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Nos dias de hoje a generalidade das pessoas não lidam habitualmente com animais, tirando as que, de capricho, detêm em casa cães e gatos, que cuidam como se de seres humanos se tratassem, atentando contra os seus direitos.
Vem daqui que a maior parte dos jovens de agora nada sabe sobre animais. E digo isto porque há tempos, ao assistir à transmissão televisiva de uma tourada à portuguesa, em que uma pobre vaca de cabresto caiu extenuada, vi um moço de forcados esforçar-se por ajudar o animal a levantar-se puxando-lhe pelo colar e erguendo-lhe a cabeça. O rapaz, ao ser moço forcado deveria perceber algo mais sobre animais, mas sucede que nada entendia porque estará afastado da vida do campo. É forcado por mero gosto pelos actos de valentia, sendo ao mesmo tempo um ignorante acerca da vida dos animais que enfrenta corajosamente.
Pois no meu tempo de garoto recebi na instrução escolar, como os demais condiscípulos, os ensinamentos básicos para lidar com os animais, em complemento portanto ao que se aprendia nos livros escolares. E esses ensinamentos foram-nos muito úteis, pois na maior parte éramos filhos de lavradores.
Rezava assim a cartilha do professor Frederico, de Vila Boa, que ainda hoje guardo numa gaveta entre outros papéis antigos:
«Animais caídos na via pública – instruções.
Quando qualquer animal caia na via pública e se não levante imediatamente por cansaço deve dar-se algum tempo para que descanse e recobre as forças. Se mesmo assim não se conseguir erguer, deverá ser auxiliado.
Tratando-se de animal bovino, tenha-se em atenção que para se levantar o mesmo eleva primeiro a parte detrás do corpo e membros posteriores e, só depois, os membros anteriores e a parte de diante, de modo que, por esse facto, o auxílio a prestar para o levantar consiste unicamente em segurar a cauda e elevá-la ao mesmo tempo que a garupa.
Tratando-se de animal solípede (cavalo, burro ou muar), tenha-se em atenção que quando se levanta eleva primeiramente a cabeça e o pescoço, para estender para a frente os membros anteriores e levar a parte de diante do corpo, depois do que eleva a parte de trás e endireita os membros posteriores. Assim sendo, o auxilio a prestar a um solípede para se empinar deve ser levantar-lhe a cabeça e o pescoço e estender-lhe, se caso for, os membros anteriores para diante, animando-o com a voz a fazer o movimento. Caso o animal continue a não conseguir levantar-se, então passa-se por debaixo do cilhadouro um pano ou uma tábua e, ao mesmo tempo que se levanta a cabeça, ergue-se suavemente o peito do animal.»
Nas nossas aldeias do interior já pouco se vêem os animais de tiro, que antigamente existiam para ajudar as pessoas nos trabalhos agrícolas, nos transportes de mercadorias e noutras tarefas. A modernidade afastou as pessoas do campo e atirou-as para a cidade, fazendo com que as gerações posteriores nada percebam da vida do campo e do modo como se devem tratar dos animais.
«Tornadoiro», crónica de Ventura Reis
Havia antanho muita sensibilidade para com os animais nossos amigos, que eram verdadeiramente bem tratados e protegidos dos perigos a que estavam sujeitos, ao avesso do que hoje sucede, em que maltratam os animais sem dó nem piedade.
O maior maldade que fazem aos animais acontece com os cães e gatos que muita gente aprisiona em casa, em apartamentos fechados, tratando-os caprichosamente, como se de pessoas se tratassem.
Será também bom que cada um imagine o sofrimento dos frangos nos aviários industriais, habitando em autênticas estufas onde comem rações hormonais para crescerem rapidamente, sem direito a um fio de luz natural. Logo que estejam devidamente insuflados são abatidos por choque eléctrico ou por degolação. O mesmo se passa com o gado porcino, ovino e vacum, que igualmente nasce e cresce em armazéns, onde a humanidade dos tratadores não existe.
Pois meus caros, isso não se passava antigamente, no tempo em que o lavrador vivia com os animais que criava, pois tratava-os com a devida humanidade. E ai de quem o não fizesse, porque as leis vigentes eram duras e a actuação das autoridades implacável para com os prevaricadores.
Vejamos o que rezava o decreto nº 5.864, de 12 de Junho de 1919, que se manteve em vigor até à década de 1970. Aquele saudoso diploma legal proibia de forma expressa as situações de violência ou de outros maus-tratos para com os animais.
«Hei por bem decretar que, entre outros, se devam considerar como violentos os seguintes actos, cuja punição deve ser promovida pelos agentes do Ministério Público». E enumerava esses actos criminosos: espancar animais, oprimi-los com trabalhos excessivos, obrigar ao trabalho animais doentes, pretender obrigar a levantá-los à custa de pancada, amarrar aos cães e gatos objectos que os assustem, apedrejar animais, assulá-los uns contra os outros, abandonar animais velhos, doentes ou recém-nascidos, cegar aves para cantarem.
Dez anos depois, por um decreto de 1929, o nº 16.637, de 16 de Março, estabeleceram-se medidas máximas para os ferrões, ou aguilhões, das varas dos lavradores, para que não ferissem os animais. «O bico do aguilhão terá forma cónica e o seu cumprimento não deverá exceder 0,004 m e a sua espessura, na base, não poderá ser superior a 0,002 m; o topo da vara deverá ser plano e terá o diâmetro mínimo de 0,01 m», dizia aquele diploma legal, que passou a ser o terror dos lavradores, porque muitos pensavam que podiam aguilhoar ferozmente os animais de tiro. A multa importava em 100 escudos e, na reincidência, ia para o dobro.
O meu pai, que Deus tenha à mão direita, porque era um santo homem, gostava, como os mais lavradores, de ter bons ferrões, ainda que raramente castigasse com eles as duas vacas de trabalho que possuía. Mas os guardas-republicanos daquele tempo atendiam a tudo e era um perigo passar por eles com aguilhões que excedessem as medidas legais. Sempre que apareciam praticávamos o «truque» que o nosso pai nos ensinara, batendo com a ponta da aguilhada na calçada ou numa pedra para que o ferrão ficasse mais curto.
Aqui se prova como as autoridades andavam atentas aos direitos dos animais, o que hoje não sucede, pois são imensos os cães e gatos que estão aprisionados e torturados em casa de gente caprichosa.
«Tornadoiro», crónica de Ventura Reis
Foi há pouco tempo criado em Portugal o chamado «apadrinhamento civil», que basicamente pretende que sejam perfilhadas crianças em risco, sem que se recorra à estafada figura da adopção. Penso que, de asneira em asneira, esta sociedade se degrada, porque a tradicional figura do padrinho há muito que está em crise e não me parece que esta nova medida a irá reabilitar.
No meu tempo de mocidade o padrinho tinha no seio da família um papel tutelar e era merecedor de um respeito absoluto. O mais importante era o padrinho do baptismo, que tinha responsabilidades na educação dos afilhados, mas também havia os padrinhos do crisma e do casamento, que não deixavam de ter a sua importância.
O meu tio Joaquim Reis, o irmão mais velho do meu pai, foi por este escolhido para nos apadrinhar. E todos os irmãos o tivemos como padrinho de baptismo. Sempre lhe chamámos «padrinho» e nunca tio, ficando assim diferenciado dos restantes irmãos de meu pai e de minha mãe.
Cabia ao padrinho acompanhar a educação dos afilhados, o que ia muito para além das obrigações de índole religiosa. O padrinho estava sempre a par de tudo o que acontecia com os afilhados e se algo corria mal, era a ele que os pais recorriam em primeira instância.
No Sabugal antigo havia mesmo um ritual associado à responsabilidade dos padrinhos, que era ofertar, no dia dos Santos, uma bola de azeite, também chamado santoro, a cada um dos afilhados. E ai do padrinho que não cumprisse este acto simbólico, que significava o compromisso e a atenção para com os afilhados.
Mas eis que vieram os tempos da modernidade e da irresponsabilidade, onde ser padrinho já nada significa. Hoje é fino escolher padrinhos diferentes para cada um dos filhos, e o papel que lhes está reservado resume-se a estarem presentes na cerimónia festiva e darem um bom presente aos afilhados. A partir deste acto, o padrinho fica simplesmente esquecido, pois não lhe está reservado qualquer papel na educação e no acompanhamento dos afilhados.
Esta realidade dos tempos de agora, leva-me a considerar anedótico que se tenha legislado criando a figura do «padrinho civil» para as funções de acolhedor de menores em risco. Segundo a lei, os pais têm de consentir o «apadrinhamento» e mantêm os direitos relativamente aos filhos não podendo ser privados de os visitar e contactar. Os pais devem ainda conhecer os padrinhos (porque não são eles que os escolhem), o seu local de residência e ser por estes informados sobre a progressão escolar, profissional ou de saúde dos filhos. Até se diz na lei que têm direito a receber fotografias e ainda a visitá-los «nas condições fixadas no compromisso».
O que eu pergunto é quem está preparado para fazer este papel de padrinho, quando tal figura deixou de existir naturalmente, com o evoluir dos tempos e com a vitória da irresponsabilidade sobre o compromisso de antigamente?
O mundo está virado do avesso e esta é mais uma medida de desgraça, condenada ao fracasso.
