma vez gostar de uma babilónia daquelas, eu que tinha uma dúzia de autênticas «paixões urbanas», cidades carregadas de patine e de magia, como Paris, Praga, Veneza, Florença, Siena, Roma, Toledo, Salamanca, Istambul, etc.?
Pois bem, leitores amigos, dou de bom grado a mão à palmatória. Nova Iorque, tal como aconteceu com São Francisco, passou a integrar a minha lista pessoal das cidades mais belas e fascinantes do mundo. Claro que tudo separa a grande metrópole americana das lindíssimas cidades europeias que eu referi. Mas é exactamente aí que reside o fascínio: Nova Iorque é absolutamente única. Quem conheça bem as deslumbrantes cidadezinhas da Itália central, como Pisa, Lucca, Siena, San Gimignano, Gubbio, Assis ou Orvietto, dificilmente poderá destacar uma. São todas verdadeiras preciosidades, mas têm muitos pontos comuns. Agora Nova Iorque, essa não tem similar, nenhuma outra cidade do mundo se lhe pode comparar! É a urbe cosmopolita por excelência, a capital do mundo, o coração financeiro do planeta (coração que recentemente tem tido alguns «enfartes»!). É «a cidade», a big apple, a grande tentação, que não admite meias tintas: ou se ama ou se detesta. Não hesito em confessar que mordi a maçã, aceitei conscientemente a tentação e voltarei a Nova Iorque sempre que possa.
A baía do rio Hudson, onde se situa Nova Iorque, foi inicialmente explorada pelo navegador italiano Giovanni da Verrazano, em 1524 e, em 1609, por Henry Hudson, que daria o nome ao lugar. Em 1624, a ilha de Manhattan, situada entre o East River e o Hudson, foi comprada aos índios pela Companhia Holandesa das Índias Orientais. Aí viria a nascer a cidade de Nova Amsterdão, capital da Nova Holanda. Pouco tempo depois, porém, a região seria ocupada pelos Ingleses, que mudaram o nome da cidade para Nova Iorque, em homenagem ao duque de York, irmão do rei Carlos I.
Na segunda metade do século XVII, Nova Iorque tinha apenas cerca de mil habitantes. No final do século XVIII, pouco depois da independência dos EUA, a cidade alcançava já as 50 mil almas. Dispondo de um belíssimo porto natural, em breve Nova Iorque se transformaria na principal e mais populosa cidade da União. O seu poderio aumentou graças sobretudo ao comércio e à industrialização e, em 1830, contava com 200 mil habitantes, em consequência das sucessivas vagas de emigrantes, principalmente irlandeses. Em 1884, Manhattan uniu-se a mais quatro “burgos” vizinhos (os boroughs de Bronx, Brooklyn, Queens e Richmond), formando a Grande Nova Iorque, cuja população atingia 3,5 milhões por volta de 1900.
Actualmente, a Grande Nova Iorque alberga cerca de 11 milhões de habitantes, constituídos por numerosas comunidades descendentes de emigrantes vindos de todo o lado. As maiores dessas comunidades são a asiática (8%), a irlandesa (10%), a italiana (12%), a hispânica (13%), a judaica (18%) e a afro-americana (22%).
Além de ser uma das áreas mais urbanizadas do mundo, Nova Iorque é um grande centro industrial, com mais de 30 mil unidades fabris, e um imenso complexo comercial, onde é possível comprar e vender literalmente tudo (a título de exemplo – na fachada de um grande armazém podia ler-se: «Seja o que for que procura, entre. Nós temos.»). Esta intensa actividade fabril e mercantil fez de Nova Iorque o centro vital da alta finança. Em Wall Street, na Lower Manhattan, tem a sua sede a bolsa de valores de que todas as outras dependem (por isso é costume dizer-se: “quando Wall Street espirra o mundo constipa-se!”). Aí se situam também os maiores e mais poderosos bancos, companhias de seguros, empresas financeiras, etc. Quando passeamos por Wall Street e avenidas adjacentes temos a nítida sensação de que os destinos do mundo se decidem ali. Não na Casa Branca, ou em qualquer outra sede do poder político, mas ali, onde o poder do dólar é estabelecido. Como dizia o outro, quem comanda o mundo é o Goldman Sachs.
No entanto, Nova Iorque não é só poder, riqueza, dinheiro. É também cultura. Nova Iorque possui uma das mais dinâmicas vidas culturais de todo o planeta. Na Broadway situam-se as melhores salas de teatro declamado e de teatro musical; por toda a cidade encontramos um extraordinário dinamismo das actividades artísticas, como a pintura, a música e a dança. A Orquestra Filarmónica de Nova Iorque, a Metropolitan Opera, o New York City Ballet têm uma actividade regular e os seus espectáculos estão sistematicamente esgotados, em salas prestigiadíssimas como o Carnegie Hall, o Lincoln Center ou o Radio City Music Hall. Na região de Nova Iorque funcionam várias universidades, com um total de quase meio milhão de alunos, e existem 1300 bibliotecas. A Biblioteca Pública de Nova Iorque, uma das maiores do mundo, tem quase 10 milhões de livros. E existem em Nova Iorque alguns dos mais prestigiados jornais, como o New York Times, com milhões de exemplares de tiragem todos os dias.
Nova Iorque tem inúmeros museus. Visitei quatro, qual deles o melhor. O Natural History Museum, que possui excepcionais colecções de mineralogia, botânica e biologia, museologicamente expostas de forma altamente atractiva e pedagógica. O Metropolitan Museum of Art, com as suas mais de 380 mil peças, desde o Egipto Antigo até Picasso, foi um dos meus lugares de perdição: para me arrancarem de lá foi preciso empurrarem-me! O Guggenheim Museum, cujo edifício, da autoria de Frank Lloyd Wright, é em si mesmo uma verdadeira obra de arte: desenvolve-se em espiral invertida e os visitantes vão observando a colecção descendo essa espiral. E, finalmente, o Museum of Modern Art, o famoso MOMA, com uma vastíssima e completíssima colecção de pintura moderna, desde os pós-impressionistas, como Van Gogh, Gauguin e Cézanne, aos fauvistas, como Matisse, aos cubistas, como Picasso e Braque, aos surrealistas, como Magritte, Dali e Miró, passando por abstraccionistas como Kandinsky e Mondrian, e todas as demais tendências contemporâneas, da op art de Vasarely à pop art de Lichtenstein e Warhol, das colagens de Rauschenberg à action painting de Pollock.
Mas ninguém consegue descrever Nova Iorque sem falar das suas imensas avenidas e dos seus gigantescos arranha-céus. Ao contrário daquilo que se pode pensar, os altíssimos edifícios de Manhattan não tornam a cidade escura, sombria. As grandes avenidas são muito largas e as construções vão-se desenvolvendo em sucessivos planos à medida que sobem, não impedindo, por isso, que a luz chegue ao solo. Por outro lado, os arquitectos utilizam frequentemente o vidro e o aço polido, o que reflecte não só a luz como o céu, as árvores, as cores, os edifícios em frente, etc. Aquilo que aparentemente é uma floresta de cimento torna-se um jardim de luz e cor. E os próprios arranha-céus são, boa parte deles, verdadeiras obras-primas da arquitectura contemporânea, como acontece com o Empire State Building ou o Chrysler Building. O Empire State, por exemplo, é um lindíssimo edifício art déco, com um perfil elegante e acabamentos requintados. Inaugurado em 1929, com os seus mais de cem andares, constituiu durante muito tempo o mais alto arranha-céus do mundo. Por sua vez, o Chrysler Building, concluído em 1930, com a sua torre também art déco, destaca-se na paisagem como um verdadeiro símbolo do urbanismo moderno. No entanto, os dois edifícios mais altos de Nova Iorque eram as duas torres gémeas do World Trade Center. Do seu terraço tinha-se uma vista espectacular sobre a cidade, a baía e os arredores. Um panorama de ficar sem fôlego. Infelizmente, porém, a tragédia de 2001 roubou à cidade um dos seus ex-libris. Também a vista do cimo do Empire State, sobretudo à noite, é um espectáculo deslumbrante.
Muito mais haveria que dizer ainda: poderia falar aos leitores dos meus passeios pelo Central Park, da ida à Liberty Island, onde está a célebre estátua da Liberdade, ou à Ellis Island, que foi durante décadas o centro de recepção dos milhares de emigrantes que afluíam a Nova Iorque. Ou falar ainda das vastíssimas e requintadas livrarias onde me perdi e me encontrei (e onde gastei boa parte do meu dinheiro!) Ou dos restaurantezinhos de Little Italy e dos bares-restaurantes sulistas onde se come a boa comida de New Orleans e se ouve o puro dixie-jazz. Ou dos passeios a pé pela 5.ª Avenida, sem compromissos nem destino, vendo as montras faiscantes da Tiffany, da Cartier e da Van Cleef, ou abrindo os olhos de espanto para os cinco mil euros de um fato Armani. E, ao mesmo tempo, dar de caras com uma exposição de autênticas estátuas de Rodin, incluindo «O Pensador», ao ar livre, junto ao Rockefeller Center. E, entretanto, entrar na St. Patrick’s Cathedral, também em plena 5.ª Avenida, uma imensa catedral neo-gótica, igualzinha às grandes catedrais europeias mas ladeada de espelhentos arranha-céus de vidro e aço.
Muito mais haveria para contar, claro. Mas assim pouco ficaria para o leitor poder descobrir, ao vivo, quando lá for. E aconselho-o, sinceramente, a ir logo que possa.
«Na Raia da Memória», opinião de Adérito Tavares
ad.tavares@netcabo.pt
O título da crónica com que hoje retomo o convívio dos leitores pedi-o emprestado a um admirável filme de Elia Kazan, que nos mostra a odisseia dos emigrantes europeus a caminho dos Estados Unidos, a nova «Terra Prometida», onde «corria o leite e o mel». Essa América da abundância e das grandes oportunidades, que, entre 1800 e 1990 acolheu mais de 80 milhões de imigrantes vindos de todo o mundo, incluindo muitos dos nossos antepassados raianos. Toda esta gente, somada aos que já lá se encontravam (os índios, quando os deixaram sobreviver) e aos que para lá foram levados à força (os escravos africanos), fizeram dos Estados Unidos da América o «melting pot» de que falam alguns sociólogos. Ou seja, um país onde convivem (nem sempre pacificamente) muitas e desvairadas gentes, de todas as etnias, de todos os credos e de todas as proveniências.
Foi este país cheio de contrastes e de contradições que eu visitei aqui há tempos. No artigo de hoje e no próximo tentarei transmitir aos leitores algumas das minhas impressões desta viagem.
Estive na Califórnia (San Diego, Los Angeles, incluindo Hollywood, San Francisco, etc.); e também em Las Vegas e em Nova Iorque. Deixemos a «Big Apple» para a próxima crónica. Merece-a bem. Falemos hoje dessa terra de sol e de progresso que é a Califórnia, e também de Las Vegas, cidade protótipo da megalomania kitsch americana.
O primeiro europeu a explorar a costa da Califórnia foi o navegador português João Rodrigues Cabrilho, ao serviço da Espanha. Cabrilho era natural de uma perdida aldeia dos confins transmontanos, cujo nome hoje nos está nos ouvidos devido à construção de uma barragem que recebeu o seu nome: Cabril. As voltas e reviravoltas da História acabaram por levar Cabrilho bem longe! E a casa onde se diz ter nascido recebe anualmente muitos visitantes californianos.
Em Setembro de 1542, João Rodrigues Cabrilho explorou a baía de San Diego, cidade que o homenageou com uma boa estátua da autoria de Álvaro de Bré. Cabrilho prosseguiu a sua viagem para Norte, em busca do mítico El Dorado, terra de ouro e de pedraria, autêntico paraíso terrestre. Já no começo do século XVII, outro português, Sebastião Biscainho, percorreu também a costa californiana, tendo descoberto a baía de Monterey, onde, mais tarde, viria a nascer a cidade que foi a primeira capital da Califórnia mexicana. No entanto, a colonização espanhola da região apenas seria efectuada de modo sistemático durante o século XVIII, com a fundação de inúmeras missões e povoados. Pouco a pouco vão surgindo cidades cujos nomes actuais não deixam dúvidas quanto à fundação hispânica: San Diego, Los Angeles, Sacramento (hoje capital do Estado), San Francisco, San Fernando, etc.
Mas como é que toda esta riquíssima região foi integrada nos Estados Unidos? Vejamos um pouco de História.
Quando os Estados Unidos da América se tornaram independentes eram constituídos por apenas 13 Estados (as Treze Colónias inglesas que se sublevaram e proclamaram a Declaração da Independência, no 3.º Congresso de Filadélfia, em 4 de Julho de 1776). A bandeira adoptada tinha 13 riscas alternadamente brancas e vermelhas (que ainda conserva) e treze estrelas. As estrelas, todavia, aumentaram muito à medida que o País dilatava a sua fronteira para Oeste (hoje são 50). Toda a extensa região situada entre os montes Apalaches e o rio Mississipi foi cedida em 1783 pela Inglaterra, na ocasião da assinatura do Tratado de Versalhes, que pôs fim à Guerra da Independência. Em 1803, seria a vez da anexação de outro vastíssimo território, a Louisiana, na margem direita do Mississipi, comprado à França. A Florida foi também comprada à Espanha, em 1819, e, três anos depois, o Alasca seria adquirido à Rússia (por dez mil dólares!). A jovem nação americana, como vemos, mostrou-se desde cedo expedita a fazer verdadeiros negócios da China.
Em 1846, pela celebração de acordos com a Grã-Bretanha, é fixada a fronteira com o Canadá, de que resultou a anexação do Oregon. Quanto à fronteira com o México (independente desde 1821), a questão foi mais complicada. Um vasto espaço que compreendia todo o Texas («o Gigante») e parte do Novo México e do Colorado foi anexado pelos Estados Unidos em 1845, o que desencadeou uma guerra entre os dois países. Os Mexicanos foram vencidos (apesar de vitórias esporádicas, como a do Forte Álamo) e a derrota custou-lhes uma fatia impressionante do seu próprio país: em 1848, os EUA forçaram o México a «vender-lhes» o imenso e riquíssimo território que hoje é formado pelos Estados do Arizona, do Utah, do Nevada e da Califórnia! Assim se fez a nação mais rica da Terra e assim se fez uma das mais pobres. Em História não há «ses», há factos. Mas pensemos no que seria hoje o México, «se» tivesse conservado todos esses vastíssimos territórios! Não os conservou e tornou-se o vizinho pobre, fornecedor de mão-de-obra barata para os trabalhos mais humildes, gente a quem os americanos pejorativamente chamam «chicanos».
Deixemos, porém, o passado. Das grandes cidades californianas que visitei, aquela de que mais gostei foi San Francisco. Com a sua lindíssima baía, as suas ruas ondulando pelas colinas percorridas por carros eléctricos (os «cable cars») e a sua famosa Golden Gate Bridge (muito parecida com a nossa Ponte 25 de Abril), San Francisco faz-nos lembrar Lisboa. É, além disso, uma cidade cosmopolita, onde existe uma convivência interétnica mais fácil do que noutras metrópoles americanas. Basta lembrarmo-nos do movimento hippy que, no final da década de 60, para aí fez confluir dezenas de milhares de jovens adeptos do «flower power».
No meio da recortada baía destaca-se a mítica ilha de Alcatraz («The Rock»), onde funcionou, entre 1934 e 1963, uma prisão federal de alta segurança. Ali estiveram “hospedados” criminosos célebres como Al Capone e o «Birdman of Alcatraz». Em toda a sua história, apenas se registou uma única fuga com sucesso, justamente um ano antes do seu encerramento. Hoje, Alcatraz é apenas um lugar de turismo, onde eu próprio me fiz fotografar «atrás das grades».
Mas de tudo quanto existe nesta belíssima cidade, o que mais me cativou foram as preciosas casas vitorianas de San Francisco. Trata-se de pequenas moradias da segunda metade do século XIX, feitas de madeira, hoje recuperadas, requintadamente pintadas e luxuosamente mobiladas. São caríssimas: não se encontra uma por menos de 2 ou 3 milhões de dólares! Mas são uma beleza! Um livro ilustrado que comprei, exclusivamente dedicado a estas casas, chama-lhes «the painted ladies».
