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Quando há algum tempo assisti à apresentação do romance Flores de Jasmim* de João Gabriel Correia, na Livraria Orfeu, em Bruxelas, veio-me à memória o livro de Virgílio Ferreira – A Manhã Submersa**. Depois de ter lido o primeiro de um fôlego, procurei na minha biblioteca o segundo que reli com o entusiasmo da primeira hora.
A minha intuição inicial, na livraria do Joaquim Pinto da Silva, confirmou-se, e o paralelismo pareceu-me evidente.
Se bem que se trata de dois romances de épocas bem diferentes, num contexto nacional totalmente distincto, na minha opinião são talvez os dois únicos romances cuja acção se desenrola, do princípio até ao fim, num seminário.
Virgílio Ferreira descreve o universo concentracionário do Seminário Menor do Fundão, à maneira de Michel Foucault, entre o período da infância até a adolescência. Biográfico ou não, o romance de Virgílio Ferreira descreve-nos uma criança que dificilmente se consegue afirmar numa estrutura rígida, onde não é tolerado o menor desvio, sob o olhar ameaçador dos prefeitos de disciplina e dos professores O castigo físico era a regra frequente e obrigatória para endireitar os rebentos acabados de chegar das remotas aldeias beirãs dos anos quarenta.
Por seu lado, João Gabriel situa o seu romance no fim da década de sessenta, mais precisamente, no ano de 1969, ano em que o homem chegou à lua, em plena era marcelista, , no auge da contestação teológica pós-conciliar e na altura em que Paulo VI, com a encíclica Humanae Vitae, pretendeu editar normas para inculcar na consciência dos católicos a boa maneira de agir no leito conjugal.
Enquanto no livro de Virgilio Ferreira perpassa o medo e o terror, no de João Gabriel Correia a personagem tenta percorrer os caminhos de uma liberdade vigiada e controlada.
Mas João Gabriel Correia segue o seu percurso e distancia-se de Virgílio Ferreira. Em vez de descrever um ambiente fechado e inquisitorial de um seminário menor, aborda um mundo que se está abrindo no caminho da adolescência para a idade adulta, num clima quase tropical, em que os seminaristas descobrem a exuberância da vida e do amor, nos meandros da disciplina imposta pelas regras canónicas de um seminário maior.
Servindo-se da sua antiga competência profissional de psicólogo, João Gabriel Correia entra maravilhosamente na pele da personagem principal – o Júlio – para escalpelizar até à minúcia os primeiros movimentos amorosos do seminarista que descobre o mundo exterior, os outros e, enfim, a sua Guida.
Tal como no jardim das delícias dos primórdios do mundo, uma Eva introduz-se no Seminário Maior do Funchal e a sua presença não podia deixar de imprimir os traços da tentação de um Adão. Vestindo-se do manto de jornalista, a Guida penetra com curiosidade no ambiente do seminário, dando-o a conhecer nas suas reportagens num diário funchalense, onde ocupa um posto de estagiária, acabada de chegar do Continente.
Dois mundos, à partida nitidamente paralelos, acabam por se encontrar, atraídos quer pelo mistério do desconhecido, quer pelo questionamento constante de dois seres curiosos e rebeldes, quer ainda pelo intenso fervilhar de apelos insaciáveis.
Talvez por estar longe há muitos anos da sua terra natal, o autor teve necessidade de evocar os cantos e recantos do Funchal por onde as personagens vão evoluindo, proporcionando-nos assim um alegre deambular por entre ruas, praças, avenidas, jardins, cafés e restaurantes e outros monumentos da ilha.
É pois um romance situado no espaço e no tempo. É a reinvenção de uma história à maneira de Romeu e Julieta, com um fundo de proibição de normas sociais, mas também por isso mais aliciante e mais apetitoso.
Desconheço quanto tempo o autor demorou a escrever este romance. Nos encantos amorosos das mil e uma noites, João Gabriel Correia teve certamente manifesta influência do mundo árabe, aquando da sua estadia em Argel, na Delegação da União Europeia. Porém o leitor, imbuído num sôfrego enredo, não consegue despegar-se da sua leitura. As apropriadas descrições da ilha, as excelentes caracterizações das personagens muito bem recriadas, o brilhante ritmo cadenciado da linguagem dificilmente nos impedem de despegar os olhos do livro que se lê dum trago, apesar das suas 380 páginas.
Pela profundidade e beleza desta primeira obra, que muito honra a editora Orfeu, estou plenamente convencido que João Gabriel Correia, agora na Delegação da União Europeia no Haiti, (coragem por aí!) encontrará inspiração para nos brindar com outros bons escritos nos próximos tempos.
* Flores de Jasmim, de João Gabriel Correia, ed. Orfeu, Bruxelas, 2011
** Manhã Submersa, de Virgílio Ferreira, (1953), ed. Bertrand, Lisboa, 2000.
Joaquim Tenreira Martins
Pessoa amiga colocou-me entre as mãos um excelente livro de aventuras de meados do século dezanove e que eu não descobriria certamente por mim próprio – «Les Naufragés de Auckland», de François Edouard Raynal*.
A leitura deste livro reportou-me aos meus bons tempos de jovem escuteiro, irmanado num ambiente de constante contacto com a natureza, onde tinha que se fazer apelo ao manancial de astúcias para viver um ideal fora da civilização e resistir ao conforto material envolvente.
Sem querer denegrir a imaginação inesgotável de Jules Verne, consta-se que este mesmo autor se teria inspirado neste livro para escrever a Ilha Misteriosa que data de 1875, isto é cinco anos depois.