«Tornadoiro», crónica de Ventura Reis
Vivemos tempos em que o ultraje ao pudor e à moral pública são constantes, sem que contudo alguém se digne por cobro a tão perfídias aleivosidades. Noutro tempo estes excessos não seriam possíveis, porque as leis eram rigorosas e os correctivos implacáveis.
Não se dão dois passos na via pública sem que nos cruzemos com extravagantes pares de namorados praticando marranadas. Se o olhar nos vai para uma banca de jornais e começamos a ler as manchetes do dia, logo se nos metem nos olhos as vergonhosas capas de revistas, onde rabos e seios de mulheres se expõem indecentemente. Se nos sentamos num bar ou esplanada para tomar uma chávena de chá, não tarda que nos cheguem as conversas indecentes dos jovens, que usam em cada frase meia dúzia de palavras obscenas. E se optarmos por ficar em casa a ver a televisão, deparamo-nos sistematicamente com imagens de conteúdo erótico ou sexual que fariam corar o Mafarrico.
Tenho que recordar os meus tempos de mocidade para explicar, a quem tem a paciência de ler estas linhas, o que era uma sociedade às direitas, onde as regras eram justas e rigorosas, impondo uma convivência social livre dos desmandos que hoje infectam as relações humanas.
Comecemos pelas punições para quem praticasse os atrevimentos que a lei proibia. Se a ofensa à moral pública ocorresse por uso de palavras impróprias o prevaricador sujeitava-se a pena de prisão até três meses e multa. Se o ultraje fosse por escrito ou por intermédio de desenhos, a pena era elevada para seis meses.
Claro que as palavras, escritos ou desenhos tinham que ser obscenos e contrários ao pudor e à moral universal para que houvesse crime. Expressões que originassem um simples inconveniente ou indignação a quem as ouvisse não se enquadravam no crime.
Se as ofensas fossem praticadas por intermédio da imprensa, o que nos dias de hoje é manifestamente comum, a legislação considerava que se praticava o crime de abuso de liberdade de imprensa.
Ainda recordo um caso que sucedeu no Sabugal, nos anos de 1950, quando um lavrador da vila, o Torres, desavindo com a mulher, desatou a tratá-la mal em plena rua, perante quem passava, usando impropérios e ditos torpes. Dir-se-ia que era mais um caso entre marido em mulher, o que naquele casal já constituía hábito, mas o facto dos ditos serem proferidos em público e ultrajarem quem os ouvia, tornaram o caso diferente. Passando nesse momento o então delegado do Procurador Público, este intimou de imediato o Torres a identificar-se e a comparecer no Tribunal, onde lhe moveu um processo por ultraje ao pudor público, respondendo depois em audiência e sendo condenado.
Longe vão os tempos em que a lei era lei e em que as instituições reguladoras das relações sociais funcionavam plenamente.
«Tornadoiro», crónica de Ventura Reis
Todos os anos, no tempo do calor, a Nação é atormentada pelos fogos, o que sucede por culpa do abandono dos campos e da leveza das leis penais vigentes. No meu tempo de mocidade praticamente não havia incêndios, por ser outra a responsabilidade das pessoas e por haver leis severas e disciplinadoras.
Os campos, por falta de gente que os cultive, tornaram-se em matagal impenetrável, onde apenas as chamas são capazes de lavrar. Com o tempo tórrido do verão basta o riscar de um fósforo ou o abandono de uma beata de cigarro para que o mato seco se incandesça e arda sem parar.
Todos sabem que tanto é criminoso o que apicha o fogo como aquele que derrama o combustível, pelo que se torna difícil, nos tempos de agora, atribuir culpas. O erro foi deixarem-se as aldeias e os campos abandonados, sem gente e, por via disso, sem lavoura. O matagal invadiu tudo.
Há ainda a ter em conta que quase se despenalizou o acto de fogo posto, que ficou reduzido a uma simples pena de prisão, por poucos anos, e com possibilidade de pena suspensa. Ora isto não mete medo ao incendiário, que a todo o instante pega fogo.
Antigamente tudo piava fino, não havendo espaço para brincadeiras. Era o tempo da responsabilidade, em que se proibia o uso de acendedores ou de isqueiros. Para tal uso era preciso possuir uma licença fiscal, que apenas era emitida a quem comprovasse ser suficientemente responsável para manejar tais instrumentos. Os infractores, para além de sujeitos a uma multa de 250 escudos, perdiam os isqueiros a favor da Fazenda Pública. Porém se o prevaricador fosse funcionário do Estado, a multa seria elevada ao dobro, para além de ser sujeito a processo disciplinar. Isto segundo o decreto-lei nº.32.834, de 7 de Janeiro de 1943, que ainda tive oportunidade de estudar e aplicar quando entrei nas Finanças, pois era da competência das secções de finanças a instrução dos processos de transgressão.
Outra forma de contenção da prática dos fogos postos estava no Código Penal então vigente, que não era nada benevolente para com aquele que voluntariamente pusesse fogo. O incendiário sujeitava-se a oito anos de prisão maior celular, seguida de degredo por 12 anos, ou, em alternativa, à pena fixa de degredo por 25 anos.
Nesse tempo de bom senso não havia, nem de perto nem de longe, a grandeza de meios que hoje existem para combater os fogos, mas o Código Administrativo definia as competências das autoridades policiais e dos comandantes dos corpos de bombeiros para enfrentarem os incêndios. Em caso de necessidade podiam requisitar directamente os serviços de quaisquer homens válidos e as viaturas indispensáveis para o socorro de vidas e bens. Igualmente podiam utilizar quaisquer serventias para acesso aos locais em perigo e ordenar destruições ou demolições nos prédios contíguos aos sinistrados.
«Tornadoiro», crónica de Ventura Reis
Os mais atentos terão captado nos diferentes serviços noticiosos que o Instituto Português do Sangue tem em curso uma campanha de dádivas, designada «Dador-Salvador», tendo em vista aumentar as colheitas de sangue.
Bem pode a campanha andar pela comunicação social, tentando sensibilizar os portugueses para a dádiva benévola de sangue, que nada conseguirá comparando com as dádivas de outro tempo em que o dador era verdadeiramente compensado e louvado pelo seu gesto em favor dos outros.
O senhor Ministro da Saúde deu o exemplo, no passado dia 9 de Agosto, em Carcavelos, dando sangue e apelando para que as pessoas lhe sigam o exemplo. Só que o mesmo senhor ministro quer acabar com as isenções de taxas moderadoras para os dadores, dizendo que não é isso que faz as pessoas darem o seu sangue. Eu julgo que este homem está desfasado da realidade, pois acabar com a regalia que resta a quem dá sangue poderá colocar em causa a própria campanha em que ele mesmo se envolveu.
O problema actual da falta de dadores prende-se com o facto de se ter acabado com os incentivos para isso. E eu sei muito bem do que falo, porque fui dador durante uma boa parte da minha vida, deixando apenas de o ser quando o correr dos anos me conduziu à velhice.
Mas no meu tempo as dádivas eram compensadas, nomeadamente com dias de dispensa ao trabalho. Como funcionário público, a trabalhar numa repartição de finanças, ainda beneficiei dessas compensações e até recebi medalhas, diplomas e louvores de que me orgulho, pois ganhei-os com a minha generosidade em favor dos outros.
Nas forças armadas e nas forças policiais a compensação pela dádiva de sangue era um preceito seguido com todo o rigor, tendo em consideração a importância de fomentar a prática da dádiva entre militares e polícias, que assim prestariam um serviço essencial à sociedade.
No meu tempo de garoto ainda recordo que se usava a prática de se sangrarem as pessoas quando tinham maleita ruim ou andavam demasiado extenuadas. Acreditava-se que sangrando as pessoas retirava-se-lhe o sangue nocivo, possibilitando que o mesmo sangue se renovasse, ganhando assim uma melhor qualidade. Falo nisto porque nós, os que viemos das aldeias do interior para Lisboa, encarávamos a dádiva de sangue como algo que até nos ajudaria a renovar a seiva que nos corria nas veias e artérias, e fazíamo-lo com uma perna às costas. Ora se a isto se juntava o direito a dias de dispensa no trabalho, então a disponibilidade era ainda maior.
Recordo uma circular que existia na Policia de Segurança Pública, em 1948, definindo os critérios de compensação aos agentes dadores:
«Os agentes chamados aos hospitais para voluntariamente, e com autorização do Comando, darem sangue, devem fazer-se acompanhar no seu regresso de uma nota sobre a sua quantidade.
Os mesmos agentes serão louvados em Ordem de Serviço, receberão a medalha de agradecimento da Cruz Vermelha e serão dispensados do serviço conforme a tabela seguinte:
10 a 50 c.c. – 4 a 5 dias,
50 a 100 c.c. – 5 a 10 dias,
100 a 250 c.c. – 10 a 15 dias,
250 a 500 c.c. – 15 a 20 dias.»
O espírito de ajuda entre as pessoas e as regalias atribuídas aos dadores garantiam que noutro tempo se ultrapassassem com a maior das facilidades as faltas de sangue nos hospitais.
«Tornadoiro», crónica de Ventura Reis
Embora a ciência médica tenha evoluído muito nas últimas décadas, a verdade que regrediu em igual proporção a responsabilidade da prática da medicina, o que é perfeitamente visível na simples forma como são emitidas as prescrições terapêuticas.
Há dias fui a uma consulta médica no Centro de Saúde da minha área de residência. O facultativo que me observou e sobretudo ouviu os meus queixumes, entendeu passar-me receita com alguns medicamentos.