Em contrapartida, Los Angeles e Hollywood constituíram uma desilusão. A Cidade dos Anjos é uma diabólica megalópole: ruas tão compridas como a distância de Lisboa a Santarém; bairros mais perigosos que os piores de Nova Iorque; poluição mais mortífera que a de Atenas (sobretudo quando há «smog», uma fatal mistura de nevoeiro e fumo); auto-estradas que são autênticos formigueiros, com 5 ou 6 faixas em cada sentido (onde, apesar de tudo, se conduz mais civilizadamente que na nossa A1, devo confessar); gente mais indiferente que outra qualquer. Claro que Beverly Hills é deslumbrante pelo luxuoso requinte das mansões das «estrelas», ou pelas caríssimas lojas de Rodeo Drive, a rua onde se podem encontrar mais Rolls Royces ou Ferraris por metro quadrado. Mas já Hollywood Boulevard, com os seus famosos «passeios das estrelas», ou o chão em frente do Chinese Theater coberto de assinaturas e marcas das mãos e dos pés dos grandes mitos do cinema me deixou indiferente, com um certo sabor a “pirosas americanices”.
E por falar em “americanices”: Las Vegas é o supra-sumo de tudo isso. Uma cidade construída no deserto, num local onde os fundadores espanhóis encontraram umas escassas «veigas», uns lameiros primaveris irrigados por ténues fios de água (que é o que significa “vegas”). Uma cidade que cresceu, a partir da 2.ª Guerra Mundial, sobretudo graças ao jogo e à energia produzida pela grande barragem Hoover, no rio Colorado. Energia indispensável para alimentar a prodigiosa festa de néon que explode ao anoitecer. As luzes de néon, ao longo da grande avenida central de Las Vegas (The Strip), onde se situam os principais hotéis-casinos, constituíram para mim um dos mais delirantes espectáculos a que assisti. Depois, o resto foi a comédia humana: gente obcecada pelo jogo, nos luxuosos halls tilintantes dos casinos, gente quase sempre gorda, imensamente gorda, mastodonticamente gorda, comendo toneladas de pizzas e de hambúrgueres nos discricionários buffets, assistindo a espectáculos de strip-tease de silicone, percorrendo os intermináveis labirintos dos mega-hotéis de cinco estrelas com cinco mil quartos. Quase todos os hotéis de Las Vegas são temáticos: o Luxor é uma pirâmide egípcia onde não podia faltar, no interior, uma esfinge em tamanho natural e a reconstituição do túmulo de Tutankhamon; o Excalibur parece um castelo de fadas; o New York New York pretende reproduzir Manhattan, com arranha-céus e estátua da Liberdade; o Ceasar’s Palace é isso mesmo, um palácio dos césares romanos, prodigiosamente grande e absurdamente luxuoso; o Treasure Island é a hollywoodesca ilha dos piratas, uma espécie de disneylândia à beira do passeio, com combates e navios a afundarem-se; o Mirage, com as suas palmeiras e as suas cascatas monumentais, é uma verdadeira miragem paradisíaca; o Circus Circus tem lá dentro uma gigantesca montanha russa e uma verdadeira cúpula de circo, onde nem faltam trapezistas em acção; etc., etc. «The american dream» ao vivo. A mim, Las Vegas lembra-me a «welwitschia mirabilis», a planta carnívora do deserto de Moçâmedes: com o seu odor atrai os incautos, que acabam por ser devorados em vida. É que nos casinos só há um vencedor: o Casino.
No entanto, foi a partir de Las Vegas que fiz uma excursão que me lavou a alma: nada mais nada menos que a visita ao Grand Canyon, o fabuloso vale rochoso cavado pelo rio Colorado, um dos mais deslumbrantes e esmagadores panoramas naturais existentes à face da Terra. Ali sim, perante aquele incrível rendilhado geológico, com centenas de milhões de anos de existência, apetece-nos dizer: que mesquinha e pretensiosa é esta nossa breve existência de 80 ou 90 anos!
«Na Raia da Memória», opinião de Adérito Tavares
ad.tavares@netcabo.pt
As viagens sempre constituíram um bom tema para crónicas e livros de memórias. Exploremos, pois, tal como prometido, esse inesgotável filão.
No último artigo aqui publicado falámos de Roma, do Vaticano, da Capela Sistina e de Miguel Ângelo. E, como uma viagem a Itália representa sempre uma autêntica «orgia cultural», vamos ficar-nos pela pátria dos Césares. Falemos hoje de outra cidade mítica e mágica: Veneza, essa prodigiosa urbe aquática, cujo encanto prende para todo o sempre quem por lá passa. Fica-se irremediavelmente preso ao exotismo das ruas-canais, à beleza dos palácios de arcarias entrelaçadas, ao romantismo das gôndolas balançantes, ao mistério de ruelas e pontezinhas, à melancolia de uma cidade que se afunda e se desertifica.
Manhãzinha cedo, com a brisa marítima a desalinhar-nos o cabelo, tomamos o «vaporetto» e percorremos o Grande Canal. Quando passamos por baixo da Ponte de Rialto temos subitamente a estranha sensação de fazermos parte de um quadro de Guardi ou de Canaletto. Acorrem-nos à memória filmes, pinturas, postais, sons de Vivaldi, numa associação de ideias em verdadeira catadupa. Descemos no coração da cidade: S. Marcos. E extasiamo-nos com a imponência equilibrada do Palácio dos Doges, a digna sede do poder político e económico da Sereníssima República de Veneza entre o século XIII e o século XIX. É um edifício suportado por uma correnteza de arcos ogivais entrelaçados, cuja beleza exterior apenas é suplantada pela riqueza do interior: percorremos deslumbrados as salas e salões recheados com uma profusão inigualável de Tintorettos, Veroneses e Ticianos, lustres de cristal, chãos de mármore e de mosaico, talha dourada, mobiliário requintado e, sempre presente, pairando no ar, o espírito da antiga potência veneziana.
Quando saímos não sabemos para onde nos virar: de um lado, a harmoniosa Biblioteca Marciana, da autoria de Andrea Sansovino (século XVI), anunciando uma exposição sobre o maneirismo italiano; do outro, o elegante Campanile, verdadeiro ex-libris da cidade. Optamos por subir ao campanário e olhar demoradamente a cidade, lá em baixo, entrecortada por espelhos de água reluzentes. Daqui apercebemo-nos perfeitamente do perigo que ameaça Veneza, construída sobre um arquipélago de ilhas rasteiras e lodacentas, no meio de uma laguna. Lá ao longe, avistamos o Lido, que associamos aos hotéis de luxo e à bienal de cinema. Mais longe ainda, apercebemos já as ondas esbranquiçadas do Adriático. À nossa direita divisamos a silhueta majestosa da bela igreja barroca de Santa Maria della Salute. E, aos nossos pés, as cúpulas bizantinas da basílica de S. Marcos parecem cogumelos, ou bolbos gigantes.
Descemos e entramos na basílica marciana. A primeira sensação que se tem é a de que caminhamos sobre uma superfície ondulada, um autêntico mar encapelado: o peso colossal da enorme igreja tem afundado sistematicamente o chão no local dos pilares. Os alicerces instáveis, lodosos, resistiram por mil anos, mas por quantos mais irão resistir?
«Salvemos Veneza!» foi o slogan de muitas campanhas internacionais para a preservação da cidade dos doges. Fundos vultosos têm sido canalizados para esse efeito, sobretudo através da UNESCO. Mas o próprio turismo contribui, hora a hora, para afundar Veneza. As águas ondulam e moem os alicerces. O formigueiro humano desgasta continuamente. E o admirável património secular de Veneza inclina-se e afunda-se, centímetro a centímetro.
Saímos de S. Marcos. Olhamos ainda, de novo, para a fachada embandeirada, onde os painéis de mosaicos refulgem ao sol. Lá está, há quase oitocentos anos, a famosa quadriga trazida de Constantinopla como troféu de guerra, em 1204. Nesse tempo, Veneza iniciava o seu glorioso caminho de grande empório comercial, cidade de tráfico mercantil, próspero entreposto mediador dos negócios entre o mundo muçulmano e o mundo cristão. Até à descoberta da rota do Cabo, por Vasco da Gama, em 1498, Veneza enriquecerá sistematicamente com o comércio das especiarias, das sedas e dos restantes produtos exóticos. O Mediterrâneo Oriental será uma verdadeira coutada veneziana, apenas esporadicamente disputada pela República de Génova, a grande rival. E, mesmo depois da fugaz preponderância de Lisboa no tráfego oriental, Veneza soube reconverter-se e recuperar a sua prosperidade (através da produção de espelhos e cristais, por exemplo). Foi essa prosperidade que lhe permitiu construir igrejas e palácios, acarinhar a pintura e a música, desenvolver as artes fabris.
Descansemos agora um pouco num dos belíssimos cafés centenários da Praça de S. Marcos. No Florian, por exemplo. A decoração, com veludos vermelhos, bronzes dourados e lustres de cristal murano é requintada mas acolhedora. Uma pequena orquestra toca Vivaldi, o grande mestre do barroco veneziano. Tomar um capuccino na esplanada, ao som desta orquestra, constitui um privilégio muito raro.
Prosseguindo o nosso passeio, é tempo agora de procurar um agradável restaurantezinho na zona de Rialto. E, depois, perdermo-nos nas vielas da cidade, descobrindo continuamente recantos surpreendentes, novos ângulos para outra fotografia, atravessando os canais ou ficando, calmamente, a ver passar as negras gôndolas. Sempre negras, em lembrança da grande peste seiscentista que vitimou milhares de venezianos.
E, pouco a pouco, vamos ficando agarrados a esta cidade única, onde só falta cruzarmo-nos com um grupo de misteriosos mascarados carnavalescos. Quando, ao anoitecer, o «vaporetto» nos leva de regresso ao hotel, olhamos já com saudade as silhuetas dos monumentos venezianos reflectindo-se nas águas alaranjadas, como se sempre as tivéssemos conhecido. E prometemos voltar. Muitas vezes.
Hoje, Veneza é para mim como que um pensamento recorrente. Aquela cidade tão melancólica, suspensa sobre as águas que a puxam para si, condenada a um afundamento quase inexorável, não me sai da ideia. E fui reler os relatórios das inúmeras comissões que a querem salvar, em busca de esperança. Talvez se retarde o afundamento, mas as marés invadirão a Praça de S. Marcos cada vez com mais frequência, provocando o já habitual fenómeno da «acqua alta».
Aqui há tempos, numa tarde chuvosa de Abril, fui rever um filme admirável mas melancólico, que sintetiza admiravelmente o drama desta cidade: «Morte em Veneza», de Luchino Visconti. É uma obra-prima do cinema, autêntica trilogia genial, porque nela se reuniram três grandes criadores: Thomas Mann, autor da novela, Gustav Mahler, autor da música utilizada no filme, e o próprio Visconti.
O grande realizador italiano, um perfeccionista obsessivo, conseguiu recriar magistralmente a Veneza da Belle Époque, na qual um compositor alemão, Gustav von Aschenbach, agoniza pelas praças e vielas empestadas pelo scirocco e pela cólera. Von Aschenbach (personagem que vai buscar inspiração ao próprio Thomas Mann e a Gustav Mahler) é uma figura torturada, patética, um homem irremediavelmente preso a um amor platónico clandestino. Fascinado pela beleza inacessível, quase divina, do jovem adolescente Tadzio, o professor Aschenbach morre lentamente em Veneza, ao som do adagietto da 5ª. Sinfonia de Mahler. O dramatismo pungente e quase doloroso da música mahleriana, prolongado até ao insuportável, casa-se de uma forma absolutamente sublime com a morte em Veneza. E, com imensa pena nossa, também ilustra dolorosamente a morte de Veneza.
«Na Raia da Memória», opinião de Adérito Tavares
ad.tavares@netcabo.pt
Proponho hoje e nos próximos domingos aos leitores do «Capeia Arraiana» uma sequência de crónicas sobre viagens com História.
Em finais de Agosto passei alguns dias em Roma, essa fascinante e mágica cidade, uma das «mães» espirituais da cultura ocidental (a outra é, obviamente, Atenas). Roma é uma daquelas metrópoles que tanto se ama como se detesta, com a sua cor ocre, as suas ruínas omnipresentes, as suas 900 igrejas, as suas praças e pracetas com cafés centenários, as suas fontes barrocas e os seus bairros populares. Existe a Roma das ruas elegantes, como a Via Veneto ou a Via dei Condotti, que resplandecem com Valentino, Versace, Prada, Gucci, Armani e «tutti quanti». E a Roma boémia, da Piazza Navona, das escadarias da Piazza di Spagna e dos pequenos restaurantes e botequins de Trastevere. Ou ainda a Roma milionária das luxuriantes mansões da Villa Borghese.
Roma é uma cidade onde vamos e regressamos como se fosse a primeira vez. E depois, há o Vaticano, S. Pedro, a Capela Sistina… A basílica impressiona pela sua grandeza, o seu esplendor e, sobretudo, devido ao peso quase mítico do seu significado na cultura cristã. A visão que se tem a partir da nave central, com o enorme baldaquino de Bernini em frente e, por cima, a imponente cúpula de Miguel Ângelo, é esmagadora e sublime. Trata-se de uma obra tão magnífica e grandiosa que nem nos lembramos de perguntar se teria sido levantada para glorificação de Deus ou para satisfação da vaidade humana. Mas a verdade é que o corrupio de turistas e a vendilhagem que lhe anda associada privam o crente do silêncio e do recolhimento necessários aos locais de fé.
Outro lugar de magia e encanto é o Museu do Vaticano. Percorrem-se salas, galerias e jardins com a avidez e o espanto de quem descobre continuamente, numa sequência alucinante, obras míticas, que conhecemos perfeitamente dos livros mas que quase não imaginávamos reais: o Apolo de Belvedere, o Laocoonte, o Perseu; as Stanze de Rafael e tantas, tantas outras obras deslumbrantes, que nos deixam quase sem respiração.
Mas é quando entramos na Capela Sistina que ficamos em êxtase. Diz-se que Miguel Ângelo, quando viu pela primeira vez as famosas portas do Baptistério de Florença, da autoria de Lorenzo Ghiberti, teria exclamado: «Mereciam ser as Portas do Paraíso!». E ainda hoje são assim chamadas. Pois bem: a Capela Sistina parece o próprio Paraíso. Agora que os frescos do tecto e da parede frontal foram restaurados, a Capela, finalmente livre de andaimes e de restrições, devidamente climatizada, provoca em nós uma sensação de indescritível deslumbramento. Fica-se por longos minutos de olhos pregados no tecto e a boca aberta de espanto! O restauro devolveu à pintura de Miguel Ângelo as suas cores originais, limpando-a da sujidade acumulada ao longo de séculos. Há quem diga que preferia os frescos anteriores ao restauro, cobertos pela patine do tempo. Na verdade, «o tempo, esse grande escultor», como dizia Marguerite Yourcenar, moldou a Capela Sistina e nós habituámo-nos aos seus tons suaves e às suas fendas. Mas não era essa a obra de Miguel Ângelo. Pessoalmente, o restauro não me chocou. As cores são belíssimas, o efeito arquitectónico é impressionante e o conjunto ganhou um brilho novo. E, principalmente, a deterioração dos frescos foi travada. Michelangelo Buonarroti aprovaria o restauro. Ele, que tanto sofreu para pintar aqueles tectos, deitado de costas nos andaimes, com as tintas a pingar-lhe na cara e a afectar-lhe definitivamente a visão, ele que sofreu «a agonia e o êxtase» entre as quatro paredes desta Capela, certamente ficou satisfeito por lhe salvarem uma das suas obras-primas.
Miguel Ângelo nasceu em 1475, tendo feito a aprendizagem das artes em Florença, com o pintor Ghirlandaio. Apenas com 15 anos, começou a frequentar os jardins dos Médicis, onde Lourenço o Magnífico tinha reunido numerosas estátuas gregas e romanas. Aos 25 esculpiu uma das suas peças mais famosas, a «Pietá». Pouco depois, com 26, realizou o «David», uma estátua monumental de quase 4,5 m de altura. Por sua vez, o «Moisés», esculpido para o monumento funerário do papa Júlio II, na sua poderosa musculatura e no seu aspecto de ira contida, reflecte bem a própria personalidade de Miguel Ângelo, dado ao pessimismo e de trato difícil. Em 1508, quando o grande escultor tinha 33 anos, o papa Júlio II pediu-lhe que pintasse a abóbada da capela construída no Vaticano por Sisto IV – a Capela Sistina. O artista recusou o encargo, dizendo que não era pintor, era escultor. A personalidade igualmente forte e autoritária de Júlio II acabaria por se impor a Miguel Ângelo que, pressionado insistentemente, cedeu.