O autor conta-nos uma robinsanada que durou vinte meses nas inóspitas ilhas de Auckland, ao sul da Nova Zelândia, no seguimento do naufrágio do navio Grafton, na noite de dia 3 de Janeiro de 1864. Cinco homens, todos de nacionalidades diferentes, e entre os quais se encontrava um português, originário dos Açores, tinham partido na Austrália (Sidney) à procura de minas de ouro na ilha de Campbell. De regresso, após missão infrutuosa, o navio encalhou e ficou destruído num fiorde das ilhas de Auckland, fustigado pelos ventos ciclópicos e pelo rigor do tempo austral.
Nestas pequenas ilhas, perto da Antártida, longe da estrada marítima que liga a Austrália à Europa através do Cabo Horn, a primeira questão, brutalmente elementar, que se coloca a estes homens, quase todos com menos de trinta anos, é como sobreviver? Se através da caça de focas e lobos marinhos poderiam assegurar razoavelmente o sustento quotidiano, outra questão se colocaria dentro em breve: como escapar a esta horrível prisão natural?
Num estado de completa miséria, será a confiança e o aproveitamento das qualidades de uns e dos outros que os irão salvar, ao formarem entre si uma pequena mas verdadeira comunidade.
O autor do livro, François Reynal, impõe-se pouco a pouco como o líder do grupo, não só pelas suas qualidades humanas, mas também pelos seus conhecimentos que adquiriu ao longo da vida.
Sem fósforos nem isqueiros, tiveram de proceder como os primitivos à difícil criação do lume e, quais vestais da antiga Roma, tinham de vigiar de dia e de noite para o não deixarem apagar.
A sua primeira realização foi ter conseguido convencer o grupo a construir uma ampla cabana de madeira de pinhos austrais, todos encarquilhados, mas solidamente amarrada ao chão para afrontar as horrendas tempestades que sopravam frequentemente da Antártida. A construção de uma sólida chaminé no interior da cabana só foi possível devido aos conhecimentos de química do autor do livro, François Reynal, que conseguiu fazer cimento, misturando a cal, obtida através da queima de conchas com areia fina que encontrava à beira do mar. A necessidade e a engenhosidade também o levaram a fabricar sabão para não perderem a auto-estima e respeito pelas suas próprias imagens. A água obtida da filtragem das cinzas de ervas marinhas e conchas era uma mistura de soda, potássio e cal, que misturada com a gordura de foca obtinha um razoável sabão bem apreciado pelos prisioneiros da ilhas de Auckland. As peles de lobos e de focas tiveram de substituir as roupas apodrecidas que lhes caiam aos bocados. Também aqui François Reynal foi inventivo ao testar o tanino de certas árvores que lhe serviu para fabricar roupas, cobertores e até sapatos com pele de focas. Um exemplar de sapatos encontra-se na Biblioteca do Estado de Vitória, em Melburno. Até cerveja com uma elevada taxa de álcool conseguiu fazer, mas cedo percebeu que não era esta a bebida indicada para pessoas desesperadas e angustiadas ao extremo. O álcool era mau companheiro e vinha perturbar o ambiente de chumbo em que pareciam estar condenados. Decidiram também queimar um baralho de cartas porque em vez de se distraírem com o jogo, perder ou ganhar era levado muito a sério, o que provocava constantes rixas entre eles.
A este grupo de homens não lhe restava outra esperança senão colocarem-se nas mãos de Deus que imploravam todas as noites, através da leitura da Bíblia que conseguiram salvar do navio Grafton.
Depois de tantas noites de desespero, o habilidoso Reynal propôs uma solução de salvação aos seus colegas: ampliar o pequeno bote de salvação recuperado aquando do naufrágio. Foi um trabalho de vários meses. Aqui a imaginação foi rainha. Reynal concebeu uma forja com um fole de peles de focas, fabricou uma bigorna para poder bater o ferro com o metal que recuperaram do Grafton, e os companheiros faziam carvão de noite e de dia. Foi necessário fazer centenas de pregos, barras de metal, machados, serras e um sem número de instrumentos para colocar a parte nova ao bote existente.
Depois do barco construído, só havia lotação para três. Os outros dois ficariam à espera de serem socorridos. Movidos a velas e a remos, a muito custo conseguiram chegar ao sul da Nova Zelândia onde foram acolhidos quase como heróis. Trataram logo de resgatar os dois companheiros que tinham ficado na ilha.
O português, que o autor designa como sendo Henry Forgès, (certamente que o seu nome teria sido adaptado) desempenhou um papel muito importante para levantar o moral deste grupo. Embarcou como cozinheiro e nesta ilha de homens desesperados assumiu a sua profissão até ao fim. Enquanto os outros iam à procura de lenha, de ervas, de crustáceos ou até de navios que poderiam avistar, o português ficava sempre à volta do lume, tentando variar a ementa de foca com carne e de carne com foca. Foi um elemento essencial no sustento quotidiano destes homens. Conseguiu fazer maravilhas na cozinha não consentindo que este grupo morresse de fome.
Henry Forgès saiu dos Açores aos 13 anos de idade, tendo trabalhado como grumete num baleeiro americano durante vários anos. Mas quando caiu doente, uma doença que lhe deformava o corpo, talvez uma espécie de lepra, os companheiros de trabalho maltrataram-no e repudiaram-no, horrorizados com o seu aspecto. Pediu então ao capitão do navio para deixá-lo numa das ilhas da Polinésia onde viveu com os nativos que praticavam ainda a antropofagia. Cansado desta vida, conseguiu embarcar num navio que por ali atracou e no qual serviu como ajudante de cozinha. Algum tempo depois, fixou-se em Sidney onde foi contratado para esta malograda expedição.
* Éditions de la Table Ronde, Paris, 2011. Este livro foi publicado pela primeira vez em 1870.
«Leituras», crónica literária de Joaquim Tenreira Martins
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