Já na farmácia, a diligente funcionária que me atendeu tentou compreender os rabiscos da prescrição, mas teve de recorrer a uma colega, que também nada decifrou. Quando me apercebi, já todos os funcionários da farmácia estavam de roda do papel, dando palpites acerca dos gatafunhos da receita, mas sem que chegassem ao necessário consenso. Uma tentativa de contacto com o Centro de Saúde também foi em vão, pelo que, educadamente, me solicitaram que lá retornasse e solicitasse uma nova receita, por aquela ser absolutamente ilegível.
Voltei ao Centro de Saúde, mas o médico saíra e só voltaria a dar consultas daí a dois dias. A minha sugestão de alguém falar com outro médico não pegou e, face à postura irredutível dos funcionários, tive de ali voltar ao fim de dois dias para o médico, a contragosto, e vociferando contra os funcionários da farmácia, emitir novo receituário, com arabescos algo melhor desenhados do que aqueles que o papel anterior continha.
Esta irresponsabilidade do médico não poderia passar-se nos tempos antigos, quando a lucidez boiava à tona da água e todos cumpriam as regras estipuladas. Durante muitos anos vigorou o decreto-lei n.º 32.171, de 29 de Julho de 1942, cujo artigo 11º estipulava: «As receitas serão redigidas em língua portuguesa, usando-se sempre que as circunstâncias o permitam folhas apropriadas em que se contenham impressos o nome e morada do médico que as firme, sem emprego de abreviatura, com as doses expressas por extenso e de harmonia com o sistema decimal, datadas, e devendo o seu teor ser escrito a tinta e com letra bem legível, de forma a serem facilmente entendidas pelos farmacêuticos. Quando se prescreva dose menos usual deve esta assinalar-se, quer sublinhando as palavras que a indicarem, quer escrevendo-as não só por extenso, mas também por algarismos.»
E lá vinha a disposição sancionatória, para que a norma tivesse eficácia: «A infracção ao disposto é punida com multa de 100 a 500 escudos».
No Sabugal recordo dois grandes clínicos, que ali tinham consultório, os doutores Francisco Maria Manso e Raul Baptista Monteiro, cuja letra aposta nas prescrições era cuidadosamente desenhada, tal qual o professor Frederico, de Vila Boa, a ensinara nos bancos da escola, para que todos a compreendessem.
«Tornadoiro», crónica de Ventura Reis
Viajamos pelas estradas de Portugal, aliás geralmente de muito boa qualidade, e assustamo-nos com a velocidade estonteante com que alguns carros ligeiros circulam e com as manobras perigosíssimas que muitos condutores impunemente praticam, fazendo perigar a segurança de todos os que usam a via pública.
Estamos em tempos propícios ao desrespeito pelas regras, ao desafio à autoridade e à desconsideração pelos bons conselhos. Por mais propaganda e reclames que se façam na televisão, na telefonia e nos jornais em favor do bom comportamento de quem guia automóveis, o certo é que os acidentes não param de aumentar, continuando a marcar tragicamente a sociedade.
Por maiores que sejam as multas, os avisos de atenção e a intolerância para com os prevaricadores, o certo é que continua a haver quem faça orelhas moucas, praticando todo o género de patifarias. E o grave é que na maior parte dos casos os acidentes são trágicos para quem vai no seu sossego e com as suas cautelas na estrada, por não estar livre de que um tresloucado se lhe atravesse no caminho e lhe provoque a desgraça.
Tudo o que circula na via pública deveria ser fiscalizado com rigor, seja carroça de tracção animal, velocípede ou até o simples caminhante que vai em passeio ou em peregrinação. Aqui as autoridades não deveriam ter mãos a medir.
Noutro tempo era comum ver nas estradas os guardas caminhando em patrulha, seguindo um em cada berma, sempre atentos às movimentações dos veículos. Quando qualquer motorista se apercebia da presença dos guardas, tomava postura ao volante, corrigia a velocidade, mantinha-se à mão, e sentia um calafrio enquanto passava pelas autoridades. Seguia depois com cuidados redobrados, não fosse deparar-se com outra patrulha, porque antigamente as estradas e os caminhos andavam pejados delas.
O rigor dos tempos antigos era até para com a circulação de carroças puxadas por animais. O Código de Viação e Transito era rigoroso na definição de regras para a circulação dessa classe de veículos e a sua fiscalização era especialmente exigente. Como curiosidade refiro algumas regras desse código de viação antigo referente às carroças que circulavam na estrada.
Carroça detectada a circular sem estar registada era apreendida e o proprietário pagaria multa de 100 escudos. A falta de colocação da chapa com o número de registo na Câmara Municipal era motivo para multa de 25 escudos, no mesmo incorrendo o carroceiro que não tivesse equipado o seu veículo com travões ou o que, estando incorporado num comboio de carroças, não guardasse distância superior a 25r metros do veículo da frente. Caso a carroça tivesse largura superior ao legalmente permitido, à mesma era aplicada multa de 100 escudos. Se a pressão sobre o solo fosse superior a 150 Kg por centímetro de largura do aro das rodas, a multa era de 50 escudos, ao mesmo se sujeitando o desleixado que deixasse arrastar a carga pelo solo.
O rigor das leis e o empenho de antigamente na fiscalização do seu cumprimento faziam com que as mesmas fossem respeitadas, assim se evitando a desregulação e a desgraça que hoje impera.
«Tornadoiro», crónica de Ventura Reis
Segundo uma teoria antiga, a idade ordinária da vida humana pode dividir-se em escalões, de seis em seis anos, dando a cada um desses períodos uma designação.
Falando de velhice, estado em que eu me encontro há abundante tempo, diremos que o começo desse estádio da vida se inicia aos 57 anos.
Dos 57 aos 63 anos é a chamada «fase inicial da velhice». A mesma classificação mantemos no escalão seguinte, que vai dos 64 aos 70 anos, designando-o porém de «consolidação da velhice». No escalão dos 71 aos 77, falamos já em «decrepitude». Vem depois, dos 78 aos 84, a fase da «caducidade». A partir daqui, dos 85 aos 91, o ser humano está na «idade de favor». Dos 91 aos 98 está na «idade de maravilha». Finalmente, dos 99 aos 105 atinge na «idade de prodígio». A partir deste passo não há classificação, porque a pessoa já cá anda manifestamente a mais.
Da minha parte, com muito de vida vivida, encontro-me a iniciar a fase da caducidade. Neste estádio da vida pode o velhote, em certos e determinados casos, ser equiparado ao menino, ou até ao demente, se a razão já de todo não sobrevier, o que julgo não ser o meu caso.
Contudo, tirando essas ocorrências de diminuição de faculdades mentais, o geral dos anciãos deve ser considerado como gente com experiência de vida, portanto apta a prestar bom conselho. Uma vida longa observando o mundo e interpretando o comportamento humano, leva os velhos, mesmo na fase da caducidade e até na idade de favor, a oferecer alto préstimo à sociedade, proferindo conselhos filhos da experiência de vida.
Em muitas sociedades antigas prevalecia o conselho dos anciãos, ou o senado, formados por gente de prestígio e de abundante idade e experiência. Ao ímpeto e fogosidade da mocidade opõe-se a cautela e a lucidez da velhice, para que se forme uma boa e prestimosa sociedade.
Estamos porém num tempo em que ninguém olha ao saber da gente antiga. A prosápia das novas gerações levou a que os velhos fossem atirados para um canto, que a maior parte das vezes corresponde ao asilo ou auspicio a que solenemente chamam lar de idosos. Os velhos, que poderiam ainda estar a dar bons conselhos, são atirados para o depósito, onde voltam a ser tratados como garotos irresponsáveis, a quem de querem dar a mão para lhes ensinarem o caminho o tomar.
«Tornadoiro», crónica de Ventura Reis
Os problemas com menores mal comportados e perigosos são um dos grandes problemas das sociedades de hoje, em que o respeito e a boa educação deixaram de existir e em que pais, tutores e educadores se demitiram de responsabilidades.
A mocidade é quem hoje manda em casa e na rua, ridicularizando os adultos, a quem dominou por completo. A autoridade de pais, avós ou padrinhos, antes tão vincada e respeitada, está pura e simplesmente extinta. Este é um sinal dos tempos, porventura o pior com que a sociedade se depara. Que será do futuro da humanidade, se os princípios e os valores estão invertidos e ninguém age para acudir à maleita social que grassa a olhos vistos?
Já se viu que os jovens têm comportamentos arriscados e até criminosos, contra os quais a própria policia não tem autoridade para agir. Casos recentes, como os de agressões violentas entre adolescentes, de injúrias às autoridades, violência para com professores ou comportamentos radicais para produção de filmagens exibicionistas, são o exemplo acabado do estado a que as coisas chegaram. A questão é que é impossível agir para contrariar esses comportamentos, porque a irresponsabilidade fez com que o nosso normativo legal nada contenha que possa ser eficazmente usado.
E lá voltamos ao saudoso tempo antigo, em que tudo estava previsto e nada andava a descuido.
Aquando da minha mocidade, o Código Civil em vigor determinava que a menoridade se mantinha enquanto a pessoa não perfizesse 21 anos de idade, e referia expressamente que os menores não emancipados tinham por domicílio o do pai ou da mãe, ou na falta destes o do tutor, a cuja autoridade se achavam sujeitos.