A obra a que Miguel Ângelo meteu ombros era algo de grandioso. Simulou uma estrutura arquitectónica, dividindo o tecto em espaços rectangulares, nos quais pintou cenas bíblicas – Criação do Sol e da Lua, Criação de Adão e de Eva, Expulsão do Paraíso, Dilúvio, etc. A mais conhecida destas cenas é a da Criação do Homem, com o dedo de Deus transmitindo o «sopro vital» a Adão. Lateralmente, entre os arcos fingidos, Miguel Ângelo dispôs profetas e sibilas. Esta obra ocupou o pintor-escultor durante 5 anos, deitado em andaimes situados a 25 metros de altura.
Por sua vez, o «Juízo Final», que se encontra na parede frontal da Capela, apenas seria pintado por Miguel Ângelo muitos anos mais tarde, entre 1535 e 1541. Trata-se de uma enorme composição unitária, com cerca de 400 personagens. Ao centro, um Cristo triunfante, robusto como um atleta, perdoa com a mão esquerda, num gesto suavíssimo, ao mesmo tempo que, num gesto terrível, castiga com a mão direita. Os justos são içados ao Céu, enquanto os pecadores são precipitados nos eternos sofrimentos do Inferno. O Juízo Final situa-se já numa fase de transição maneirista, no conjunto da obra de Miguel Ângelo. Ao contrário de outros artistas, Miguel Ângelo, que viveu uma longa e fecunda vida de quase 90 anos, evoluiu continuamente. Iniciando a sua carreira artística no quattrocento florentino, foi ainda um dos precursores do barroco italiano.
Na Capela Sistina, Miguel Ângelo pintou dezenas de nus, sem complexos nem preconceitos puritanos. O corpo humano, tal como sucedia na Antiguidade, era visto no Renascimento como um objecto de beleza: como um cavalo, uma ave, ou uma flor. No entanto, o conservadorismo moralista não via com bons olhos que, num local sagrado, santos e santas, justos e pecadores, estivessem gloriosamente nus. Em 1563, o Concílio de Trento proibiu os nus nos locais do culto. A morte (em 1564) poupou a Miguel Ângelo uma grande humilhação: em 1565, o «pintor» Daniele da Volterra, por decisão papal, tapou pudicamente as zonas corporais mais sensíveis, colocando uma espécie de «fraldas» aos santos e santas.
O restauro levantou um problema: deixar ficar as «fraldas» ou retirá-las? Os responsáveis decidiram retirar a maior parte e deixar ficar algumas, como testemunho do moralismo contra-reformista.
O restauro da abóbada decorreu entre 1980 e 1994. O do Juízo Final, iniciado em 1990, ficou concluído apenas nos meados de 1994. Agora, o leitor, se puder, vá a Roma. Aproveite o Outono, em que não há muita gente e Roma está ainda mais bela, e deslumbre-se naquela que é uma das grandes maravilhas da arte de todos os tempos: a Capela Sistina. E sinta, se puder, o êxtase de quem observa com sensibilidade, deixando-se emocionar por uma das sensações mais elevadas do espírito humano: o sentimento estético.
«Na Raia da Memória», opinião de Adérito Tavares
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Quando, há um ou dois anos, o meu prezado amigo José Carlos Lages me solicitou colaboração para o «Capeia Arraiana», aceitei com a condição de ela ser esporádica, sem periodicidade certa. E, desde logo, adiantei o título geral de «Na Raia da Memória». Pretendia, desse modo, partilhar com os leitores histórias e memórias que se encontrassem no limiar do esquecimento, numa fronteira difusa: tais lembranças só sobreviveriam se fossem passadas a escrito. Regressemos hoje ao manancial inesgotável das memórias da infância aldeã, uma infância semelhante à de muitos dos meus leitores.
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Jogos Infantis
de Pieter Brueghel, o Velho (1560). Museu de História da Arte, Viena.
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Lembro-me como se fosse ontem: tinha eu nove anos, «russo-má-pêlo», joelhos escalavrados, olhos espantados, apanhei a camioneta da Viúva Monteiro ao pé da Garagem. Era Dezembro e, às sete da manhã, ainda lusco-fusco, mal se divisavam os beirais dos telhados escorrendo carapetos. A soprar nas mãos engadanhadas, sentei-me logo atrás do chofer, enquanto o cobrador, o senhor Ismael Bárrios, subia a minha mala para o tejadilho. A minha tia-madrinha Vieira tinha-me entregue ao cuidado da senhora Ascensão para ir pela primeira vez a Lisboa, passar o Natal. O motorista era o senhor António Palocho, que lá foi avançando lentamente, ora por estradas de alcatrão ora de macadame, até ao Barracão, onde era preciso esperar quatro ou cinco horas pelo comboio. Comia-se a merenda nos bancos da estação, explorava-se o túnel da Benespera, fazia-se mais um farraiche nos joelhos, até que se começava a ouvir o apito do comboio lá para os lados da Guarda-Gare. Quando a locomotiva se aproximou, lançando vapor e faúlhas por todo o lado, abri ainda mais os olhos e exclamei: «Ai mãe, ca bitcho!»
Passo por cima da longa viagem e dos viajantes atravancando o corredor com malas, sacas de batatas e cestos de verga com «criação» a grasnar e cacarejar; e passo também por cima das bilhas de Nisa com água fresca; e por cima do túnel do Rossio com a sua fumarada a entrar pelas nesgas das janelas mal fechadas. Lá estava a minha mãe, na plataforma, à minha espera, com o senhor António José Borges, que um dia haveria de fundar o restaurante que todos os raianos conhecem mas que, nesse tempo, era motorista de táxi. Ao sair da estação fiquei deslumbrado com os anúncios luminosos do Rossio, sobretudo o do Fósforo Ferrero, com uns comprimidos brancos a saírem de um molho de espigas amarelas e a entrarem dentro de um tubo.
Depois de 15 dias de deslumbramento regressei a Aldeia do Bispo para acabar a quarta classe e levar mais umas reguadas. Lembro-me do sucesso que eu fazia junto da canalha a contar tudo o que vira em Lisboa. E do dinheirito que fui ganhando a alugar exemplares antigos do «Cavaleiro Andante» e do «Mosquito» que me tinham dado. Nunca ninguém, por aquela raia de Deus, tinha visto banda desenhada!
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Camponeses a jogar golfe (Flandres, 1520)
Iluminura de Simon Bening no «Livro de Horas da Bendita Virgem Maria»
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E lá voltei aos velhos jogos infantis: ao eixo, ao pião, à «ricatchica», à «finca-la-fletcha», ao «motcho»… (coloco o t para lembrar a pronúncia, à raiana!) Alguns dos que me lêem lembram-se destes jogos, outros nem por isso. O jogo do «motcho», por exemplo, recordei-o há dias quando encontrei na Internet uma curiosíssima iluminura do século XVI, mostrando gente de há quinhentos anos a jogar golfe. Confesso que me surpreendi e até pensei que a iluminura era forjada. Já se jogava golfe no século XVI? Pesquisando mais um pouco, verifiquei que sim, que se praticava no Norte da Europa (a iluminura é flamenga) há muitos séculos. Pois bem: o princípio do jogo do «motcho» é o mesmo do golfe; só que, em vez de uma bola tínhamos um pequeno pedaço de madeira aguçado dos dois lados, em forma de cunha (era o «motcho»); e, em vez de um buraco, fazíamos no chão um pequeno círculo; cada um de nós tinha uma espécie de «taco» (na verdade um pau com cerca de trinta ou quarenta centímetros), com o qual dávamos uma pequena pancada numa das pontas do «motcho» e, depois, apanhando-o no ar, uma pancada mais forte, que o fizesse voar até longe; ganhava o jogo aquele que conseguisse recolocar o «motcho» dentro do círculo com menos pancadas. E aqui está, era este o golfe dos pequenos raianos de há 50 ou 60 anos!(*)
Muitas vezes esquecemo-nos que a Humanidade é muito antiga e que também as crianças egípcias, ou romanas, ou maias brincavam: com bonecas, com carrinhos e berlindes de cerâmica, com bolas de trapos… Para além da tal iluminura de que falei acima, deixo aos meus prezados leitores a reprodução de um quadro maravilhoso, do pintor flamengo Pieter Brueghel, o Velho, intitulado precisamente «Jogos Infantis», datado de 1560; e deixo-lhes igualmente um desafio: tentem descobrir alguns dos jogos (estão identificados 84) que estes meninos e meninas, ao todo 250, praticavam; verão que também os leitores praticaram muitos deles, quatrocentos anos depois.
(*) Sobre jogos populares (infantis e de adultos) praticados na nossa região, recomendo o livro de Mário Cameira Serra, antigo professor do Instituto Politécnico da Guarda: Jogos Tradicionais ao Serão e na Taberna, Lisboa, Colibri, 2004.
«Na Raia da Memória», opinião de Adérito Tavares
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A propósito de um crime muito mediático ocorrido recentemente em Nova Iorque, ressurgiu entre nós a questão das penas aplicadas por homicídio. Como sabemos, nos Estados Unidos da América existe não só a pena de prisão perpétua como a pena de morte (em alguns dos Estados), o que não acontece em Portugal desde há muito. Políticos, jornalistas, sociólogos, pedagogos, teólogos, trouxeram de novo à praça pública esta velha questão: haverá o direito de encerrar para sempre alguém entre quatro paredes ou de lhe retirar a vida?

Vivemos tempos de insegurança e de violência urbana: a delinquência, os assaltos, as violações, a droga, os homicídios, os maus-tratos, tudo contribui para criar na boa-consciência burguesa uma predisposição quase involuntária para a aceitação de penas muito pesadas ou mesmo da pena de morte, ainda que frequentemente as pessoas guardem dentro de si essa opinião mais radical.
Em teoria é fácil reconhecer a validade do preceito bíblico «Não matarás!» A tolerância cristã e liberal conduziu, ainda no século XIX, à abolição da pena capital em muitos dos países culturalmente mais evoluídos. Mas a moderna espiral do crime violento levou ao seu restabelecimento, aqui e além. Hoje, são mais os países que aplicam a pena capital do que aqueles que a aboliram. É verdade que a sociologia tem demonstrado estatisticamente que a aplicação da pena de morte não contribui para a diminuição da criminalidade. Por outro lado, os abolicionistas colocam ainda na mesa o argumento de que a aplicação da pena de morte inviabiliza definitivamente a reparação dos erros judiciários. Embora a consciência burguesa se mostre habitualmente receptiva a estes argumentos, a questão transforma-se quando o crime violento bate à porta de cada um. O pai a quem raptaram, violaram e estrangularam uma filha de sete anos continuará a pensar o mesmo depois de sofrer na pele os efeitos do crime violento? E a mãe que vê um filho adolescente injectar-se com heroína e degradar-se inexoravelmente até à morte, continuará a mostrar tolerância para com o traficante? E a jovem que é violada e infectada com sida, continuará tolerantemente a respeitar o direito à vida por parte daquele que não hesitou em destruir a sua? Quando o problema da pena de morte é colocado assim, a quente, muitos daqueles que sempre foram abolicionistas sentem-se inclinados a mudar de opinião. É compreensível que isso aconteça. Pessoalmente, neste momento, sou convictamente contra a pena de morte, mas não posso dizer que desta água não beberei.
O crime e o castigo são duas faces de um binómio cultural quase tão antigo como o próprio homem. As sociedades colocaram sempre a lei e a ordem no cerne da civilização. A sociedade civil é aquela em que o homem abdica de uma parcela da sua liberdade natural em favor do poder político ou judicial, a troco de segurança. A prevenção ou a repressão do crime são condições indispensáveis para a existência de sociedade civil. Um dos exemplos mais antigos é o Código promulgado na Mesopotâmia pelo rei Hamurábi, cerca de 1730 a.C. Trata-se de uma codificação casuística, com 282 artigos, onde predomina a chamada lei de Talião («Olho por olho, dente por dente»). Alguns exemplos: «Se um homem vazar o olho de um nobre, o seu próprio olho será vazado; se partir o osso de um nobre, o seu próprio osso será partido; se vazar o olho de um plebeu ou partir o osso de um plebeu, pagará uma mina de prata.» «Se um médico tratou um homem livre (…) e lhe causou a morte (…) as suas mãos serão cortadas.» «Se um construtor tiver feito uma casa e ela cair e matar o dono, ou o seu filho, esse construtor será morto.»
A pena de morte fez sempre parte do direito penal romano. Sabemos, não apenas devido ao caso de Jesus Cristo, que a pena capital era executada por crucifixão. Discute-se ainda hoje se o condenado era amarrado ou pregado na cruz. O mais provável é que os Romanos poupassem nos pregos, pois tanto o bronze como o ferro eram caros. De qualquer modo, no caso de se proceder à crucifixão com pregos, nunca seria na palma da mão (o peso do corpo faria rasgar os tecidos), mas sim nos pulsos. A morte poderia ocorrer por desidratação ou por asfixia. Foi para que morressem mais depressa que os soldados quebraram as pernas dos dois ladrões que ladeavam Cristo, segundo os Evangelhos. Deste modo não poderiam apoiar-se nos pés e a asfixia, provocada pela dificuldade de movimentação da caixa torácica, ocorreria mais rapidamente. A Jesus «não quebraram nem um só osso», porque já estava morto.
Na Idade Média, a pena de morte era geralmente infligida por decapitação, pela forca ou pelo fogo*. São conhecidos os casos de execução de bruxas, feiticeiras e heréticos na fogueira. A Inquisição, criada no século XIII para reprimir a heresia dos Cátaros ou Albigenses, depois de condenar os heréticos em autos-da-fé (actos de fé) entregava-os ao «braço secular» (isto é, ao poder régio), para que os executasse em fogueiras públicas, às quais assistiam verdadeiras multidões. Quando, a partir do século XV, o Tribunal do Santo Ofício ressurgiu para vigiar, perseguir e castigar judeus, cristãos-novos, reformistas e todos quantos ofendessem «a fé e os bons costumes», as fogueiras brilharam ininterruptamente, por trezentos anos, nos países do sul da Europa. Em Portugal, por exemplo, entre 1536 e 1767, o total de processos da Inquisição foi de quase 45 mil e o número de condenados à morte pelo fogo foi de aproximadamente 2060. Os condenados eram queimados vivos no caso de recusarem o arrependimento à hora da morte. Caso aceitassem pedir perdão pelos seus pecados e se arrependessem, eram primeiro garrotados.
No direito penal português existiam, para além da pena de morte, outros castigos violentos, como as varadas e chicotadas, ou a marca de ferro quente. Estas penas, consideradas «degradantes e infamantes», foram abolidas pela Constituição de 1822, que, do mesmo modo, extinguiu o Tribunal da Inquisição. O liberalismo trazia consigo «o amanhecer da tolerância».
Quanto à pena de morte, viria a ser abolida, entre nós, pouco tempo depois. Para os crimes de natureza política em 1852 e para os de natureza civil em 1867. Portugal tornava-se assim um dos pioneiros do abolicionismo. Diz-se que somos um povo de brandos costumes. Esperemos que as circunstâncias nos permitam continuar a sê-lo.
* A propósito da pena de morte na Idade Média: a ligeireza com que os publicitários fazem anúncios para a televisão, vistos por centenas de milhares de espectadores, incluindo jovens estudantes, é espantosa. Revela a indiferença e a ignorância com que saíram da escola. Anda por aí um anúncio sobre queijo, onde um rei medieval, perante uma multidão medieval, parece ordenar a execução de alguém numa… guilhotina!!! Afinal, não há execução nenhuma; a guilhotina serve apenas para guilhotinar… queijo. Que alívio! Só que as brilhantes cabeças de onde saiu esta imaginativa peça de publicidade ignoram que a guilhotina não existia na Idade Média e só surgiria durante a Revolução Francesa, sugerida pelo médico Joseph-Ignace Guillotin, mais de 300 anos depois do final da Idade Média! Coisa pouca, três séculos. O mesmo que colocar os Távoras, de quem falámos numa das últimas crónicas, a morrerem na cadeira eléctrica.
O que não acredito é que estes geniais publicitários tenham feito um anúncio propositadamente anacrónico, à maneira de Mel Brooks. Génio, «ma non tropo!»
«Na Raia da Memória», opinião de Adérito Tavares
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Aqui há uns anos, fiz uma viagem de estudo a Espanha com um grupo de alunos, rapazes e raparigas de 17 ou 18 anos. Fomos a Mérida, Trujillo, Madrid, Toledo, Escorial, Vale dos Caídos, etc.

O meu principal objectivo era mostrar a estes jovens viajantes caminhos que depois eles percorreriam sozinhos (ou não). Penso que o primeiro e grande mérito da viagem residiu exactamente aí – abriu-lhes horizontes, apresentou-os a Velásquez, a Goya, a El Greco, a Picasso; revelou-lhes a beleza inesquecível das cidades espanholas; fê-los olhar extasiados para o Teatro Romano de Mérida, para a catedral gótica de Toledo ou para o imponente Mosteiro do Escorial. Ensinou-os a ver e não apenas a olhar.
Se cada um destes viajantes, ou alguns pelo menos, levarem consigo outros, vejam a enorme cadeia que foi iniciada. É por isso que nunca me arrependo de fazer visitas e viagens de estudo com os meus alunos. Tenho feito dezenas delas, no país e no estrangeiro, apesar dos trabalhos e das responsabilidades. Era muito mais cómodo ficar na sala de aula, debitando monotonamente a matéria, do que conduzir rapazes e raparigas naturalmente irrequietos e barulhentos por essa Europa fora. A semente foi lançada. Nuns germinou, noutros morreu. O semeador, porém, fez o seu trabalho. Qual a recompensa?
Esta, por exemplo: na viagem a Espanha de que falo acima, depois de sairmos do Museu do Prado, perguntei a uma jovem aluna angolana de que quadro tinha gostado mais. Não hesitou: dos «Fuzilamentos de Maio», de Goya. Na verdade, ela foi sensível ao dramatismo e ao significado universalista daquela obra-prima do grande pintor espanhol. A extraordinária força daquela cena, onde a morte inexorável sai dos fuzis dos soldados napoleónicos para ceifar a vida de patriotas cujo único crime era defender a sua terra, impressionou vivamente uma jovem que sentiu na pele os horrores da guerra civil de Angola. Voltaria, tal como muitos dos seus colegas, a ficar «agarrada» por outra obra magistral: a Guernica, de Picasso. Só por isto já teria valido a pena ir a Madrid.
É óbvio que não devemos exagerar quando se servem estes «pratos» culturais a gente nova. Corre-se o risco de provocar uma «indigestão». Devemos saber dosear bem as coisas, deixando tempos livres para o convívio, para o divertimento, para as compras. E eles não deixaram de aproveitar: também visitaram o Hard Rock Café, as discotecas da moda, os Preciados, o Corte Inglês… Também tive oportunidade de lhes mostrar o Vale dos Caídos, onde se travou um dos mais sangrentos combates entre Republicanos e Nacionalistas. O monumento aí levantado pelo regime franquista nos anos cinquenta é de reduzido valor arquitectónico, valendo sobretudo como testemunho de uma época. Ali, à sombra da enorme cruz monumental, com a serra de Guadarrama lá ao fundo, eu e os meus jovens alunos pudemos reflectir um pouco sobre esse drama imenso que foi a guerra civil espanhola, lembrando os milhares de «Caídos». Dos dois lados.
«Na Raia da Memória», opinião de Adérito Tavares
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Uma das mais belas praças do mundo é a Piazza della Signoria, em Florença. É um local mítico, que se visita como se fosse um templo, onde se respira a atmosfera do quattrocento renascentista, e onde estamos sempre à espera de nos cruzarmos com Lorenzo di Medici, Leonardo, ou até mesmo (porque não?) a própria Gioconda! No entanto, infelizmente, com quem tropeçamos a toda a hora é com miríades de apressados turistas do mundo inteiro, sobretudo sorridentes e enviesados japoneses que disparam canons e nikons por tudo e por nada.

Um dos motivos mais fotografados da Piazza é o famosíssimo David, de Miguel Ângelo, situado junto da entrada principal do Palazzo Vecchio. Poucas são as pessoas que não conhecem esta magnífica estátua, esculpida por Miguel Ângelo na juventude, a partir de um abandonado e informe bloco de mármore de Carrara com cerca de quatro metros de altura. Inspirado pelos ideais humanistas do classicismo greco-romano, segundo os quais o homem era a medida de todas as coisas, o genial escultor arrancou da pedra bruta a figura poderosa de um jovem herói, orgulhoso da sua beleza física e da proeza que acabara de realizar – a morte do temido gigante Golias com uma simples fisga. Quando olho para esta (ou para outras belíssimas esculturas), vem-me sempre à memória o conhecido texto «O estatuário», do Padre António Vieira, que quase todos nós, os que temos mais de 40, lemos pela primeira vez no livro «Leituras» da 4.ª classe, de que foram co-autores Cruz Filipe e Faria Artur, e ilustrador Eduardo Romero. Talvez valha a pena relembrar uma passagem desse extraordinário pedaço de prosa: «Arranca o estatuário uma pedra dessas montanhas, tosca, bruta, dura, informe, e depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão; e começa a formar um homem, primeiro membro a membro, e depois feição por feição, até a mais miúda; ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afia-lhe o nariz, abre-lhe a boca, avulta-lhe as faces, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos; aqui desprega, ali arruga, acolá recama; e fica um homem perfeito, e talvez um santo, que se pode pôr no altar.»
Vem tudo isto a propósito de Miguel Ângelo, ao qual se podem aplicar com propriedade estas admiráveis palavras de Vieira. O que boa parte dos turistas-fotógrafos não sabem é que a estátua que eles fotografam de todos os ângulos e depois, orgulhosamente, mostram em casa aos amigos, não é senão uma cópia. Exactamente, uma cópia. Embora durante centenas de anos o David tivesse estado exposto ao ar livre, na Piazza della Signoria, o original encontra-se hoje no Museu da Academia. Uma obra de arte desta qualidade não podia mais continuar ali, sujeita aos efeitos devastadores da poluição, das intempéries e, principalmente, da incúria humana e do vandalismo. Evidentemente é pena que tenha que ser assim. Afinal, estas obras foram pensadas e executadas para estarem ao ar livre, são arte pública. Mas nos séculos XV e XVI não havia escapes a lançar constantemente baforadas de dióxido de carbono que tudo enegrece e corrói; nem bandos de turistas com olhos na ponta dos dedos; nem vândalos armados de sprays, que detestavam escrever nos cadernos escolares mas que agora adoram escrever nas pedras, nas paredes e nas estátuas. Perante estes tempos que vivemos, perigosos e ameaçadores para a arte ao ar livre, as autoridades italianas responsáveis pela defesa do património cultural tinham que fazer alguma coisa.
E nós, que fazemos? Durante muitos anos, nada. Em Lisboa, várias peças de arte espalhadas por praças e jardins vão estando à mercê de todos os vândalos e de outros bárbaros que as queiram conspurcar ou mutilar. É o que tem sucedido, entre outras esculturas, com o Marinheiro ao Leme, de Francisco Santos, no Largo do Cais do Sodré, ou com o Adamastor, de Júlio Vaz, no Alto de Santa Catarina. E foi o que sucedeu, vezes sem conta, com o belíssimo Monumento a Eça de Queirós, da autoria de Teixeira Lopes, situado no Largo do Barão de Quintela.
Falemos um pouco mais deste último conjunto escultórico, não só por se tratar de uma das mais admiráveis estátuas de Lisboa como também por ser a que mais atentados sofreu. Lavrada em 1903 (três anos apenas após a morte do genial escritor) esta peça inspira-se numa frase de Eça de Queirós, inscrita aliás na base do monumento, e que Teixeira Lopes foi buscar ao frontispício de «A Relíquia»: «Sobre a nudez forte da Verdade, o manto diáfano da Fantasia.» Se é certo que esta frase exprime sinteticamente o essencial do programa do realismo literário, Teixeira Lopes consegue também passá-la admiravelmente à pedra. A figura da Verdade, «nua e crua», é a de uma belíssima mulher de braços estendidos, o melhor nu de toda a estatuária lisboeta, no dizer de José Augusto-França. O escritor foi retratado com grande naturalismo, em atitude de quem olha, perscruta e interroga essa Verdade que ele sempre perseguiu incansavelmente. Conforme o próprio Eça escreveu noutro lugar, o realismo «…é a análise com vista à verdade absoluta; … é a anatomia do carácter; … é a crítica do homem; … é a arte que nos pinta aos nossos próprios olhos – para nos conhecermos, para que saibamos se somos verdadeiros ou falsos, para condenar o que houver de mau na nossa sociedade.»
O Monumento a Eça de Queirós, infelizmente, foi alvo de todo o tipo de inscrições alarves e de selváticas mutilações. Aquele esplendoroso corpo de mulher exercia uma «atracção fatal» sobre os inúmeros vândalos que desciam do Bairro Alto, a desoras, transbordando de cerveja, e que não conseguiam resistir aos seus instintivos e bárbaros impulsos. Aqui há uns anos, deceparam-lhe, rentes, as duas mãos. Durante largos meses, a Câmara Municipal de Lisboa manteve-a entaipada, em restauro. Felizmente, os gessos existiam e foi possível reconstituir o que faltava, com bastante rigor. Lembro-me de ter ido a correr, fotografá-la de todos os ângulos, quando, finalmente, foi desentaipada e brilhou de novo à admirável luz lisboeta. Apressei-me, antes que a sujassem ou mutilassem outra vez. O que não tardou muito. Alguns dos leitores devem lembrar-se: dedos partidos, graffiti indecorosos, abandono! Uma dor de alma!
Hoje, quando os leitores sobem a Rua do Alecrim, ao chegarem ao Largo do Barão de Quintela, terão a surpresa de aí encontrar, no lugar do original de pedra de lioz, uma cópia de bronze da Estátua de Eça de Queirós. Não é tão bela, mas é mais resistente. Quanto ao original, encontra-se nos jardins do Palácio Pimenta, ao Campo Grande – o Museu da Cidade de Lisboa.
«Na Raia da Memória», opinião de Adérito Tavares
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Na linguagem comum, quando uma desgraça se abate injustificadamente sobre alguém, é habitual utilizar-se a expressão «azar dos Távoras!». Quer isto dizer que a memória popular guarda a tragédia que, no período pombalino, vitimou uma das mais poderosas e ricas famílias da aristocracia portuguesa, a dos marqueses de Távora.
Na verdade, ninguém pode dizer que está a salvo de a sua vida «dar a volta como um sino», para utilizar uma nova expressão popular. A condição humana rege-se frequentemente pela sujeição àquilo que os Gregos antigos designavam por «caprichos divinos». Aliás, o teatro grego exemplifica genialmente o fatalismo a que os homens são votados, como se fossem joguetes nas mãos de deuses caprichosos e irritadiços. É o caso da tragédia «Édipo Rei», de Sófocles. Nascido em berço de ouro, Édipo fora predestinado a matar o pai e casar com a mãe. E, por muito que todos tentassem contrariar essa fatalidade, a teia foi-se urdindo de tal maneira que o oráculo acabou por se cumprir, para desgraça de Édipo, de sua mãe-esposa Jocasta e de sua filha-irmã Antígona.
Claro que isso não significa que o ser humano se acomode fatalisticamente ao seu «destino». Não existe predestinação senão a posteriori. Só estabelecemos o destino depois de os factos se consumarem. O Homem é dotado de livre arbítrio e pode construir ele próprio o seu caminho. Aos homens que tomam o destino nas suas próprias mãos, exercendo a «vontade de poder», é que Nietzsche chama super-homens. Salvo alguns casos resultantes de uma conjugação aleatória de circunstâncias desfavoráveis, a maior parte dos nossos percursos são determinados pelas nossas opções. Digamos que, quando um exame corre mal, raramente foi «má sorte»; deveu-se, mais provavelmente, à falta de estudo. A maioria dos acidentes de viação, dos acidentes domésticos ou dos acidentes de trabalho devem-se à incúria, ao excesso de confiança, ao desleixo, à falta de civismo, à irresponsabilidade, etc. E, muito poucas vezes, à «má sorte». A sorte, quase sempre, somos nós que a construímos. O acaso (ou o destino, se quiserem), tem o seu papel, como é óbvio: azar tem o condutor que vai, devagar e tranquilamente, na sua faixa de auto-estrada, quando lhe cai em cima um auto-tanque desgovernado. Azar tem a alegre e despreocupada família que passa férias no Egipto e é vítima de um atentado à bomba por parte de fundamentalistas islâmicos. Mas não se pode dizer que o Benfica (perdoem-me que meta a minha foice em seara alheia, onde habitualmente não a meto) esteja como está «por azar». Ou que a equipa nacional de futebol não tenha ganho o último Mundial por «má sorte». O seu «destino» foi construído dia-a-dia pelos dirigentes, pelos técnicos, pelos atletas, pelos jornalistas, pelos adeptos, etc., etc.
E os Távoras, tiveram mesmo azar ou «deitaram-se na cama que fizeram»?
Em 1750, quando morreu o rei D. João V, Portugal era um típico país do «Antigo Regime»: politicamente absolutista, economicamente agrícola, socialmente hierarquizado, religiosamente dominado pelo conservadorismo inquisitorial e jesuítico.
Entre os ministros (secretários de Estado, como então eram designados) escolhidos pelo novo rei, D. José, encontrava-se Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), membro da pequena nobreza, diplomata, que tinha sido embaixador em Londres e em Viena de Áustria. Carvalho e Melo era um «estrangeirado»: absorvera por lá as novas tendências culturais reformistas e era adepto do despotismo esclarecido ou iluminado. Outro estrangeirado, Francisco Xavier de Oliveira (o Cavaleiro de Oliveira) diria mais tarde que Portugal era um relógio atrasado. Ora Sebastião de Carvalho e Melo vinha animado da firme vontade de o acertar, de fazer deste País um Estado moderno.
Tendo sido nomeado Secretário de Estado dos Negócios do Reino, não tardaria a destacar-se pela sua forte personalidade, a sua preparação política e o seu dinamismo, sobretudo quando teve que encarar as consequências do grande terramoto de 1755. D. José dá-lhe cada vez mais poderes, tornando-o um verdadeiro superministro. No final da década de 50 seria feito conde de Oeiras e, já nos anos 70, perto do final do seu consulado, marquês de Pombal.
O grande objectivo de modernização do País e do Estado passava por reformas económicas, educativas e administrativas. A todas elas Pombal meteria ombros. Não é agora a altura de descrevermos exaustivamente a sua acção nesses domínios. Em qualquer livro de História, enciclopédia ou dicionário os leitores encontrarão esse estudo.
Para levar a bom termo o seu ambicioso projecto de transformação de Portugal, porém, era também necessário enfrentar os poderosos (o clero, particularmente a Companhia de Jesus, um verdadeiro «Estado dentro do Estado», e a nobreza), retirando-lhes privilégios, obrigando-os a obedecer ao poder real sem hesitações, fazendo o «nivelamento social» pela promoção da burguesia mercantil e financeira – em suma, aplicando o despotismo esclarecido.
Em 1758, Pombal teve uma ocasião soberana para levar a efeito estes propósitos: segundo a versão oficial, na noite de 3 de Setembro, vários homens, a soldo do duque de Aveiro e dos marqueses de Távora, tentaram matar D. José, no local onde hoje fica a Igreja da Memória, em Lisboa, disparando contra a carruagem real. Segundo se diz, o rei regressaria de um encontro amoroso com a marquesinha de Távora. D. José escapou, embora ferido, mas os cabecilhas da conspiração não escaparam.
Mantido inicialmente em segredo, o atentado desencadeou uma ferocíssima repressão sobre alguns sectores da alta nobreza, acusados de conspirar para matar o rei e afastar o seu poderoso ministro que, entretanto, tinha ganho muitos inimigos.