Havia ainda naquele tempo o conceito de «menor em perigo moral», que era aquele que não tinha domicilio certo por não ter pais, tutor ou parente que o tomasse a seu cuidado, ou que, tendo-os, os mesmos desprezassem gravemente os seus deveres de vigiar e educar. Se um pai fosse conhecido como sendo habitualmente ocioso, mendigo, vadio, alcoólico, gatuno, rufião, ou outros entes morais, os seus filhos eram igualmente considerados como menores em perigo moral.
Os menores em perigo moral eram entregues aos serviços jurisdicionais e tutelares de menores, as chamadas «tutorias», que existiam nas várias comarcas, e que, após examinarem os casos, encaminhavam os moços para famílias ou para internatos ou semi-internatos de educação.
O mesmo sucedia com os menores maltratados, cujos pais eram chamados à presença do presidente da tutoria, que os interrogava e lhes podia retirar os filhos, internando-os em refúgio até que houvesse condições para o seu regresso ao respectivo lar.
Também não havia passividade perante menores refractários, ociosos, vadios ou libertinos, casos em que as tutorias igualmente intervinham. Podiam devolvê-los aos pais, que eram intimados a cuidar dos mesmos com rigor, mas também os podiam colocar sob a medida de liberdade vigiada ou, nos casos mais graves, interná-los em escolas de reforma do Estado.
Quanto a menores criminosos, aí a mão era pesada. Até aos nove anos não incorriam em penas, sento tomadas medidas para a sua entrega à boa vigilância dos pais ou, em caso limite, à de instituições de assistência. Mas se o menor criminoso tivesse idade superior poderia ser internado compulsivamente em estabelecimentos pertencentes à Direcção Geral de Assistência ou em institutos correccionais.
Havia porém o cuidado, num sinal de grande sensatez e responsabilidade, de nunca divulgar publicamente estes casos, pois as pessoas, e especialmente os jornais, estavam impedidos de os narrar, sob pena de condenação em multa ou em prisão correccional. Embora actuando com dureza, protegia-se o menor contra as «bocas do mundo», pois todo o moço em perigo moral era em potência recuperável, e não podia ficar negativamente marcado para o futuro.
«Tornadoiro», crónica de Ventura Reis
Pegou moda o uso de expressões linguísticas estrangeiras para designar coisas nacionais. Em restaurantes chega a haver cardápios escritos em Inglês, que se tornou a língua dominante, relegando o Português para segundo plano, facto inadmissível e que apenas se verifica pela falta autoridade e de sentido de responsabilidade que grassa no País.
Há várias décadas que o Português vem perdendo terreno. Para piorar o panorama e irremediavelmente o comprometer, o governo de José Sócrates introduziu a obrigatoriedade da aprendizagem do Inglês nas escolas primárias. Essa medida, que gerou a simpatia de muita gente, foi um sinal de capitulação no esforço por uma melhor aprendizagem da nossa língua materna. A língua dominante, escrita e falada na poderosa América do Norte e tornada «língua de trabalho» em tudo o que é comunicação internacional, triunfou em toda a linha.
Cabe perguntar onde fica a Língua de Camões e de Gil Vicente, já de si tão maltratada com o recente acordo ortográfico, que a abrasileirou?
Mais uma vez tenho que recorrer aos ensinamentos antigos, nos saudosos tempos em que se defendia, com unhas e dentes, a língua pátria conta todo o género de tentativas em a desvirtuar ou em a relegar para segundo plano.
Ao contrário de hoje, em que o livre arbítrio é a regra soberana, na minha mocidade havia leis que protegiam a língua nacional. Cito um diploma legal de 1930, que se manteve válido durante sucessivas décadas, e que ainda hoje contém os pressupostos para que estivesse em vigor, não fossem os destruidores da nação tê-lo revogado em nome da irresponsabilidade que por aí abunda. Trata-se do Decreto nº.18.281, de 30 de Abril, que logo no seu primeiro artigo determinava: «É proibido o uso de língua estrangeira nas tabuletas, cartazes, anúncios, reclamos, marcas de fábricas ou de comércio nacionais e bem assim nas listas de mesas dos hotéis, restaurantes, casas de pasto e outros estabelecimentos similares».
Como todo e qualquer normativo legal só tem eficácia se para cada dever definir uma sanção, lá estava também a punição pelo incumprimento da obrigação de tudo estar escrito em Português: multa de 50 a 1000 escudos, «conforme ao juiz parecer». Se houvesse reincidência a multa elevava-se para os 5000 escudos e o culpado sujeitava-se a cumprir prisão até 30 dias.
Quanto às placas, cartazes ou anúncios encontrados escritos em língua estrangeira, a lei determinava expressamente a sua imediata destruição pela Polícia Administrativa.
Não se compreende que uma nação antiga de quase nove séculos, com uma língua una e riquíssima, se deixe arrastar para o abismo ao abdicar da obrigatoriedade do uso regular do Português na escrita e na oralidade. A nossa língua nada fica a dever ao Inglês, Francês, Alemão ou ao Castelhano, antes se afirmando como uma das mais completas do mundo, desde logo evidente na riqueza vocabular que contém.
«Tornadoiro», crónica de Ventura Reis
Estamos, já o disse inúmeras vezes, na era da pouca-vergonha e da desfaçatez, adjectivações derivadas da desregulação da vida em sociedade, de que é triste exemplo a ousadia das mulheres que de há um tempo a esta parte se vestem (ou desvestem) com roupas mínimas no tempo do calor, cujo maior exemplo é o famoso biquini, que praticamente as deixa desnudas.
A primeira vez que vi uma mulher nos preparos de um biquini foi em meados dos anos 1960, na praia de Paço d’Arcos. Eu era homem casado, e pai de filhos já bem espigadotes, e logo adivinhei que dali vinha desgraça ao Mundo. Não me enganei no prognóstico, porque a imoralidade cresceu à razão da expansão do uso das duas pequenas peças de roupa feminina
Os anos e as décadas passaram e eu, que até sou por natureza pessoa conservadora, habituei-me a ver o tal fato de banho de mulher que apenas tapa o busto e o baixo-ventre. Porém, há algo que considero desadequado e que de forma alguma deveria tolerar-se, que é o frequente uso dessa roupa ousada e sensual fora dos locais onde é aceitável a sua utilização.
Antigamente a vida em sociedade tinha o seu sentido ético. A lei impedia o uso de fatos de banho fora das praias, piscinas e outros lugares destinados à prática da natação. A proibição era rigorosa e sujeita a intensa fiscalização, a cargo dos agentes da segurança pública e da autoridade marítima, dentro das respectivas áreas de jurisdição.
Uma norma de 1941, o decreto-lei n.º 31247, de 5 de Maio, impunha que o uso de fatos de banho, passíveis de se interpretar como critica às autoridades implicaria severa punição, que poderia significar a aplicação de uma multa de 30 a 5000 escudos. A multa, se não paga imediatamente, era logo substituída por prisão à razão de 10 escudos por dia. O julgamento seguia a forma sumária, no próprio dia em que fosse lavrado o auto e o infractor fosse preso.
Não se brincava com a moralidade. O acto irresponsável e atentatório à dignidade humana que era o uso de fatos de banho escandalosos ou fora do lugar apropriado, levava a um outro acto redentor: o produto das multas revertia para o fundo de socorro a náufragos.
«Tornadoiro», crónica de Ventura Reis
Um dos graves problemas com que nos deparamos é o insuficiente controlo dos bens alimentícios que estão no circuito comercial. Anda por aí muita comida adulterada que, ingerida, provoca sérios danos ao organismo, de que é exemplo essa bactéria infecciosa agora descoberta na Alemanha, a que dão uma designação esquisita («e.coli», ou coisa que o valha…).
É absolutamente necessário contar com uma inspecção frequente e rigorosa aos bens comestíveis, mormente os que são vendidos nos comércios, restaurantes, bares, cantinas, bancas de mercado e até em caravanas à borda das estradas. E essa acção fiscalizadora tem de fazer uso da recolha de amostras, a encaminhar para laboratórios que as analisem rapidamente.
Também é necessária uma eficaz acção punitiva, que castigue os prevaricadores e os responsabilize, sobretudo no caso de a comida tóxica afectar a saúde de alguém. A punição tem de ser exemplar, caso o falsificador for surpreendido em flagrante delito de adulteração dos produtos ou quando estes sejam encontrados no próprio local ou oficinas de fabrico, que neste caso deve ser imediatamente selado, como medida preventiva.
No meu tempo de rapazola, mau grado os meios laboratoriais e comunicacionais fossem escassos, este assunto era alvo de toda a atenção. E isto sucedia num tempo em que a comida industrial não tinha a importância que hoje tem, já que abundava a comida natural, cuja deterioração ou adulteração eram mais fáceis de detectar.
A legislação aplicável previa medidas drásticas e severas para com os falsificadores dos produtos comestíveis, que para além de presos eram alvo de pesadas multas, sendo-lhes ainda encerrados os estabelecimentos (se os tivessem) e a sua acção propagandeada, para que fossem conhecidos na praça pública e isso os envergonhasse.
Havia ainda a Inspecção Geral dos Produtos Agrícolas e Industriais, a cujos inspectores competia a fiscalização técnica e sanitária, incluindo a recolha de amostras, e a instrução dos consequentes processos. Também tinham poderes de fiscalização nesta área os inspectores de saúde, médicos municipais, intendentes de pecuária, agentes fiscais e agentes policiais.
Uma medida importante, muito comum à época e que nos dias de hoje deixou de existir, era a previsão de que uma parte do produto das multas aplicadas revertesse para os autuantes, participantes ou descobridores. A bitola era 25%, com o limite no vencimento anual do funcionário, que não podia ser excedido. Esta disposição levava a que o agente fiscalizador andasse de olho aberto e orelha fita, a bem de todos, pois recebia da detecção de ilegalidades a merecida recompensa.
Mas a principal medida que antigamente existiu para combater este pesadelo, foi a criação do Tribunal Especial dos Géneros Alimentícios, a quem cabia a aplicação das penas de prisão e de multa previstas no Código Penal. Tratava-se de um tribunal colectivo, composto por um presidente, que era juiz de direito, e dois assessores, sendo um o comandante distrital da polícia e o outro um oficial superior do exército ou da armada. Este tribunal especial decidia em primeira instância, cabendo recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que porém restringia a sua apreciação à matéria de direito.
Sempre se ouviu dizer que com a saúde não se brinca. E como a saúde muito depende da qualidade da alimentação ingerida, justifica-se o máximo rigor na verificação da qualidade dos produtos comestíveis.
«Tornadoiro», crónica de Ventura Reis
Falamos indistintamente de gatuno e de ladrão como se tivessem o mesmo significado, porém há uma diferença que convém reter: gatuno é o que furta e ladrão é o que rouba.
O furto é a subtracção de coisa que é de propriedade alheia. Já o roubo é a subtracção dessa mesma coisa de propriedade alheia por meio de ameaça ou de violência. Claro que o conceito de violência não se resume ao uso da força contra alguém, sendo alargado a actos como o arrombamento, o escalamento e até o uso de chave falsa.
Exemplificando: um indivíduo que faz uma espera a um outro e se apossa da sua carteira por meio de intimação física, apontando-lhe uma pistola, comete o crime de roubo e não de furto, visto que fez uso da ameaça.
Havendo esta destrinça, há que considerar também que furto e roubo são praticados por agentes diferentes. O agente do furto limita-se a subtrair o que não é seu, enquanto que o agente do roubo subtrai o que não lhe pertence ameaçando e violentando para o conseguir. Assim, devemos chamar gatuno ao agente do furto e ladrão ao agente do roubo.
Não estaria o mundo tão mal se só houvesse gatunos, ou melhor, se todo o gatuno sempre o fosse e nunca passasse a ladrão. E digo isto porque de forma geral todo o ladrão começa por ser gatuno, mas permanece nessa categoria por pouco tempo pois, ambicionando fazer carreira, tudo faz para mudar de posto.
Os gatunos frequentam a escola do furto, tendo por mestres outros gatunos mais velhos que lhes ensinaram as manhas, pelo que depressa se aventuram em acções mais ousadas, indo facilmente cair no roubo. E quando caem no roubo atingem o apogeu das suas carreiras, tornando-se violentos, o que os leva facilmente ao cometimento de crimes graves mediante o uso dessa violência.
Na actualidade, a melhor escola do crime é a prisão, pois é lá que os mais experientes dão lições aos aprendizes que ali vão parar, preparando-os para se dedicarem ao roubo com bom desempenho e com requintes de malvadez. Noutro tempo, a prisão não cumpria esse nefasto papel de ser a escola do crime, pela simples razão de que o sistema prisional antigo era rígido e o condenado que a habitava recebia vivo e merecido castigo pelos males que cometera. Como o ladrão que fosse apanhado sabia que ia parar à cadeia e que aí penaria pelo crime, mais eram os que se contentavam com a gatunice do que aqueles que davam o salto para a ladroagem.
«Tornadoiro», crónica de Ventura Reis
A carta e a denúncia anónimas são o rosto dos covardes. Só gente desprezível e repugnante é capaz de recorrer à calúnia para ferir a honra alheia.
Por detrás do anonimato agacha-se aquele que é incapaz de lutar lealmente, dando a cara, antes preferindo fugir às consequências da sua perfídia.
Quem dá a face aceita a responsabilidade pelo que afirma, lutando pela defesa daquilo em que acredita e lealmente protege. Tem a noção da justiça, sabe o que são a moralidade e a honradez. Lutando lealmente acaba aliás por atingir o seu objectivo.
Já o anónimo que joga na insídia acredita na impunidade resultante de estar escondido. Como ninguém o vê, não será identificado nem responsabilizado e pode dizer tudo o que quer sem temer consequências que o afectem. Esquece porém que essa conduta o afunda na escala da moralidade, e essa é a maior das condenações.
Falo assim perante o uso que nos dias de hoje se vem dando à carta anónima. Por essa via malévola, se tem feito mal a muita gente, dando-se azo a notícias e campanhas públicas, quando não a processos e inquéritos, que conduzem à desacreditação das pessoas, que ardem vivas na fogueira na exposição mediática. E isto acontece porque o caluniador tem sempre um cúmplice disposto a dar-lhe ajuda. Esse cúmplice, que é aquele a quem chega a carta anónima, ou que dela vem a ter conhecimento, e decide divulgá-la, merece igual condenação, porque ajuda o covarde a atingir os seus maldosos fins.
Hoje ninguém está a salvo de um ataque do anonimato calunioso. A todo o momento se assiste à conspurcação leviana da honra de muito boa gente, apenas porque alguém o caluniou anonimamente e outro, ou outros, deram crédito a essa forma de agir.
Reafirmo pois que a calúnia feita através do anonimato se tornou numa poderosa arma que a todos pode trucidar, conspurcando-lhe o nome e destruindo-lhe a carreira profissional, a vida familiar e a imagem social.
E porque afirmo eu que a calúnia é um mal actual? Pois por verificar que de há um tempo a esta parte se tornou hábito dar expressão pública, nomeadamente através dos meios de comunicação social, a esse tipo de campanhas, quantas vezes na sequência de processos a que polícias e tribunais deram também crédito.
Pois noutro tempo, quando a moralidade imperava, havia uma recomendação expressa para todos os serviços públicos, que rezava assim:
«1- Não tomar conhecimento de qualquer documento que não venha devidamente assinado pelo autor;
2- Proceder com veemência contra aqueles que vierem a descobrir-se como seus autores, participando os factos ao Ministério Público que analisará a possibilidade de acção criminal por denúncia caluniosa».
Todos sabem que há formas de serem ouvidos nas suas pretensões por modo a fazer prevalecer os princípios da justiça, não sendo aceitável que alguns se sirvam de processos ignóbeis e reveladores de acentuada covardia moral.
«Tornadoiro», crónica de Ventura Reis
Em casa dos meus saudosos pais, que Deus tenha, sempre houve cães, que livremente entravam e saíam da habitação e por ela se movimentavam, sendo estimados por todos, pela utilidade que tinham e pela docilidade que os caracterizava. Hoje há muito quem tenha cães dentro de portas, mesmo na cidade, mas na maior parte dos casos isso constitui uma desumanidade.
Na nossa casa, no Sabugal, os cães tinham um estatuto muito especial, por serem considerados os fieis companheiros de todas as horas. Cabia-lhes guardar a casa, dando sinal sempre que um estranho se aproximasse, e acompanhar-nos nas deslocações e nas labutas campestres, ajudando até na guarda das vacas.
Mau grado a liberdade de movimentos, era-lhes absolutamente vedado dormir na habitação, tendo que o fazer no curral, enroscando-se geralmente debaixo do carro das vacas, que por sua vez se quedava sob o alpendre.
Estes animais eram tratados com todo respeito e humanidade. E ai do quem lhes batesse, maltratando-os. Meu pai, que era um homem severo, não perdoava esse tipo de excessos.
Falo neste assunto a fim de alertar para a mudança dos tempos, num processo muito marcado pelo progressivo desrespeito para com os animais, praticado sobretudo nas cidades.
É uso corrente meter os canídeos dentro de casa, ainda que em apartamentos em prédios de elevada altitude, tratando-os como se fossem gente ou como objectos de estimação. Nalguns casos estes pobres e infelizes animais apenas saem à rua por alguns minutos de manhã ou à noite, para fazerem as necessidades, sendo comum conspurcarem passeios e jardins públicos. No resto, permanecem encerrados, sujeitos a terrível tortura, provocada por gente sem escrúpulos que em alguns casos chega ao ridículo de os vestir com camisola, calções e pantufas.
Na ridicularia do desrespeito pelos animais, há até quem se preste a andar na rua passeando-os, munido de plástico ou luvinha de lycra para apanhar as fezes que depois mete num saquinho que por sua vez enfia no bolso do casaco. Afigurasse-me que tais pessoas nem terão a noção do grotesco.
Pois eu, sendo apologista da prática antiga do respeito sincero para com os cães, defendo que apenas deve ter cão quem possua um quintal junto à casa, espaço onde poderá montar casota e dar ao animal a nobre missão de zelar pela segurança, dando sinal (latindo) quando algum estranho se aproxime.
Faço gala nestas opiniões, baseado na experiência antiga que me foi dado viver nos meus tempos de mocidade, passados no Sabugal. E não se pense que naquela época não estava devidamente regulada a salvaguarda da saúde e da dignidade dos animais de raça canina. Era obrigatório proceder ao seu registo na Câmara Municipal, assim como o era sujeitá-los à vacinação anti-rábica e trazê-los sempre com coleira, onde constasse o respectivo número de registo, a classificação (de guarda, de gado, de caça ou de luxo) e o concelho a que pertenciam. Se um animal fosse encontrado sem vacinação, o dono era sujeito a uma pesada multa, sendo a fiscalização competência expressa de todas as autoridades e agentes do Estado e dos municípios.