Três meses depois encontravam-se presos o duque de Aveiro e o marquês de Távora, bem como quase todos os membros das suas famílias, incluindo o marquês de Alorna e o conde de Atouguia, genros do marquês de Távora. E ainda os condes de Vila Nova, de Óbidos e da Ribeira Grande, para além de muitos outros nobres e pessoas de todas as classes.
O duque de Aveiro, sujeito a apertados interrogatórios, viria a comprometer gravemente o marquês de Távora, D. Francisco, a marquesa, D. Leonor, e os seus filhos, Luís Bernardo e José Maria. O marquês e o filho mais velho negaram sempre o seu envolvimento no atentado. José Maria de Távora e o cunhado, o conde de Atouguia, violentamente torturados, fizeram uma confissão completa.
Em 12 de Janeiro de 1759 foi publicada a sentença e no dia 13 os condenados foram conduzidos a um patíbulo erguido propositadamente em Belém, junto do mosteiro dos Jerónimos. A marquesa D. Leonor de Távora foi degolada. O marido, os dois filhos e um dos genros, o conde de Atouguia, foram supliciados (os condenados ao suplício eram sujeitos a terríveis sofrimentos, até à morte, como a quebra de ossos à marretada, o esticamento dos membros, etc.).
O velho marquês de Távora, por exemplo, foi condenado a ser «exautorado de todas as honras, dignidades e comendas, a ter as canas das pernas e dos braços partidas, a ser depois rodado [esticado e morto numa roda] e a picarem-se as suas armas». Os bens da família foram integralmente confiscados a favor do Estado e da Coroa, o título extinto e o uso do apelido Távora proibido para todo o sempre. Luís Bernardo e José Maria de Távora foram igualmente executados através das mais horríveis torturas. A crueldade das penas impressionaria vivamente todas as cortes europeias.
O duque de Aveiro, o único cuja responsabilidade no atentado ficaria provada sem qualquer margem para dúvidas, foi igualmente condenado a ser supliciado. O ducado de Aveiro foi extinto e todos os bens da família confiscados. O seu palácio de Lisboa, situado mais ou menos onde hoje fica a Fábrica dos Pastéis de Belém, foi completamente arrasado e o próprio chão foi salgado, uma prática muito antiga (os Romanos fizeram isso à cidade de Cartago, depois de a destruírem), cujo simbolismo é óbvio: para que ali nada mais crescesse. Ainda hoje o local se chama Largo do Chão Salgado.
A esposa de Luís Bernardo de Távora, D. Teresa (a marquesinha), permaneceria em prisão conventual quase 20 anos, até à morte do rei, em 1777. Também o marquês de Alorna seria mantido preso até ao afastamento de Pombal.
Depois deste severíssimo exemplo, a nobreza não conspirou mais para afastar Pombal, embora nunca lhe perdoasse. Dominada a aristocracia, chegava a vez do clero: a Companhia de Jesus, a mais rica, influente e poderosa ordem religiosa do País, foi expulsa nesse mesmo ano de 1759 e todos os seus edifícios e propriedades passaram para a posse do Estado. A autoridade real (leia-se a do marquês de Pombal) tornava-se assim incontestada. Era agora a vez de implementar as reformas económicas e culturais. E assim se fez, como se sabe.
Em 1777 morre o rei D. José. Com a «viradeira», chegava a vez de os inimigos de Pombal se erguerem. Sebastião José de Carvalho e Melo foi afastado por D. Maria I de todos os seus cargos, sendo-lhe instaurado um processo que o condenou ao exílio para as suas terras de Pombal, onde viria a falecer em 1782, com 83 anos de idade. O povo resumiu o seu governo numa frase lapidar: «Pombal fez muito bem e muito mal.» No entanto, anos mais tarde, era já lembrado com saudade: «Mal por mal, antes Pombal.»
Logo em 1777, D. Maria I ordenou a libertação daqueles que, relacionados com o processo de 1759, ainda se encontravam na prisão, restituiu os bens e dignidades aos Távoras, incluindo o uso do nome, mas o título de marquês nunca seria recuperado. Uma das mais poderosas famílias do País era agora uma pálida sombra daquilo que tinha sido. «Azar dos Távoras».
Padrão do Chão Salgado, em Belém, erguido no local onde tinha sido o palácio do duque de Aveiro, executado como regicida em 1759. Na base desta coluna pode ler-se a seguinte inscrição: «Aqui foram as casas arrasadas e salgadas de José de Mascarenhas, exautorado das honras de duque de Aveiro, e outras, e condenado por sentença proferida na Suprema Junta da Inconfidência, em 12 de Janeiro de 1759, justiçado como um dos chefes do bárbaro e execrando desacato que na noite de 3 de Setembro de 1758 se havia cumulado contra a real pessoa de el-rei nosso senhor D. José primeiro. Neste terreno infame se não poderá edificar em tempo algum.»
«Na Raia da Memória», opinião de Adérito Tavares
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Há um par de anos, num bem regado almoço com um grupo de colegas, classifiquei um tinto alentejano com uma expressão bem portuguesa – «Isto é cá uma pomada!» Logo um amigo que estava ao meu lado perguntou qual seria a origem de tal expressão. E, viciado como sou nas explicações de natureza histórica, iniciámos uma animada conversa sobre esta e sobre muitas outras «palavras com história». Existem muitos exemplos curiosos, alguns dos quais poderão ser interessantes para os leitores.
Quando vamos a uma casa de penhores, ainda dizemos «pôr no prego». Se se pergunta o significado desta expressão, as pessoas associam-na ao facto de muitas das coisas empenhadas se poderem pendurar em pregos, como um colar, um anel, uma pulseira. Nada disso: a expressão nasceu na segunda metade do século XIX, porque a maior parte das casas de penhores de Lisboa pertenciam a um prestamista de apelido «Prego». Então, «pôr no prego» era «pôr no Senhor Prego».
O leitor, quando pede uma «imperial», já se questionou por que razão se lhe chama assim? No Porto, por exemplo, diz-se «fino», mas a razão é fácil de perceber: porque os copos em que se serve a cerveja são habitualmente finos, estreitos. Mas porquê «imperial»? No começo do século XX, a principal produtora de cerveja, em Portugal, era a Fábrica Germânia Imperial, que foi a primeira a vender cerveja à pressão. Portanto, uma «imperial» não era senão um copo de cerveja da Germânia Imperial. Resta acrescentar que, em 1916, quando Portugal declarou guerra à Alemanha, confiscou todos os bens germânicos e, portanto, também a fábrica de cerveja, que mudou o nome para… Portugália (muito mais nacionalista, aliás). Da próxima vez que o meu estimado leitor for à cervejaria Portugália da Avenida Almirante Reis, em Lisboa, suba ao 1.º andar: verá, no patamar, um painel de azulejos com o símbolo da Fábrica Germânia Imperial e uma legenda com a explicação que acima acabou de ler.Outro exemplo muito conhecido: quando perdemos alguma coisa valiosa, ou quando alguém desaparece, dizemos que «foi para o maneta». Porquê? Durante as três invasões francesas, entre 1807 e 1811, o chefe da polícia invasora foi o terrível general Loison, que era… maneta. E, quando algum patriota português lhe caía nas mãos (ou, melhor, na mão!), nunca mais aparecia. «Ia para o maneta…». A partir de então, pouco a pouco, o povo passou a usar a expressão com o sentido que hoje tem.Ainda outro exemplo da mesma época: «Ficar a ver navios…» A origem desta expressão, utilizada quando alguém fica com as suas expectativas frustradas, tem que ver com a 1.ª invasão francesa, em 1807. Napoleão tinha ordenado ao general Junot que aprisionasse a família real portuguesa; todavia, apesar de caminhar a marchas forçadas com o seu exército, quando Junot chegou à capital já o príncipe regente D. João e a sua numerosa comitiva tinham partido, a bordo de 55 navios, a caminho do Brasil; o general francês ainda avistou os últimos, ao largo de Cascais, mas nada pôde fazer; ficou, portanto… «a ver navios». Obviamente, não é só em português que existem estas «palavras com história. Apenas um exemplo inglês. Quem conhece Londres sabe que um dos seus numerosos jardins é o Green Park. Porquê o nome? Verde é o que não falta em todos eles. Então porque é que este se chama Green? Em 1659, no âmbito da afirmação do Portugal Restaurado pela diplomacia lusa, foi acordado o casamento de D. Catarina de Bragança, filha de D. João IV, com o rei Carlos II de Inglaterra. Foi a famosa rainha que introduziu o hábito do chá na Grã-Bretanha. O tão «british» chá das cinco é afinal de origem portuguesa. Mas D. Catarina foi muito infeliz no casamento. Nunca conseguiu ter filhos e o marido tornou-se um incorrigível mulherengo. Um dia, quando Carlos II passeava com a rainha e as suas damas de companhia no parque que rodeava o palácio, ele cortou uma flor e a rainha, naturalmente, estendeu a mão. O rei, porém, ofereceu-a a uma das jovens aias. Humilhada e enfurecida, D. Catarina ordenou aos jardineiros que arrancassem todas as flores desse jardim e que jamais as voltassem a plantar: só relva e árvores. A sua vontade seria respeitada até hoje, nascendo assim o Green Park.
Então e a nossa «pomada»?
Neste caso, como diria o prof. Hermano Saraiva, «trata-se de uma ideia cá minha». Na verdade, apesar de ter feito uma pesquisa bibliográfica exaustiva, não encontrei qualquer explicação para esta expressão tão popular, frequentemente pronunciada depois de se beber uma «boa pinga»: «Isto é cá uma pomada!» Mas «pomada» porquê? Porque «escorrega» bem pela garganta abaixo? Não tem muito sentido. Vamos a um pouco de História.
Em 1916, como acima já se referiu, Portugal entrou na I Guerra Mundial, ao lado dos Aliados, enviando dezenas de milhares de soldados para a Flandres e para o Norte da França. A maioria destes soldados nunca tinha visto mais do que os estreitos horizontes da sua aldeia. A guerra das trincheiras seria para eles uma duríssima provação e uns bons milhares ficaram para sempre sepultados em terra estranha. Mas, de vez em quando, os da linha de combate eram substituídos, para gozarem uns breves dias de repouso. Iam então às aldeias e cidades francesas próximas da frente de batalha, às «casas de meninas» e às tabernas. Bebiam geralmente vinho corrente, porque para mais não dava o magro pré. A não ser quando algum mais abonado resolvia comprar vinho engarrafado, uma «botelha» de um dos afamados vinhos de Bourgogne.
Eis um preçário de 1915, em francos por garrafa: Ordinário: 0,60; Mâcon: 1; Mâcon vieux: 1,5; Beaunne: 2,5; Pommard: 3,5; Chambertin: 5. Os nossos soldados dificilmente chegariam a um Chambertin ou a um Clos-Vougeot, muito menos ainda a um Romanée-Conti ou a um La Tâche, mas o Pommard, embora caro, era mais acessível. E, bebendo esse raro néctar, muito melhor que qualquer outro que já lhes tinha descido pela garganta, exclamavam: «Que pomada!» Quando regressaram a Portugal, os combatentes da Flandres trouxeram na memória o gosto do Pommard. E, se um dia voltavam a provar um vinho que se lhe assemelhasse, voltavam a exclamar: «…Isto é cá uma pomada!»
Em 2002 visitei a região dos grandes vinhos de Bourgogne, incluindo Pommard, onde fiz uma das fotografias que ilustram este artigo. E, para comprovar a minha «tese» (embora a História não seja uma ciência experimental…) bebi com a família, no último Natal, a garrafa de Pommard que o leitor pode ver na noutra fotografia. Garanto-vos que, na verdade, era uma «bela pomada!»
«Na Raia da Memória», opinião de Adérito Tavares
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Na sequência da minha crónica anterior, sobre Ana de Castro Osório, talvez valha a pena reflectir mais um pouco sobre a condição feminina.
«Não pense a mulher que tem como nós homens entendimento…». Isto escreveu D. Francisco Manuel de Melo, na sua Carta de Guia de Casados, há quase 400 anos, traduzindo o pensamento dominante: a mulher era inferior ao homem e deveria ser submissa, discreta, reservada, caseira, fiel, boa filha, boa esposa, boa mãe. «Do homem a praça, da mulher a casa (…); se a mulher tem bons dentes, cova na face e riso fácil, que ria em casa para seu marido», diz também D. Francisco.
Deste modo, às mulheres eram geralmente negados os direitos cívicos, políticos e sociais. A mulher geria a casa, educava os filhos e cuidava do marido. Para isso, não lhe era necessária grande instrução, pelo que raras eram as mulheres cultas. Aliás, desconfiava-se das mulheres «que se metiam a letradas» (ainda palavras da Carta de Guia…). Já se interrogaram os meus leitores sobre o facto de, até ao século XIX, com raras excepções, não se falar de pintoras, escultoras, arquitectas, escritoras, compositoras, filósofas? A primeira mulher a leccionar na Sorbonne, em Paris, foi Marie Curie, que seria galardoada com dois prémios Nobel: o da Física, em 1903, e o da Química, 1911. Mas, apesar disso, quando, neste mesmo ano, Madame Curie foi proposta para membro da Academie Française, o seu nome foi rejeitado. Em vez dela, entrou um homem cujo nome hoje ninguém conhece.
Quase 200 anos depois de se ter iniciado a luta pela igualdade civil e política dos cidadãos (com o iluminismo e o liberalismo), as mulheres continuavam a não ver reconhecidos os seus direitos. No começo do século XX, a mulher era ainda considerada como intelectualmente inferior, incapaz de assumir responsabilidades cívicas, permanecendo sujeita à tutela familiar do homem, fosse ele o pai, o marido ou o irmão (lembremos que, ainda nos anos 60 do século XX, em Portugal, uma mulher casada precisava de autorização do marido para se ausentar para o estrangeiro!). A mulher era a esposa, a mãe, a «fada do lar», mas não tinha poder de decisão sobre a educação dos filhos. Era a inspiradora de poetas e de artistas, mas raramente lhe permitiam desenvolver as suas capacidades criadoras. Trabalhava, quando era necessário recorrer ao sustento da família, mas apenas exercia tarefas e ofícios rotineiros, recebendo sempre salários inferiores aos do homem.
Desde o século XIX que se levantaram vozes de numerosas mulheres, conscientes da injustiça da condição feminina. Publicaram livros e artigos na imprensa, fundaram os seus próprios jornais, constituíram associações e movimentos, denunciando a hipocrisia social, que enaltecia o amor e a devoção das mulheres e as condenava a uma situação de inferioridade. Simultaneamente passaram a exigir a igualdade de direitos na família, no acesso à educação, no trabalho e, sobretudo, na vida política, reclamando para a mulher o direito de voto e a plena cidadania.
Tratava-se de uma luta difícil e penosa: na verdade, em França, só depois de 1945 as mulheres puderam votar em absoluta igualdade com os homens. Também na Inglaterra, sobretudo pela voz de mulheres inconformistas e ousadas como Emmeline Pankhurst, foi exigida a igualdade de direitos, particularmente a concessão do direito de voto à mulher.
A Nova Zelândia foi o primeiro país do mundo a conceder a plenitude de direitos cívicos e políticos à mulher, em 1893. Seguir-se-iam a Finlândia (1906), a Noruega (1910), a Dinamarca (1915), os EUA (1920) e a Inglaterra (1928).
Nas últimas décadas, o movimento feminista mundial, ultrapassado um certo folclore pretensamente vanguardista que só contribuía para o desacreditar, tem continuado a exigir o reconhecimento da individualidade da mulher e a plena igualdade de direitos em relação ao homem. Não apenas através da letra da lei mas também na prática quotidiana. Todavia, cerca de um terço das mulheres do planeta nem sequer dispõe livremente do seu próprio corpo. E muitos anos terão ainda que passar até que triunfe esta verdade evidente: a mulher é um ser tão humano como o homem.
«Na Raia da Memória», opinião de Adérito Tavares
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ANA DE CASTRO OSÓRIO – Educadora – Pioneira do Movimento Feminino em Portugal. – Aqui há tempos, a propósito do início das obras do futuro hospital de Loures, escrevi no «Capeia Arraiana» um texto sobre Carolina Beatriz Ângelo, natural da Guarda, uma das primeiras mulheres médicas em Portugal, cujo nome foi dado ao novo hospital.