«Tornadoiro», crónica de Ventura Reis
Antigamente havia um mister muito útil à economia que era o chamado «corrector de hotéis», o qual garantia, junto de viajantes e turistas, a angariação de clientes para as unidades hoteleiras, contribuindo ao mesmo tempo para a boa recepção e conveniente orientação das pessoas.
Não era qualquer um que atingia o ofício de corrector de hotéis, porque o Conselho de Turismo, punha exigência na selecção daqueles que lidariam com os que visitavam o país, no sentido de garantir que contribuiriam para prestar boa informação e defender a imagem de um povo que sabe acolher.
Para ser concedida a licença de corrector de hotéis tinha que ser apresentado registo criminal limpo, atestado de bom comportamento passado por autoridade policial, declaração de abonador idóneo que se responsabilizasse pelo impetrante no pagamento de eventuais penalizações pecuniárias e indemnizações resultantes do exercício de funções.
O peticionário tinha ainda que prestar provas exigentes, que incluíam leitura e escrita, conhecimento dos percursos, horários e preços dos meios de transporte colectivos, bem como das indicações a dar aos turistas quanto à maneira de reclamarem perante as autoridades de eventuais furtos, burlas ou quaisquer maus serviços prestados. O candidato a corrector tinha ainda de provar conhecer perfeitamente o valor cambial das principais divisas, as taxas e franquias a pagar pela prestação de serviços essenciais e falar uma de três línguas: francês, inglês ou alemão.
Cabia a esse profissional frequentar os cais marítimos e fluviais de desembarque de passageiros, as estações do caminho-de-ferro, os terminais das camionetas de carreira, e ai prestar o seu serviço de informação tendo em vista encaminhar os viajantes para os hotéis para que trabalhava.
Para não haver dúvidas e o serviço ser prestado com denodo, o corrector era obrigado a apresentar-se decentemente vestido, a ter uma linguagem comedida e a usar no boné ou chapéu uma chapa onde se lesse o seu nome e o do hotel que representasse, segundo o modelo aprovado pelo Conselho de Turismo. Era ainda obrigatório estar sempre munido da respectiva licença, que podia ser exigida pelas pessoas a quem prestasse serviços ou pela Polícia.
Cabia à Polícia Administrativa fiscalizar de perto o exercício deste mister, agindo compulsivamente em caso de violação dos regulamentos. Para além da responsabilidade civil e criminal, o corrector que transgredisse era de imediato punido com a suspensão da licença por 30 dias. Havendo segunda transgressão a suspensão era por 60 dias. A terceira por 90 e a quarta por 180 dias. No limite, a licença era cassada, deixando o sujeito de desempenhar a profissão por manifesta incapacidade.
A exigência dos regulamentos prova o cuidado que noutro tempo havia no controlo do exercício de determinados misteres, cujo bom desempenho era essencial para o desenvolvimento da economia nacional e para a paz social que a Nação queria gozar.
Nos dias de hoje tudo está desregulado. Acabaram com os correctores de hotéis, ficando os turistas nas mãos das chamadas agências de viagens ou de turismo, sobre cujos funcionários não existe o devido controlo por parte das autoridades policiais. São constantes os casos em que o turista é vítima de logro e esbulho. E isto nada me admira, pois é habitual vermos os estrangeiros passando pelas cidades sem guias que os acompanhem e os orientem nos percursos. Ficam entregues a si mesmos, na mira dos larápios e gatunos que empestam as ruas e deles fazem presas fáceis.
«Tornadoiro», crónica de Ventura Reis
Antigamente as coisas tinham dignidade e ar solene. Requerimentos, reclamações ou petições dirigidos à administração pública tinham que ser redigidos em papel selado, usando-se uma linguagem formal, sem emendas e sem rasuras, e com a assinatura do requerente aposta sobre estampilhas fiscais.
Nos dias de hoje, em que a balbúrdia assentou arraiais, tudo serve e a regra é não haver regras para qualquer tipo de requerimento, o mesmo se passando em relação a qualquer documento oficial emitido pelo Estado. Folha de qualquer gramagem, papel vegetal, de embrulho ou almaço, tudo serve para se apresentar uma petição pública, não importando também a forma em que a mesma é redigida. Nos termos do Código Administrativo a Administração tem que considerar o requerimento e dar-lhe prosseguimento.
Isto que hoje acontece é muito grave, porque representa a falência do Estado enquanto órgão que administra a coisa pública e enquanto órgão detentivo do poder de regulação da vida social e económica da Nação. No meu tempo as coisas piavam fino e ai do que não cumprisse com escrúpulo o que estava definido nas normas publicadas sobre esta melindrosa matéria.
Cumpri parte do serviço militar em Viseu, onde fui por algum tempo amanuense na secretaria do comando. Aprendi ali algo que me serviu para toda a vida enquanto funcionário da Fazenda Pública que depois fui. Refiro-me à elaboração do expediente oficial, que continha regras precisas.
Tinha que se escrever em Português escorreito, sem erros e seguindo a rigor as regras gramaticais. Não podia haver rasuras no texto, nem emendas, nem borrões, nem entrelinhas, que não estivessem ressalvadas à margem. E como se ressalvava uma emenda: «Declaro ressalvada a emenda feita na linha ___, a folhas __, dos autos, que diz ___(escrevia as palavras que ficavam a valer)».
Não podiam ser usadas abreviaturas, devendo ainda escrever-se por extenso quaisquer números, quantias ou valores a que se fizesse referência. Os autos não podiam conter nenhum resto de linha em branco, pois tinha de traçar-se com uma linha contínua.
No final do documento o escrivão assinava e colocava a sua rubrica na margem direita superior das demais folhas. Cada folha apenas poderia conter vinte e cinco linhas e a margens esquerda e direita obedeciam a medidas obrigatórias.
A pouco e pouco essas regras caíram em desuso e foram até ridicularizadas. Hoje estamos no regabofe, com total ausência de normas, cada um fazendo como lhe aprovem, fruto de uma espécie de insanidade e do ódio declarado a tudo o que vem do tempo antigo.
Pois eu confesso que gostaria que o mundo, em termos organizativos, voltasse ao tempo do papel selado e da estampilha fiscal. Para além dos réditos fiscais que resultariam da reintrodução dessas práticas, voltaria a garantir-se a existência de normas rigorosas na elaboração do expediente, voltando a dignificar-se a organização pública.
«Tornadoiro», crónica de Ventura Reis
Longe vão os tempos em que a sociedade quase se auto-regulava, com mecanismos próprios para a resolução de conflitos, de que eram bons exemplos o juiz de paz e o júri avindor.
Antigamente os pequenos conflitos nas comunidades, mormente nas aldeias, eram resolvidos no seu seio, pelos chamados e considerados «homens bons», ou justos. Havia sobretudo duas fórmulas para a arbitragem dos conflitos, cuja decisão era geralmente acatada.
Uma era através da figura do juiz de paz, que existia em todas as freguesias, à excepção das que eram sede de comarca. O juiz era um homem bom da freguesia, a quem cabia decidir os conflitos ali verificados. Competia-lhe procurar conciliar as pessoas antes que litigassem em juízo. As funções de juiz de paz podiam ser acumuladas com as de regedor, tendo então também atribuições policiais, tais como tomar conhecimento dos crimes ou infracções cometidas, prender os delinquentes em flagrante, proceder ao corpo de delito ou quaisquer diligência no âmbito do processo criminal.
Outra forma de resolver os conflitos nas comunidades de antanho era através do chamado júri avindor, que intervinha em alguns assuntos concretos, para os quais era especialmente constituído. O júri avindor era formado por três homens bons da freguesia, um deles presidente e os outros vogais, e tinha por competência promover a conciliação dos desavindos, pronunciar-se sobre as reclamações, julgar transgressões, aplicando as respectivas multas e fixando o valor das indemnizações.
Este júri podia ser constituído por motivo de uso das águas ou de exploração das terras.
As funções inerentes aos cargos de juiz de paz ou de membro do júri avindor eram gratuitas, tendo no entanto direito a ser reembolsados, quer das despesas efectuadas por motivo das investigações e diligências efectuadas, quer das remunerações eventualmente perdidas no exercício das funções.
Não se conformando as partes com as decisões do juiz de paz ou do júri avindor, cabia recurso para o juiz de direito da comarca, cumpridos certos pressupostos.
Tudo isso acabou com a modernidade e o garantismo. Hoje a resolução de um litígio demora uma eternidade, fruto da desorganização da Justiça, do fundamentalismo burocrático e do entupimento dos serviços judiciais. Tudo tem que ir a juízo, seguindo o manancial de regras e de prazos estabelecidos. Já não há «homens bons» na nossa sociedade, porque só ao juiz formado na universidade e com os códigos enfiados na cachimónia, é possível decidir e fazer Justiça.
Ainda andou por aí uma tentativa de reintrodução dos julgados de paz, mas o fanatismo da formalidade e o do garantismo deitaram tudo a perder.
«Tornadoiro», crónica de Ventura Reis
Vivemos em tempos de irresponsabilidade e absoluta falta de orientação, sendo disso claro exemplo a destruição das árvores de fruto que antigamente eram cuidadas com tanto carinho pelo interesse para a sã alimentação do povo e para o desenvolvimento da economia.
Quem, tendo atingindo já a minha provecta idade, ou até sendo um pouco mais novo, não recorda as amoreiras que existiam no principal largo das aldeia do concelho do Sabugal? A amoreira era uma árvore muito protegida. As suas folhas serviam de alimento ao benéfico bicho-da-seda, e o seu fruto era o alimento da canalha que antigamente povoava as aldeias em grande número.
Depois deram em dizer mal das amoreiras. Aventaram que as amoras amadurecidas caíam sobre as roupas de quem procurava a sombra e sobre as pedras da calçada, deixando manchas roxas que dificilmente se conseguiam limpar. Outra crítica era o mosquedo que se juntava ao redor das amoreiras, como se isso não tivesse acontecido a vida inteira… Por razões de higiene lançaram-se no crime do abate massivo de tão importante espécie vegetal, roubando às aldeias da Beira um elemento que manifestamente as caracterizava.
Antigamente a amoreira era uma das árvores classificadas de interesse público, pelas razões que acima aduzi. Nessa conformidade a lei vigente proibia expressamente o corte, arranque, transplantação ou destruição, por qualquer meio, de amoreiras sem autorização prévia da Direcção Geral do Fomento Agrícola. O indivíduo que as cortasse, arrancasse, danificasse ou, por qualquer forma, as fizesse perecer, fosse qual fosse o seu estado de vegetação, ficava sujeito a apanhar multa ou prisão correccional.
O Decreto 18:604, de 12-07-1930, que esteve em vigor durante décadas, fixava a multa em 50 escudos por árvore afectada e a pena de prisão correccional de 5 a 15 dias, sendo esta penalidade imposta em juízo.
Mas não era apenas a amoreira que merecia cuidados. Outras árvores benfazejas eram protegidas pela lei, com especial incidência nas árvores de fruto, essenciais para a alimentação das pessoas e para o desenvolvimento da economia nacional.
As regras iam ao ponto de obrigarem todos os viveiristas a informar anualmente a Divisão de Estatística Agrícola da quantidade de árvores de fruto vendidas, discriminada por espécie e com indicação dos concelhos de destino.
A ideia que presidia era a da defesa das árvores de fruto, embora também houvesse preocupações quanto à floresta, que era sobretudo complementar à actividade agrícola.
Hoje a agricultura foi destruída e os campos abandonados. O desmazelo provocado por essa irresponsabilidade trouxe o matagal, pasto apetecível dos incêndios que, ainda assim, são o que vale para limpar os campos de giestas, silvas, piornos, tojos e toda a demais casta de arbustos inúteis que povoam a paisagem.
Falta-nos quem tenha mão nesta balbúrdia, quem imponha regras equilibradas e as faça cumprir, no interesse do presente e do futuro de Portugal.
«Tornadoiro», crónica de Ventura Reis
Todos os dias somos confrontados com notícias que dão conta da evidente falta de autoridade da Polícia que temos, que é a todo o instante desrespeitada e vilipendiada, colocando-se assim em crise a ordem e a segurança públicas.
Dantes, aquele que, empregando violências ou ameaças, se opusesse à autoridade, era de imediato detido, ficando sujeito a uma pena de prisão correccional. O indivíduo que desrespeitasse a Polícia, recusando cumprir uma ordem legítima, cometia o crime de desobediência. O mesmo sucedia com quem resistisse aos mandados legais das autoridades.
Havia respeito pela Polícia e pelos seus agentes. E quem não se sujeitasse à legítima acção coerciva, tinha de responder por isso em juízo, em imediato processo sumário.
E antigamente um processo sumário era isso mesmo, ou seja: um processo que corria imediatamente os seus termos, em acto contínuo à detenção do criminoso, ouvindo-o em audiência e condenando-o ou absolvendo-o.
A frieza da lei e o rigor dos procedimentos não deixavam espaço para os que prevaricavam. Também havia muitos actos criminais, pois isso é próprio das sociedades, sendo um mal inevitável, mas o certo é que se agia para fazer justiça, nunca deixando um caso sem a devida resposta.
Hoje ninguém respeita a autoridade. Uma farda de polícia ou de guarda-republicano não impõem o temor que eu lhes tinha nos meus tempos de rapaz. E falo de um temor, que era um sinal de respeito. Uma ordem proferida por um polícia era para cumprir, desde que a mesma fosse legítima. Se um agente intervinha para deter um prevaricador, ninguém se interpunha. Quanto muito os populares ajudavam o polícia, se este lhes pedisse apoio.
Ouvimos falar de casos em que os agentes de autoridade são ofendidos e vilipendiados, quando não até agredidos e sovados, num completo desrespeito pelo estado de direito. E depois ainda vêm alguns defender esses actos infames, com a conivência e o aplauso dos jornais e das televisões!
Vamos de mal a pior, e não se vislumbram soluções para travar esta decadência.
«Tornadoiro», crónica de Ventura Reis
Muito se clama contra a morosidade da Justiça, que actualmente está pela hora da morte, sendo esse um dos grandes problemas de Portugal. Longe vão os tempos em que a Justiça funcionava, regulando a vida social e contribuindo activamente para o progresso nacional.
Um dos grandes problemas com a morosidade da Justiça é a delonga das diligências processuais, de que são exemplo as notificações para informação ou para chamamento a juízo. Tudo serve para dilatar o tempo e demorar a justiça, porque as manobras nesse sentido estão à mão de semear e são usadas continuamente por advogados e réus (eu não gosto de dizer arguidos) que querem fugir à aplicação das penas.
Para se citarem as pessoas deveria regressar-se às normas antigas, que eram claras e não davam azo a manobras evasivas. As notificações podiam ser feitas pessoalmente, por funcionários judiciais, pela polícia a pedido dos tribunais, podendo ainda ser remetidas por via postal. No âmbito do processo penal, se o destinatário da notificação não estivesse em casa e o distribuidor fosse informado pela vizinhança que voltava no próprio dia ou no imediato, entregava o aviso a qualquer pessoa idónea, cobrando recibo. A esse caberia entregar a notificação ao destinatário, sob pena de incorrer em sanção pecuniária, com igual sanção incorrendo o destinatário que recusasse receber o aviso. Verificando-se que as informações da vizinhança eram maliciosas e mentirosas, as pessoas que as dessem incorriam no crime de falsas declarações.
Por outro lado, o aviso produzia todos os efeitos legais, mesmo que o destinatário se recusasse a recebê-lo, sendo disso advertido.
Os processos também não paravam por tempo indeterminado, como hoje muitas vezes sucede. Havia prazos rigorosos a cumprir, a que se encontravam obrigados os magistrados e os oficiais de justiça. Qualquer mandado que fosse entregue a um oficial de diligências teria de ser cumprido em cinco dias, apenas prorrogados em casos devidamente justificados. O incumprimento do mandado no prazo legal implicava o pagamento de uma multa por parte do funcionário faltoso, salvas ainda as aplicáveis sanções disciplinares.
Para se evitarem demoras no curso do processo, o Estatuto Judiciário, impedia literalmente os advogados de promoverem diligências dilatórias ou reconhecidamente inúteis para o descobrimento da verdade.
Estes são alguns exemplos do que era a boa Justiça que tínhamos e que deitámos a perder com o excesso de garantismo em que a modernidade nos deixou cair.
«Tornadoiro», crónica de Ventura Reis
Monopólio vem de «monos» (um só) e de «polein» (vender), e significa ter o privilégio, ou a exclusividade, de um certo negócio.
Os monopólios, podemos dizê-lo, são detestáveis, porque a sociedade fica tributária de certos indivíduos, que em benefício dos seus exclusivos interesses prejudicam as restantes pessoas, nomeadamente os consumidores, com a carestia do seu género. Com o monopólio toda a concorrência queda excluída, impondo-se então os preços que o monopolizador entende praticar.
As empresas monopolizadoras tornam-se verdadeiros potentados, atraindo a si o serviço de todos os influentes: políticos, jornalistas, sindicalistas, militares, polícias, etc. É a tirania pelo vexame, ao serviço de interesses particulares, em pleno arrepio dos interesses do povo.
Os monopólios, que medram e se tornam dominadores, fazem-no servindo a ganância dos ricos e sugando o sangue dos pobres. Atacam pela calada, às ocultas, tomando posição exclusiva em certas áreas de negócio, a que se agarram como lapas. Depois conduzem esse comércio a seu belo prazer, sem enfrentarem a concorrência.
Porém pode haver exclusividades que não constituam monopólio, desde que o Estado lhes preste o devido controlo. Falo dos tabacos, que sendo negócio nocivo, não deviam estar em concorrência. O mesmo digo dos serviços postais, das lotarias, da segurança pública ou dos bancos. Sim, leram bem esta última defesa do monopólio social: o negócio dos bancos. Só ao Estado deveria ser permitido ser banqueiro, com o dever de exercer o serviço a bem do país e da sua economia, tendo ainda uma afinada preocupação social.
Um banco privado é o mais nocivo dos negócios. Se a falência de um banco é algo incomportável para a economia, que obriga a uma imediata intervenção do erário público, injectando dinheiro para salvar esse negócio e evitar grandes males na economia, então como é possível permitir que esse banco seja propriedade de particulares?