Carolina Beatriz Ângelo foi, juntamente com Ana de Castro Osório, Maria Amália Vaz de Carvalho, Virgínia de Castro e Almeida, Maria Veleda, Adelaide Cabete, Maria Lamas e outras ilustres mulheres portuguesas, precursora da luta pela igualdade de direitos cívicos e políticos entre homem e mulher.
As primeiras décadas do século XX europeu constituíram um tempo absolutamente revolucionário, no domínio dos valores e do quotidiano. Com a 1.ª Guerra Mundial (1914-18), chega ao fim a Belle Époque e inicia-se uma período que culminará com os «loucos anos 20», marcados pela pressa de viver, pelo desenvolvimento da cultura de massas (o cinema, a rádio, o desporto, etc), pelo jazz e pelas novas danças (o charleston, o one-step, o jazz, o tango) e também por importantes transformações na condição feminina. Durante a Guerra, ao substituírem os homens mobilizados, as mulheres começam a ter acesso a profissões e actividades que, até aí, não lhes eram muito habituais: manipulação de máquinas industriais, condução de autocarros e de eléctricos, etc. As próprias profissões «intelectuais», como jornalista, médica, advogada, professora universitária, começam a ver chegar as primeiras mulheres. Nos anos vinte, o aspecto e os hábitos de vida revelam uma nova mentalidade: as saias curtas e travadas, o cabelo «à garçonne», a frequência de praias e de cabarets, a prática de desportos como a natação, o ténis e o ciclismo mostram uma mulher mais confiante e emancipada.
E em Portugal?
O nosso País acabará por receber, com algum desfasamento, como era habitual, os reflexos deste novo clima mental.
As primeiras décadas do século, em Portugal, caracterizam-se pelo enfrentamento de duas tendências: a primeira, conservadora, tradicionalista, apegada aos valores ditos nacionais, foi culturalmente representada pelo movimento da Renascença Portuguesa, com Teixeira de Pascoais como corifeu, e, politicamente, pelo Integralismo Lusitano, em que pontificou António Sardinha; a segunda, progressista, renovadora e inconformista, terá em António Sérgio e no movimento da Seara Nova a sua melhor expressão política e na geração de Orfeu, representada por José de Almada Negreiros, Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, a expressão cultural. Através de uma adesão radical aos movimentos artísticos e literários de vanguarda, como o modernismo-futurismo, o grupo da revista Orfeu atirou pedradas violentas ao charco do panorama sociocultural português. É o tempo do Manifesto anti-Dantas, de Almada Negreiros, e da adesão de alguns jovens pintores, como Amadeo Sousa-Cardoso e Santa Rita Pintor, aos novos movimentos artísticos. Paralelamente, a vida boémia ganha raízes, com alguns cabarets e clubes nocturnos a implantarem-se nas grandes cidades, como foi o caso do lisboeta Bristol Club, já nos anos vinte. As praias começam a atrair cada vez mais gente, as mulheres da média e alta burguesia usam saias curtas, fumam, pintam-se, desnudam ostensivamente os ombros e o colo.
Não esqueçamos, todavia, que tudo isto se passa entre as minorias urbanas; cerca de 70 a 80 por cento da população continuava a ter como horizonte as serranias ou as planícies da sua aldeia, continuando a viver, a trabalhar e a morrer como havia séculos. E, lembremos também que, apesar de um louvável esforço da I República neste domínio, cerca de dois terços dos portugueses continuavam analfabetos. Por sua vez, à grande maioria das mulheres eram ainda recusados os direitos cívicos e políticos elementares, numa sociedade fortemente dominada pelo machismo e pelo conservadorismo social. A título de exemplo, citemos Júlio Dantas (o Dantas do Manifesto): «… não se percebe o que seja uma grande paixão por uma médica, por uma advogada, criaturas moralmente desvirginadas (ainda que irrepreensivelmente puras) […]; não nos parece possível encontrar nelas aquela ternura, aquela inocência, aquela submissão. O amor pertence às outras […] – às belezas tímidas, apagadas, silenciosas e tristes». (Pela amostra, parece que Almada Negreiros tinha toda a razão para gritar, empoleirado numa das mesas do café Martinho, «Pim, morra o Dantas!»).
É neste ambiente, nesta atmosfera mental, que devemos situar Ana de Castro Osório.
Escritora ilustre e pedagogista, Ana de Castro Osório nasceu em Mangualde em 1872, dentro de uma aristocrática família beirã. A partir dos 23 anos passa a residir em Setúbal, iniciando então uma fecunda carreira literária. Em 1897 começou a publicação de uma série de folhetos intitulados Para as Crianças, contendo contos tradicionais e infantis. Estava encontrada uma das suas principais vocações: a literatura infantil e juvenil. Podemos, aliás, considerá-la a verdadeira fundadora da literatura infantil no nosso País. Através de contos populares adaptados, de histórias originais ou de traduções (dos irmãos Grimm, de Hans Christian Andersen e de outros escritores estrangeiros), Ana de Castro Osório não cessou de contribuir para aquilo que o poeta João de Deus considerava a verdadeira revolução primordial: cultivar o povo.
A partir do seu casamento com o escritor e activista republicano setubalense Paulino de Oliveira, em 1898, passou a dedicar-se também ao combate político e social. Em 1905 publica uma das suas obras mais importantes, verdadeiramente pioneira do movimento feminista em Portugal: As Mulheres Portuguesas. Esta obra, posteriormente traduzida para francês, constitui um pilar da luta pela transformação da condição feminina no nosso País.
Após a proclamação da República, em 1910, Ana de Castro Osório funda a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas e colabora com Afonso Costa na elaboração da Lei do Divórcio. Publica, entretanto, outros importantes títulos, como por exemplo: A mulher e a criança (1911), A mulher no casamento e no divórcio (1911), As operárias das fábricas de Setúbal (1911), Mundo novo (1912?), A mulher na agricultura, nas indústrias regionais e na administração (1915), A verdadeira mãe (s/d). Para além da excepcional capacidade interventora e criativa nos domínios social e político que esta sequência quase alucinante de obras revela, Ana de Castro Osório continua a sua actividade pedagógica e didáctica, publicando inúmeros livros destinados às crianças, aos pais e aos educadores. Tendo enviuvado precocemente (em 1914), prossegue sozinha o mesmo pacífico combate em favor da libertação do homem e da mulher através da cultura e da mudança de mentalidades.
Durante a 1.ª Guerra Mundial teve um papel muito activo na defesa dos valores democráticos, representados pelos Aliados, e na assistência aos soldados portugueses. Em 1922 realizou no Brasil um conjunto de conferências muito aplaudidas e publicou um livro sobre as relações luso-brasileiras: A grande aliança.
Morreu em Lisboa, em 1935. Não assistiu ao triunfo de muitas das ideias por que se bateu, algumas das quais ainda hoje continuam a encontrar resistências. É que, entre todas, as estruturas mentais são as que mudam mais lentamente. «Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades/ Todo o Mundo é composto de mudança», diz Camões. Mas o preconceito, a atitude de reaccionarismo mental resiste, resiste. Por vezes, bem no recôndito da nossa personalidade, continuamos machistas como os nossos avós. Ana de Castro Osório deu o seu contributo para essa indispensável mudança mental. Esforcemo-nos por dar também o nosso. Modestamente, embora.
«Na Raia da Memória», opinião de Adérito Tavares
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As nossas aldeias enchem-se no mês de Agosto, o tempo das capeias… Mas os dias outonais são deslumbrantes.
Nos finais de Outubro e começos de Novembro parece que Malhoa e Silva Porto andaram por ali a pincelar a paisagem em tons de amarelo, ocre, laranja, vermelho…
As vinhas, os castanheiros, os choupos, os plátanos, as árvores-do-âmbar, sobretudo em dias de sol, lavam-nos os olhos e limpam-nos a alma. E, quando chegamos a casa, temos ainda outros regalos à nossa espera: o caldo escoado, as castanhas assadas no borralho, a aguardente feita no alambique, uma febra assada nas brasas da lareira, uma generosa talhada de queijo mole pousada numa fatia de pão espanhol…
As fotos foram feitas no Sabugal, Vale de Espinho, Vila Boa e Pêga.
«Na Raia da Memória», opinião de Adérito Tavares
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A Comissão Municipal para a Celebração do Centenário da República incluiu no seu programa uma visita de estudo à Casa-Museu dos Patudos, em Alpiarça, destinada aos alunos do Curso Profissional de Conservação e Restauro, da Escola Secundária do Sabugal.
Acompanhados por um grupo de professores, pelo Director da Escola, Dr. Jaime Vieira, pelo Presidente da Câmara Municipal do Sabugal, Eng.º António Robalo, e por mim próprio, esta visita efectuou-se no dia 26 de Outubro.
Porquê, no âmbito do Centenário da República, uma visita à Casa dos Patudos? Porque esta extraordinária mansão, recheada com uma também extraordinária colecção de obras de arte, foi residência de um dos maiores vultos da I República, aquele que a proclamou em 5 de Outubro de 1910 a partir da varanda da Câmara Municipal de Lisboa: José Relvas.
Lembremos, em breves palavras, José Relvas, essa notabilíssima figura de cidadão exemplar, político competente e mecenas generoso.
José de Mascarenhas Relvas nasceu na Golegã, em 1858 (curiosamente, no mesmo ano em que nasceu, na Ruvina, o «nosso» Dr. Joaquim Manuel Correia), no seio de uma abastada família. Era filho de Carlos Relvas, que se notabilizou, entre outras e muito diversificadas actividades, como pioneiro da fotografia em Portugal (merece uma visita a sua Casa-Estúdio na Golegã).
José Relvas licenciou-se em Direito na Universidade de Coimbra, no ano de 1880, mas só tardiamente se interessaria pela vida política. Sendo um democrata convicto, demonstrou abertamente a sua discordância em relação ao governo ditatorial de João Franco e aderiu ao Partido Republicano, em 1908. A partir de então, dedicou-se de alma e coração à propagação e defesa dos ideais do republicanismo, tendo-se tornado um dos elementos mais activos do Directório Republicano.
Em 1882, o jovem José Relvas, então com 24 anos, mudou a sua residência para Alpiarça. Quando, em 1887, morreu a sua mãe, D. Margarida Amália de Azevedo Relvas, reclamou a respectiva herança, dispondo assim de capitais suficientes para desenvolver os seus negócios agrícolas, sobretudo a produção vinícola. Foi a prosperidade resultante desses negócios que lhe permitiu construir a Casa dos Patudos.
Esta enorme casa familiar foi projectada, em 1904, por Raul Lino, nesta altura um jovem arquitecto, com apenas 25 anos. Sendo embora uma das suas primeiras obras, a Casa dos Patudos possui já as características fundamentais da obra de Raul Lino, que haveriam de marcar indelevelmente a arquitectura portuguesa da primeira metade do século XX: um sábio doseamento de tradição revivalista e de modernidade.
Inaugurada em 1909, a Casa de José Relvas e da sua família tornar-se-ia simultaneamente uma casa-museu, que, pouco a pouco, viria a albergar uma impressionante colecção de pintura, escultura e artes decorativas, e uma mansão cultural, onde Relvas reunia habitualmente numerosos amigos, sobretudo músicos e artistas plásticos. Ele próprio era um bom violinista (teve um Stradivarius) e o seu filho mais velho, Carlos, tocava piano. Eram, portanto, muito frequentes os serões musicais na Casa dos Patudos.
Sendo por natureza um homem sensível, amante das artes, dedicou boa parte da sua vida à «nobre arte da amizade»: teve a sorte de viver numa das épocas mais fecundas da cultura portuguesa e contava entre os seus amigos artistas como José Malhoa, Columbano, Silva Porto, Tomás da Anunciação, João Vaz, António Ramalho, Rafael Bordalo Pinheiro, Soares dos Reis e Teixeira Lopes, aos quais encomendou ou adquiriu numerosas obras. Nas suas estadias e viagens ao estrangeiro foi também adquirindo quadros de alguns dos mais notáveis pintores europeus de todos os tempos, como Zurbarán e Delacroix. Para além de pintura de grande qualidade, Relvas coleccionou também preciosas obras de escultura, cerâmica, azulejaria, joalharia, tapeçaria, mobiliário, etc.
A partir de 5 de Outubro de 1910, a vida de José Relvas sofreu uma transformação radical: passou a viver muito mais tempo fora de Alpiarça, longe dos seus quadros, do seu violino e dos seus livros. Foi nomeado ministro das Finanças do Governo Provisório, em substituição de Basílio Teles. Exerceu o cargo com grande empenho, competência e escrupulosa dedicação. Algo desiludido, porém, com os rumos da instabilidade política, aceitou o cargo de embaixador de Portugal em Madrid, onde permaneceu entre 1911 e 1914. Regressado ao país, foi depois senador e, em 1919, Presidente do Conselho de Ministros, num breve governo de apenas três meses, formado na sequência do assassinato de Sidónio Pais. Este foi um tempo particularmente funesto na vida de José Relvas: já anteriormente lhe haviam morrido dois filhos e, no ano devastador de 1919, suicida-se o filho mais velho (agora único), Carlos Relvas. Entre 1919 e 1929, ano da sua morte, José Relvas abandona definitivamente a política, refugiando-se na sua actividade de agricultor e na fruição da sua imensa e preciosa colecção artística.
Foi essa vasta e maravilhosa colecção que, de sala em sala, foi encantando os alunos e professores da Escola Secundária do Sabugal.
«Na Raia da Memória», opinião de Adérito Tavares
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Inaugurado em 30 de Julho de 2010, o Museu de Arte e Arqueologia do Vale do Côa merece uma visita pelo seu edifício, pelo enquadramento paisagístico e pelo conteúdo.
1 – A arte rupestre do Vale do Côa
O Côa nasce na serra de Malcata, perto de Foios, concelho do Sabugal, percorrendo depois cerca de 115 quilómetros até ao rio Douro, junto a Vila Nova de Foz Côa. A maior parte do seu percurso, feito de sul para norte, decorre num vale alcantilado e rochoso, granítico em boa parte, xistoso no final. E foi justamente aí, em numerosos painéis xistosos das margens do Baixo Côa e do Douro, que os nossos distantes antepassados efectuaram centenas de gravuras e algumas pinturas.
Quando, no começo dos anos 80 do século XX, foi construída no Douro a barragem do Pocinho, a elevação das águas fez submergir vários desses painéis, sem que a questão tenha tido o impacto que, no princípio dos anos 90, a construção de uma nova barragem, esta no vale do Côa, viria a ter. É que, enquanto a EDP prosseguia com os trabalhos preparatórios para a construção da albufeira, novas pesquisas arqueológicas revelavam um valiosíssimo conjunto de gravuras até aí desconhecidas.
Iniciou-se então uma campanha contra a construção da barragem, com o slogan “as gravuras não sabem nadar” a invadir jornais e televisões. Nesta campanha destacou-se, do ponto de vista científico, o arqueólogo João Zilhão.
A EDP, que insistia na barragem, encomendou «peritagens» que contrariassem a autenticidade da arte rupestre do Côa e o IPPAR, fortemente pressionado devido à indiferença com que estava a olhar a polémica, acabaria por aceitar a realização de estudos internacionais de reconhecido mérito científico. Esses estudos, apesar de algumas divergências sem grande significado, acabariam por reconhecer a autenticidade das gravuras e, pouco tempo depois, foi criado o Parque Arqueológico do Vale do Côa (1996). As pesquisas efectuadas a partir de então, dirigidas principalmente pelo arqueólogo Mário Varela Gomes e pelo pré-historiador de arte António Martinho Baptista, identificaram e estudaram, no Baixo Côa, 30 sítios com arte rupestre do Paleolítico Superior e da Segunda Idade do Ferro, datando as gravuras mais antigas de há 25 000 anos. Estas gravuras representam, fundamentalmente, animais, sobretudo cavalos e bovídeos (auroques), embora existam também algumas representações humanas. Em 1998, a arte do Côa foi classificada pela UNESCO como Património da Humanidade.
Os sítios arqueológicos do Baixo Côa passaram a ser observados com regularidade por numerosos visitantes, devidamente conduzidos por guias ou por arqueólogos. Faltava, porém, um museu que enquadrasse todo o conjunto.
2 – O Museu do Vale do Côa
Inaugurado em 30 de Julho de 2010, o Museu de Arte e Arqueologia do Vale do Côa merece uma visita pelo seu edifício, pelo enquadramento paisagístico e pelo conteúdo. O Museu foi construído com o objectivo de contextualizar os achados arqueológicos do Baixo Côa e desenvolve-se ao longo de quatro pisos que incluem auditório, serviço educativo, área administrativa, restaurante, loja e salas expositivas.
O Museu do Côa é da autoria de dois jovens arquitectos da escola do Porto, que venceram com mérito o respectivo concurso: Tiago Pimentel e Camilo Rebelo. Eles idealizaram um gigantesco monólito de xisto com janelas em frestas, semi-enterrado, com oito metros de altura na vertente virada para o vale do Douro. Perfeitamente inserido na paisagem, situado numa elevação sobranceira à confluência do Côa e do Douro, o edifício do Museu lembra simultaneamente uma gruta rupestre e uma nave pousada sobre a paisagem ondulada da Beira Transmontana. Quando o visitante se encaminha para a recepção, parece que está a entrar por uma fenda aberta numa caverna de betão. Nas salas de exposição, de paredes negras, ressaltam monitores com todo o tipo de imagens, filmes e informações, bem como desenhos de auroques gigantes, cavalos e cervídeos. Como o verdadeiro objecto de estudo do Museu se encontra in loco, no exterior, não faltam réplicas das gravuras e todo o tipo de materiais encontrados nas escavações.
Exteriormente, sobretudo a partir da cobertura de betão enrugado, a lembrar xisto, temos uma vista deslumbrante sobre os vales do Côa e do Douro.
Consegui motivar os leitores a visitar o novo Museu do Côa? Espero que sim. É que nós, transcudanos da raia sabugalense, sentimo-nos muito próximos desses longínquos artistas do Vale do Côa.
A galeria de fotografias (uma pequena selecção das muitas dezenas que fiz), talvez ajude os mais cépticos a decidir-se por uma visita (que, já agora, poderá ser precedida por um dos percursos guiados às próprias gravuras).
Informações práticas
Para visitar o Museu do Côa deve aceder-se à cidade de Vila Nova de Foz Côa e, a partir daí, seguir a indicação «Museu». A estrada é boa. Ao contrário do Museu, que não exige marcação prévia, as visitas aos sítios arqueológicos onde se encontram as gravuras exigem marcação com antecedência. Os leitores interessados poderão obter informações detalhadas… Aqui.
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Alguns sites recomendados
Da Finitude do Tempo. Aqui.
As Gravuras Paleolíticas do Vale do Côa. Aqui.
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«Na Raia da Memória», opinião de Adérito Tavares
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O post de José Carlos Lages intitulado «Pensamento do dia – É a obnubilação, estúpido!» conduziu-me a algumas reflexões sobre esse fenómeno histórico que tem influenciado os destinos da humanidade muito mais do que se pensa: a estupidez humana.
«Uma pessoa estúpida é aquela que causa um dano a outra pessoa ou grupo de pessoas sem que disso resulte alguma vantagem para si, ou podendo até vir a sofrer um prejuízo.»
Carlo M. Cipolla, As leis fundamentais da estupidez humana
Carlo Cipolla (1922-2000) foi um eminente e prestigiadíssimo historiador, especialista de história económica, que um dia surpreendeu os seus amigos com um livro a que chamou Allegro ma non troppo, no qual incluiu um estudo sugestivamente intitulado «As leis fundamentais da estupidez humana». Cipolla distingue a maldade da estupidez, considerando que esta tem sido causa de maior infelicidade que aquela.
A profundidade de análise que o conhecimento da anterioridade dá aos historiadores faz deles, frequentemente, pessimistas profissionais, relativamente às capacidades do homem para aprender com os erros do passado. Pelo contrário, o processo histórico parece ter contribuído para requintar o mal. A selvajaria, o vandalismo, o sadismo, tudo se tem apurado com o passar dos tempos. As carnificinas dos Romanos foram largamente ultrapassadas pelos suplícios medievais ou pelas torturas inquisitoriais. Esse verdadeiro monumento da crueldade humana que foi o tráfico de escravos dos séculos XV a XVIII parece quase uma brincadeira de aprendizes de carrasco quando comparado com os horrores nazis, ou estalinistas. O próprio Estaline dizia, aliás, que a morte de um indivíduo era uma tragédia mas a morte de um milhão era estatística.
Se o sofrimento humano fosse quantificável, mensurável, teríamos biliões de toneladas dele, ao longo dos milénios: pirâmides de mortos; multidões incontáveis de mutilados, de estropiados, de crianças esfomeadas, esqueléticas, de olhar inocente e suplicante; bandos de pedintes esfarrapados e pustulentos; milhões de deserdados sem eira nem beira, dormindo ao relento e vagueando aos Deus-dará por essas megalópoles desumanizadas, onde vale mais um cão de raça que um ser humano, onde se mata o próximo por dez réis de mel coado. Ó Céus! Que mundo construímos, depois de milhares de anos de civilização e de terem por cá passado Cristo, Buda, Confúcio e Maomé! Matamo-nos uns aos outros em nome deles!
São guerras nacionalistas, guerras de fronteiras, guerras de religião, guerras de máfias, guerras para vender armas, guerras para estimular a economia, guerras para… E, como dizia o Padre António Vieira, a Guerra é esse monstro que tudo devora.
Mas há mais e pior. Não contente com as guerras, pilhagens, saques, roubos e massacres com que tem infligido sofrimento aos outros e, com frequência, prejuízos a si próprio, o bicho-homem achou que ainda era pouco e resolveu encaminhar-se alegre e inconscientemente para o suicídio colectivo, numa espécie de harakiri universal. Vai daí começa a construir armas de destruição maciça, super-bombas de hidrogénio, acumulando um arsenal capaz de destruir várias vezes o planeta. E centrais atómicas, que são como que bombas-relógio produzindo continuamente lixo radioactivo, que sepultamos nas fossas oceânicas convencidos de que assim nos vemos livres dele. E pôs-se a lançar na atmosfera milhões de toneladas de dióxido de carbono, com que envolvemos o único planeta que temos, transformando-o assim numa estufa onde mais dia menos dia será impossível sobreviver. E arrasamos ou incendiamos todos os anos milhões de hectares de florestas, esses pulmões da Terra, que poderiam ir consumindo parte do tal dióxido de carbono mas que deste modo ainda produzem mais. E despejamos montanhas de lixo nas terras e nos mares. E envenenamo-nos uns aos outros com comida artificial, corantes e conservantes e vacas loucas. E engolimos hectolitros de estimulantes para ficarmos excitados e rios de nicotina para ficarmos calmos. E narcotizamo-nos, desde novinhos, com drogas «leves». E drogamo-nos, às vezes com a mesma idade, com ópios, morfinas, cocaínas e heroínas. E… e… Quase falta o fôlego!
Que é isto senão suicídio? E que é o suicídio senão o mais estúpido de todos os crimes, a agressão suprema contra nós próprios?
O cientista francês Henri Laborit demonstrou que a vida nas grandes metrópoles conduz fatalmente o homem a uma atitude agressiva, quer em relação aos outros quer em relação a si próprio: agredimo-nos quando roemos as unhas, ou quando fazemos úlceras de estômago, ou quando disparamos um tiro nos miolos. E agredimos os animais, as plantas, o ambiente, o planeta. Por isso ele defende como únicas alternativas para a humanidade o controlo da natalidade, a paragem do envenenamento da Terra e do esgotamento dos recursos naturais, particularmente da água, e, principalmente, o fim da miragem urbana. As megalópoles descomunais, com 20 ou 30 milhões de habitantes, como Tóquio ou a Cidade do México, são uma aberração social. Condenam inapelavelmente o homem à destruição de si próprio e do planeta. A solução reside no regresso às pequenas comunidades: muitas pequenas cidades em vez de poucas grandes cidades. A salvação está no verde, não no asfalto. Caso contrário, o abismo atrairá o abismo, até à explosão final.
Tudo isto parece desmedido, excessivo, ultrapessimista. É verdade, mas nos últimos tempos várias coisas nos têm obrigado a reflectir sobre os horizontes sombrios da Humanidade: são os novos e velhos fundamentalismos, as guerras, quentes ou frias, que param e recomeçam, as pazes que se fazem e se desfazem, os ódios que se atiçam, os profetas pseudomoralistas e cínicos que são como Frei Tomás, os abutres que se alimentam da desgraça alheia, os pedófilos que refocilam na miséria e na inocência, e tutti quanti…
Em suma: essa fatal aliança entre o mal e a estupidez humana.
«Na Raia da Memória», opinião de Adérito Tavares
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O título da crónica que se segue (e só o título) foi-me sugerido por um subproduto televisivo transmitido pela RTP1 há alguns anos uma história lamecha, do género «romance da Coxinha», uma das múltiplas novelas com que quotidianamente três canais nos ensaboam o juízo. Há tempos contei nove mas pequei por defeito: são quinze!
Fernando Pessoa foi um homem constantemente torturado por uma angústia metafísica que lhe atormentou a existência. Num dos seus mais conhecidos poemas, Tabacaria, céptico, amargo e desiludido, confessa: «Vivi, estudei, amei e até cri / E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.» Pessoa inveja os ignorantes por serem ignorantes da sua ignorância. Inveja a rapariga pobre e suja que come chocolates, porque «não há mais metafísica no mundo senão chocolates». Inveja «o Esteves sem metafísica» que sai da tabacaria metendo o troco na algibeira. E, todavia, tanto Pessoa como Mário de Sá-Carneiro interrogam-se sobre o que seja a autêntica felicidade. O inocente, o louco, o ignorante, serão felizes? Que é ser feliz sem o saber? Uma pedra será feliz? Para se ser verdadeiramente feliz não será indispensável consciencializar a felicidade?
Será verdade que a sabedoria mata a felicidade? Ao comer a maçã, Adão foi condenado à infelicidade? Será a felicidade inatingível? E será mensurável? Os cinco escudos que a minha madrinha Vieira me dava no dia da festa da Senhora dos Milagres, lá em Aldeia do Bispo, proporcionavam-me uma felicidade incomensuravelmente maior que os milhares de euros que, eventualmente, me pudessem sair amanhã na lotaria. Por outro lado, hoje, ler um bom livro, ver um bom filme, ouvir um concerto, visitar Paris, Florença, Siena, Praga ou Toledo (as minhas cidades preferidas!), comer uma boa refeição em boa companhia, dão-me uma felicidade que na infância ou na juventude não existia. Em cada idade existe uma felicidade diferente. Ou, glosando Pirandello, é legítimo dizer que para cada um existe a sua felicidade. Um golo, no momento mais decisivo do mais importante desafio de futebol deixa-me perfeitamente indiferente. Em contrapartida, proporciona momentos de indiscutível felicidade a muitos futebolómanos.
Existem, é certo, causas óbvias de felicidade ou de infelicidade ter ou não ter saúde, ter ou não ter acesso aos confortos da vida moderna, possuir ou não uma família estável, gostar ou não do trabalho que se faz, viver ou não com um mínimo de «qualidade de vida». Depois, a personalidade de cada um faz a diferença. Há os eternos descontentes e insatisfeitos e aqueles que se satisfazem com muito pouco e que valorizam as pequenas alegrias da vida. Tive um colega, o Henrique, que ficou cego e sem um braço devido à explosão de uma granada. Já depois do acidente, licenciou-se em História e tornou-se um professor apreciado e respeitado pelos seus alunos. Em casa, era ele quem tratava da mãe, idosa e entrevada. Tudo isto, que seria motivo para grande infelicidade, faz dele um homem lutador, que enfrenta quotidianamente a adversidade com uma coragem admirável. À sua maneira, é feliz. Lembra-me, aliás, aquela história de um fulano que sentia uma grande frustração por ser baixinho e a quem passou o desgosto quando um dia encontrou um homem sem pernas.
O ser humano é de uma complexidade espantosa. A própria infelicidade de uns pode ser causa indirecta de felicidade para outros. Teríamos a Nona Sinfonia sem a surdez de Beethoven? Ou o Só de António Nobre sem a sua tuberculose? Ou os quadros de Van Gogh sem a sua loucura? Ou a filosofia de Nietzsche sem a sua sífilis?
É um lugar comum dizer-se que a riqueza e o poder não trazem a felicidade (embora se acrescente que «ajudam muito»). Na verdade, há pobres felizes e ricos extremamente infelizes. Rico ou pobre, nobre ou plebeu, sábio ou ignorante, belo ou feio, qual é o passaporte para a felicidade? Ninguém sabe. Há quem nasça para sofrer. E há até quem busque deliberadamente o sofrimento e o martírio como sublimação da existência e expiação das faltas cometidas. A outros, a vida estende-lhes uma passadeira dourada desde o berço até à cova. Existem pessoas que possuem tudo riqueza, poder, sabedoria, beleza, e são (como se diz na nossa terra) uns «desinfelizes». Onde está o segredo da alegria perene e verdadeira? Talvez Ricardo Reis (Pessoa, de novo e sempre) tenha parte da resposta: «Para ser grande, sê inteiro. / Nada teu exagera ou exclui. / Sê todo, em cada coisa. / Põe quanto és no mínimo que fazes. / Assim, em cada lago a lua toda / Brilha, porque alta vive.»
«Na Raia da Memória», opinião de Adérito Tavares
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As palavras têm, por vezes, um poder que ignoramos. Existem fórmulas, nomes, frases, orações, que citamos e recitamos em ocasiões especiais, sobretudo em cerimónias, laicas ou religiosas.
Outras palavras encontram-se carregadas de superstição, atribuimos-lhes um simbolismo mágico, que nos leva a evitá-las ou a substituí-las por outras (os eufemismos). Evitamos dizer «cancro» e dizemos «doença prolongada», «doença incurável», etc. Receamos o poder maléfico das próprias palavras. O poder da palavra foi sempre tal que os oradores e a oratória ocuparam em quase todas as civilizações um lugar destacado. Mas o poder das palavras e dos nomes não ficou limitado às sociedades primitivas ou antigas. Continuamos a dizer «Não invocarás o nome de Deus em vão», ou «Em nome da Lei». Por sua vez, os nomes das pessoas eram (e são) frequentemente reservados apenas para os amigos. Tratam-se os familiares e amigos pelo nome próprio, pelo diminutivo ou mesmo pela alcunha mas, cerimoniosamente, tratamos os outros pelo apelido. O nome próprio é uma «dádiva» reservada apenas aos íntimos.
Os Gregos, profundamente religiosos mas também alegremente imaginativos, atribuíam nomes curiosos aos seus filhos, quase sempre com significados de grande beleza, como por exemplo Teófilo (Theo = Deus + filos = amigo).
Em contrapartida, os Romanos eram muito mais pragmáticos. Os seus nomes derivavam frequentemente da actividade agro-pastoril, como Ovídio (derivado de ovelha). A sua falta de imaginação chegava por vezes ao ponto de os pais darem aos filhos o nome da ordem de nascimento: Primus, Secundus, etc. Um dos imperadores romanos chamou-se Septimus Severus. E as alcunhas também não revelam maior criatividade: Cícero, que significa «feijão frade» ou «chícharo», era a alcunha do grande escritor latino, cujo nome era Marco Túlio. A razão de tal alcunha devia-se a uma verruga que ele tinha no nariz. Ainda outro exemplo: o nome completo de Júlio César era Gaius (Caio, nome próprio), Julius (Júlio, apelido de uma nobre família romana, a gens Julia) Caesar (César, alcunha que significa «aquele que nasceu de um corte»). Na verdade, Júlio César nasceu através da operação que, muito mais tarde e em sua homenagem, se chamaria cesariana.
Os povos da Europa Ocidental, herdeiros como foram da civilização greco-romana, receberam influências das duas culturas. Temos nomes próprios de origem grega (Filomena, Catarina, Irene), outros de origem romana (Pedro, Paulo, Mário). E, claro, como não podia deixar de ser, uma terceira fonte onomástica igualmente importante foi a civilização judaica (Maria, José, Ana). Com o passar dos séculos e as sucessivas aculturações, surgiram entre nós nomes de origem germânica, (Fernando, Eurico, Rodrigo e, imagine-se, Adérito) ou árabe (Ismael, Fátima). E, mais modernamente, outros de influência russa (Sónia, Natacha, Tatiana), francesa (Odete, Suzete, Bernardete) e italiana (Bruno, Silvana, Sandra).
Quanto aos nossos apelidos, boa parte deles são, à maneira romana, provenientes das actividades agrícola e pecuária – Carvalho, Nogueira, Pereira, Oliveira, Silva, Campos, Carneiro, Leitão, Cabrita, Coelho, etc. Outros são patronímicos, isto é, derivados do nome próprio do pai – Henriques (filho de Henrique), Gonçalves (de Gonçalo), Nunes (de Nuno), Fernandes (de Fernando ou Fernão), Bernardes (de Bernardo), Martins (de Martim), Lopes (de Lopo), Esteves (de Estêvão), Peres (de Pero, ou Pedro), etc.
Aliás, os apelidos patronímicos são comuns noutras línguas. Em inglês terminam geralmente em son (filho), como Johnson (filho de John), Stevenson (filho de Steve), etc. Nas línguas nórdicas, em vez de son, utiliza-se sen (Christiansen, filho de Christian, ou Khristoffersen, filho de Khristoffer). Por sua vez, na Escócia, o patronímio é indicado pelo prefixo Mac ou Mc, como em MacDonald (filho de Donald) ou MacArthur (filho de Arthur). Na Irlanda, o prefixo patronímico é O’ – O’Neill (filho de Neill), ou O’Brien (filho de Brien).
Quando nasce uma criança, um dos primeiros problemas a resolver é a escolha do nome. Frequentemente, a escolha fica simplificada porque se quer homenagear o avô Francisco ou a tia Luísa. Outras vezes, as coisas complicam-se (para a inocente criancinha), quando os pais ou os padrinhos, numa infeliz demonstração de imaginação e exotismo, resolvem baptizar os coitadinhos com estranhíssimos nomes que eles arrastarão consigo a vida inteira, como Epaminondas, Reprimícia, Aldegundes, Temístocles, Pancrácio, Segismundo, etc. E, no entanto, há nomes tão bonitos para escolher – Irene, por exemplo, que significa, em grego, paz; ou Beatriz («aquela que faz alguém feliz»), ou Sara (em grego, «princesa»).
«Na Raia da Memória», opinião de Adérito Tavares
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O ressurgimento do racismo na Europa constitui um fenómeno deveras preocupante. Parece que a memória colectiva deveria ter ainda muito frescos os terríveis acontecimentos que o nazismo desencadeou, há pouco mais de 60 anos. Os horrores do holocausto nazi deveriam ter vacinado os europeus contra anti-semitismos e xenofobias de todo o tipo. No entanto, aquilo a que se assiste é a um despudorado negacionismo, à tentativa absurda de reinventar a História, como se o nazismo nunca tivesse existido.
Algumas vozes bem-pensantes tentam desdramatizar o actual surto racista, atribuindo-o apenas a jovens skins exibicionistas ou a ultra-nacionalistas boçais. Porém, deixam na sombra o neo-nazismo na Alemanha e na Áustria, o neo-fascismo na Itália e o fenómeno Le Pen em França, a pátria da «liberté, egalité et fraternité», a terra de Voltaire e da tolerância. É preocupante constatar que quase um quarto dos Franceses vota num homem que considera o holocausto um fait-divers sem importância histórica, ao mesmo tempo que acirra os ânimos contra todos os estrangeiros, sobretudo os das «raças» africanas. Tudo isto sem falar do inenarrável presidente do Irão.
E, no entanto, quantos «nativos» europeus podem garantir qual é a sua «raça»? Aliás, o próprio conceito é hoje recusado pela moderna antropologia. Basta lembrarmos que toda a humanidade descende de seres que, há apenas duzentos mil anos, tiveram o seu berço na África. Mesmo sem irmos tão longe, basta termos presente a contínua miscigenação a que as sucessivas migrações submeteram a população europeia. Somos todos mais ou menos descendentes de celtas, teutões, etruscos, latinos, judeus, godos, hunos, germanos, árabes, berberes, negros, etc.
Veja-se o nosso caso particular: a partir do século XV foram trazidos para Portugal muitos milhares de escravos africanos. Em 1551, só na cidade de Lisboa existiam dez mil escravos negros. Onde estão agora? Completamente disseminados na população. Os seus descendentes podemos ser qualquer de nós: eu, o leitor, o seu vizinho ou o skinhead arrogante que espanca um caboverdiano indefeso.
E que tem tudo isto a ver com o título desta prosa? Regressemos ao fio da meada: o leitor sabia que o marquês de Pombal era descendente de um clérigo e de uma escrava negra? Exactamente. Sebastião José de Carvalho e Melo, conde de Oeiras e marquês de Pombal, ministro omnipotente de el-rei D. José!
Ora aqui temos algo que podia calar o mais aguerrido dos aprendizes de racista da nossa praça: Portugal foi governado, durante 27 anos, pelo descendente de uma escrava negra! E ninguém se atreve a negar-lhe inteligência, clarividência, cultura. Foi uma personalidade enérgica, um espírito determinado, um homem empreendedor, cuja marca sobre o nosso percurso colectivo é ainda hoje bem visível, embora polémica. Um homem que submeteu a nobreza do mais puro e ancestral «sangue azul», eliminou todas as resistências eclesiásticas ao despotismo iluminado e promoveu a ascensão da burguesia mercantil, industrial e financeira. A personalidade de Pombal foi tão vigorosa e dominadora que o povo lhe chamava «o Carvalhão» (daí o nome do Arco do Carvalhão, em Lisboa, numa zona situada em antigas terras do Marquês).
Em 1761, Pombal proibiu o tráfico esclavagista na metrópole e declarou todos os escravos existentes em Portugal livres e forros. Se algum destes libertos conhecesse a ascendência do grande ministro teria por certo abençoado o ventre da escrava que gerara o antepassado de Sebastião José de Carvalho e Melo.
Quando falamos de racismo e de racistas, convém não esquecer que Hitler teve uma bisavó judia. E, quem sabe, talvez o senhor Le Pen tenha tido uma tetravó argelina! A moderna biologia pode hoje traçar com toda a facilidade o percurso retrospectivo dos nossos genes e até provar com segurança que o mais empedernido e dogmático dos skins é afinal descendente de Gengis Cão!
«Na Raia da Memória», opinião de Adérito Tavares
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«Lisboa, 18-10-1992. João XV, rei da Ibéria, acompanhado pelo primeiro-ministro Felipe Gonzalez, recebeu esta tarde Jacques Delors, presidente da Comissão Europeia, e os ministros dos Negócios Estrangeiros da CE. Amanhã, o monarca deslocar-se-á a Madrid, para aí inaugurar a Grande Exposição comemorativa do V Centenário do nascimento do príncipe Duarte, o primeiro rei da Ibéria unificada.»
Esta é uma notícia obviamente forjada, que relata acontecimentos que não ocorreram. Mas é também uma notícia que poderia perfeitamente ser verdadeira. Com aqueles ou outros nomes, aqueles ou outros factos. Se é verdade que a história é o que foi e não o que poderia ter sido, nem por isso deixa de ser interessante fazermos história conjectural, isto é, imaginarmos o presente em função de um desvio no rumo dos acontecimentos históricos.
A nossa existência individual é o que é devido a uma ininterrupta sequência de acasos. Existimos porque as circunstâncias juntaram os nossos avós ou os nossos pais. A própria humanidade existe porque, há setenta milhões de anos atrás, houve um meteorito que colidiu com a Terra, o que provocou a extinção dos dinossauros. O Acaso desempenha frequentemente um papel decisivo no devir histórico, chame-se-lhe isso ou outra coisa qualquer. Vejamos um exemplo daquilo a que podemos chamar o papel do Acaso na História.
D. João II, rei de Portugal entre 1481 e 1495, foi um monarca enérgico, activo e empreendedor, grande impulsionador da expansão marítima e construtor do moderno Estado absoluto, considerado por muitos historiadores como um dos melhores governantes que passaram pelas cadeiras do poder no nosso País. Em 1471 casou com a sua prima direita D. Leonor, de quem teve um filho único, o príncipe D. Afonso, nascido em 1475.
Entre 1483 e 1484, D. João II reprimiu com grande violência duas conspirações em que se encontravam envolvidos alguns dos mais poderosos senhores da aristocracia portuguesa, como o duque de Bragança e o duque de Viseu e Beja (primo e cunhado do monarca). Ambos foram executados, o mesmo sucedendo a muitos outros. Segundo parece, o objectivo dos conspiradores era a deposição do rei de Portugal e a unificação com a Espanha dos Reis Católicos.
Os planos de D. João II, todavia, embora similares, divergiam quanto à liderança do processo e aos métodos. Também ele aspirava à unificação ibérica, mas sob a égide de Portugal. Deste modo, em Novembro de 1490, realiza-se o casamento do infante D. Afonso, herdeiro do trono português, com D. Isabel de Castela, filha mais velha e herdeira dos Reis Católicos. Esta união seguia, aliás, o exemplo do próprio casamento dos monarcas espanhóis. Do matrimónio de Fernando, rei de Aragão, e de Isabel, rainha de Leão e Castela, resultou a unificação da Espanha (Navarra viria a ser anexada mais tarde e o reino muçulmano de Granada, último reduto árabe da Península, foi conquistado pelos Reis Católicos em 1492).
O plano era perfeito: os dois grandes Estados ibéricos, ambos empenhados nas descobertas e conquistas além-mar, só tinham a ganhar em se unirem, face aos poderosos vizinhos do Norte, a França e a Inglaterra. O filho de Afonso e Isabel seria monarca do mais poderoso reino da Europa do século XVI, senhor de um colossal império marítimo. O plano era perfeito, de facto. Mas o Acaso não o quis.
Oito meses após o casamento, na manhã de 12 de Julho de 1491, encontrando-se a Corte em Santarém, o príncipe D. Afonso disputava alegremente com D. João de Meneses uma corrida a cavalo, à beira do Tejo. O cavalo caíu, arrastando consigo o cavaleiro. D. Afonso, então apenas com 16 anos, entrou em coma e morreu na noite seguinte.
Esfumava-se assim o grandioso projecto de D. João II. O rei de Portugal nunca se recompôs do profundo desgosto que sofreu. Pouco tempo depois, em 1495, com 40 anos de idade, morreria aquele a quem chamaram Príncipe Perfeito, um rei «de seus povos mui querido e dos grandes mui temido», no dizer de Garcia de Resende. À melancolia que o dominava (hoje chamar-lhe-íamos depressão) juntaram-se perturbações gastrintestinais, que o levariam até às Caldas de Monchique. Exalou o último suspiro em Alvor, em 25 de Outubro de 1495, no meio de uma dramática agonia. A rainha D. Leonor e seu irmão, o futuro rei D. Manuel I, não estavam ao seu lado. Apenas lhe segurava a mão trémula e febril um filho bastardo, D. Jorge, que D. João II ainda planeou fazer seu herdeiro. Ao tempo correram rumores, referidos pelos cronistas, de que o rei teria sido envenenado. Foi também essa a opinião de Oliveira Martins e Braancamp Freire, entre outros historiadores.
O projecto da unificação ibérica, no entanto, não morreu com D. João II. A política de casamentos foi retomada por D. Manuel I que, em 1497, casou com a princesa viúva de D. Afonso, D. Isabel de Castela. No ano seguinte, a jovem rainha deu à luz o futuro rei de toda a Península: D. Miguel da Paz. Mais uma vez, todavia, os Fados se opunham à unificação: a rainha morreu de parto e o pequeno D. Miguel viria também a falecer em 1500. Tragédia sobre tragédia, o Acaso construía e destruía a sua teia, como Penélope.
O novo matrimónio de D. Manuel I ainda seguiu rumo semelhante casou com uma irmã da primeira esposa, D. Maria de Castela, que seria rainha de Portugal por muitos e bons anos e que lhe daria oito filhos. Mas D. Maria era a terceira filha dos Reis Católicos. A segunda, Joana (a Louca) já não estava livre: tinha casado com Filipe o Belo, filho de Maximiliano da Áustria (seriam os pais de Carlos V de Habsburgo, rei da Espanha e da Áustria).
Carlos V, por sua vez, veio a casar com a infanta D. Isabel de Portugal, filha de D. Manuel I. Deste casamento nasceria Filipe II, este sim unificador da Península Ibérica. Todavia, em 1580, a unificação já não era desejada com a mesma intensidade. Sessenta anos depois, em 1640, cada país seguiria o seu destino.
No entanto, se o cavalo de D. Afonso não tivesse caído; ou se o príncipe tombasse nas águas tranquilas do Tejo; ou se a infanta D. Isabel de Castela não tivesse morrido de parto; ou se o principezinho D. Miguel da Paz tivesse sobrevivido, qual teria sido o percurso de Portugal e da Espanha? Seria, muito provavelmente, um percurso histórico comum tão comum como foi o de Leão, Castela, Aragão, Navarra, Galiza, Catalunha, Granada, etc. Mau grado os nacionalismos e os anseios autonomistas.
A notícia com que começámos esta crónica (ou outra semelhante) poderia perfeitamente ser autêntica. Se, se, se…
Nota: Este artigo pretende ser uma resposta a alguns dos comentários a outro dos meus artigos anteriores: «Ventos e casamentos.»
«Na Raia da Memória», opinião de Adérito Tavares
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A Espanha celebrou em 1998 o 4.º Centenário da morte de Filipe II. Por todo o País (e também no estrangeiro) realizaram-se exposições, congressos, seminários, cerimónias públicas, etc. Na verdade, o país vizinho tinha toda a razão em homenagear condignamente a memória de um dos seus melhores monarcas, aquele que conduziu a Espanha à sua época mais gloriosa, o «Siclo del Oro». O império de Filipe II era tão vasto que nunca nele o Sol se punha: estendia-se de Barcelona a Lisboa, da Sicília à Flandres, de Ceuta ao Cabo, de Goa às Filipinas, do México ao Brasil.
E Portugal, do qual ele também foi monarca, que fez? Assobiou para o ar, distraidamente, fingindo nada ser consigo. Fez e disse bravatas nacionalistas, com as quais pensava esconjurar o papão do iberismo. Foi incapaz de lembrar Filipe II sem complexos.
Que sentido tem, nos dias de Schengen e do euro, a hipersensibilidade portuguesa face ao seu poderoso vizinho espanhol? Por que razão, sempre que falamos da invasão do mercado português por produtos espanhóis, gritamos logo «Vêm aí os Filipes»? Que explicações daria Freud para a algazarra mediática que aqui há tempos se escutou, só porque uma senhora acusou o Governo português de fazer fretes aos Espanhóis ao construir o TGV? «Aqui-del-rei, aí está o imperialismo espanhol!», gritaram os pequenos e médios nacionalistas. «Às armas, às armas, contra os castelhanos marchar, marchar!», bramiram os ultranacionalistas.
Disparates! A partilha dos poderes do Estado português começou a fazer-se no dia em que, no Mosteiro dos Jerónimos, foi assinado o Tratado de Adesão à CEE. A partir de então, o nosso destino colectivo passou a estar associado ao da Espanha e ao de mais 25 países. Essa comunidade de destinos é hoje económica, social, cultural e, no futuro, será cada vez mais, também, política. Queiram ou não os nacionalistas de todas as dimensões e os velhos do Restelo de todos os matizes, a União Europeia não volta atrás. O tempo do «orgulhosamente sós» acabou definitivamente.
A União Europeia contém dentro de si, como é óbvio, uma componente de União Ibérica. Mas a União Europeia, simultaneamente, é a nossa melhor defesa contra as tentações hegemónicas castelhanas.
Portanto, exorcisemos de vez os fantasmas iberistas e esqueçamos que «de Espanha nem bom vento nem bom casamento». Este ditado deve ter sido inventado por algum marido régio, dasapontado com o camafeu que lhe impuseram como noiva. Nós, os raianos, que contamos como amigos muitos espanhóis, nunca notámos que de lá soprassem maus ventos. Aliás, eram bem mais frios os da serra da Estrela que os da serra da Xalma. Bem fazem os autarcas da Raia em abrir estradas a ligar as aldeias dos dois lados da fronteira e em geminar povoações. Que nunca as mãos lhes doam!
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