Na luta contra os monopólios, que atrofiam e desvirtuam a economia, o Estado tem de agir, controlando algumas actividades económicas, estando a da banca na primeira linha.
«Tornadoiro», crónica de Ventura Reis
O serviço de polícia existe desde que o homem vive em sociedade, embora tenha assumido diferentes designações. Há porém a dizer que as policias de antanho não eram como as de agora. Está na moda falar-se de integração, respeito e cooperação, tendo isso como efeito fazer com que o polícia perca a sua autoridade. A coisa chegou a pontos de hoje ser mais fácil prender um polícia do que um criminoso, tornando-se também comuns os actos de desobediência à autoridade policial que em vez de apoiada é condenada e ofendida.
Pois meus caros, a autoridade da polícia sempre teve um carácter fraternal, mas foi originalmente constituída para reprimir o mal, sendo que a promoção do bem pertence a outras instituições para isso vocacionadas.
A polícia tinha funções bem expressas, que basicamente eram as de garantir a autoridade do Estado, a tranquilidade, a segurança, o bem-estar das pessoas, bem como o respeito pela propriedade.
Para ser garantida a plenitude das funções policiais, havia no meu tempo de rapaz diversas entidades com autoridade e com capacidade de intervenção, cujas competências incluíam a detenção dos prevaricadores e o lavrar de autos, que eram o primeiro passo com vista à sua justa punição. Cada instituição actuava nos limites da lei e dentro da sua área de competências, estando assim garantida a especialidade na acção policial.
Enumero seguidamente os diferentes corpos de polícia que havia no meu tempo, alguns dos quais deixaram infelizmente de existir:
Polícia de Segurança Pública, que dependia do Ministério do Interior e tinha por funções prevenir e reprimir a criminalidade bem como fiscalizar e realizar as diligências que lhe fossem ordenadas, actuando nas cidades e nas vilas de maior dimensão, como chegou a acontecer na vila do Sabugal durante algumas décadas.
Polícia Judiciária, dependente do Ministério da Justiça, tendo por fim efectuar a investigação dos crimes e descobrir os seus agentes.
Polícia Marítima, na dependência do Ministério da Marinha, que tinha atribuída a vigilância e a fiscalização dos portos e da costa marítima.
Polícia Florestal, dependente do Ministério da Economia, destinada a reprimir e denunciar os delitos florestais.
Polícia Hidráulica, dependendo do Ministério das Obras Públicas, que tinha a seu cargo a vigilância e fiscalização das barragens, lagoas, lagos, rios, ribeiras, canais e valas, bem como a navegação fluvial.
Polícia Internacional e de Defesa do Estado, dependente do Ministério do Interior, a quem cabia garantir a segurança interior e exterior do Estado, vigiar as fronteiras e controlar a emigração (esta era uma policia politica que perseguia quem tinha ideais diferentes das que defendia o regime vigente – tendo sido extinta, não há que ter saudades dela).
Polícia Municipal, dependente das câmaras municipais, que tinha por fim fazer cumprir as posturas, editais e regulamentos camarários.
Guarda Nacional Republicana, dependente do Ministério do Interior, que tinha funções de polícia rural, garantindo a ordem no campo (havendo conflito armado, a GNR, ficaria à disposição do Ministério da Guerra, atendendo ao seu estatuto militar).
Polícia das Estradas Nacionais, serviço da competência dos funcionários da Junta Autónoma de Estradas, do Ministério das Comunicações, a quem competia a conservação e a defesa das estradas nacionais, fiscalizando e reprimindo os actos de danificação e desrespeito.
Guarda Fiscal, do Ministério da Fazenda, que fiscalizava a entrada e a saída de mercadorias, vigiava as fronteiras, garantia a cobrança dos direitos aduaneiros e reprimia o contrabando.
Polícia de Viação e Trânsito, do Ministério das Comunicações, competindo-lhe garantir o cumprimento das disposições relativas ao tráfego de veículos nas estradas.
Polícia Sanitária, do Ministério da Saúde, que tinha por fim fiscalizar o cumprimento dos regulamentos de saúde de modo a evitar a proliferação de doenças contagiosas.
Para além das competências de todos os corpos de polícia, atribuídas por lei, e das funções de autoridade de policia dos comandantes, directores, oficiais e funcionários superiores destes corpos, também detinham a atribuição de autoridade policial os governadores civis, os presidentes das câmaras municipais, os regedores e os juízes de paz.
«Tornadoiro», crónica de Ventura Reis
A prostituição é uma grande chaga social, muito difícil de combater, porque de um lado estão mulheres que necessitam de ganhar a vida e do outro homens que procuram a satisfação sexual. Havendo procura e oferta, o negócio enraíza-se.
Dantes, no tempo da lucidez, enfrentavam-se os males sociais, ao contrário do que sucede nos dias de hoje, em que é mais comum assobiar para o lado fingindo que tudo está em perfeita ordem.
A prostituição era uma actividade legal, havendo mesmo um serviço especial de Polícia Sanitária, o qual combatia a meretrícia clandestina e assegurava que a legal fosse praticada com as devidas e obrigatórias condições higiénicas.
As meretrizes que se encontravam inscritas no cadastro policial e se submetiam à inspecção sanitária eram chamadas de «toleradas». Podiam prostituir-se, mas era-lhes, em nome da moral pública, absolutamente vedado habitar em local próximo de igrejas, escolas e jardins públicos. Nesse mesmo propósito estava-lhes ainda vedado estar à janela de modo indecente, andar em público ofendendo o pudor ou provocando os transeuntes, assim como exercer a prostituição nas hospedarias.
Em nome do rigoroso controlo dessa actividade imoral, a mulher tolerada não podia ausentar-se de casa por mais de cinco dias sem o participar à polícia. Já em defesa da saúde pública, estas mulheres da vida não podiam praticar o sexo quando afectadas por moléstias venéreas ou contagiosas.
Toda a tolerada tinha um livrete sanitário, destinado a apresentar aos facultativos que a assistiam e onde estes faziam os seus registos. Este livrete era cancelado no caso em que a tolerada contraísse matrimónio, se ausentasse do país ou passasse à vida honesta.
A prostituição podia exercer-se na habitação da tolerada ou então nas chamadas «casas de toleradas», que eram estabelecimentos legais sujeitos a certas regras, a começar pela da higiene e limpeza. Estas casas estavam sob a fiscalização e vigilância do serviço especial de Polícia Sanitária. À frente da casa tinha que estar a «dona», a qual tinha como obrigações especiais sujeitar-se à fiscalização, não vender bebidas alcoólicas e não maltratar nem explorar as toleradas.
Apresentei, em traços gerais, o panorama dentro do qual se praticava a prostituição legal e controlada, assumindo-se a chaga social e impondo-lhe regras que evitassem uma prática clandestina e perigosa.
Poderá voltar a legalizar-se a prostituição? Da minha parte respondo que tal é preferível, em oposição ao total descontrolo desta actividade que se verifica nos dias de hoje. As mulheres são exploradas nas casas de prostituição, cuja actividade os donos disfarçam, sujeitando-as às maiores humilhações. Não faltam por aí relatos de moças, vindas de países distantes, que são vigiadas, sujeitas a ameaças e a actos de violência e de extorsão, para ganho de uns quantos, que fazem vida à sua custa. Essa actividade, que infelizmente prolifera, não gera réditos fiscais, nem prestações para a caixa de previdência, mas garante lucros fabulosos para os que controlam o negócio.
Claro que não seria hoje possível voltar ao regime legal de antigamente, com a refundação das casas de toleradas, mas, convenhamos, algo tem de ser feito em nome da justiça e da legalidade.
«Tornadoiro», crónica de Ventura Reis
Um dos grandes vícios do Estado é a imensidade de diplomas legais debatidos, aprovados, promulgados e publicados no diário oficial da República.
A confusão dos cidadãos com tantas leis e a variedade das suas interpretações, beneficia os juristas encartados, que produzem a peso de ouro os pareceres com que governo, empresas, sindicatos, e tudo o mais, se munem face à balbúrdia em que a imensidade das leis nos lançou.
Sucede contudo, que a maior parte da produção legislativa assume a forma de decretos-lei, decretos regulamentares, portarias, resoluções e despachos, provindos portanto dos titulares do poder executivo e não daqueles que foram eleitos pelo povo para legislar. Os deputados da nação, que de facto detêm o chamado poder legislativo, delegam no governo o poder de legislar, e, então, dá-se um jorro constante de diplomas legais, que todos os dias são publicados e que lançam a maior confusão em todos os sectores da vida.
O empenho doentio dos nossos governantes, dos vários partidos políticos, na sistemática produção de leis, tem conduzido ao nosso maior problema que é serem certas leis contraditórias com outras. Além disso sucede por vezes estarem cheias de erros e de lacunas e até carregadas de normas absurdas e atentatórias aos mais elementares princípios jurídicos. É isto que tenho ouvido a muitos professores de Direito que analisam com rigor as coisas e que, ao contrário de outros, não estão a beneficiar do regabofe.
Que bom era que houvesse ordem e responsabilidade por parte dos que têm o poder de regular a vida em sociedade. Mas, infelizmente, tenho concluído que a orgia das leis em barda é uma das maiores razões daquilo a que se chama irresponsabilidade do Estado, que às vezes caminha de braço dado com a corrupção e a putrefacção social.
O maior exemplo de desorientação é o das leis penais portuguesas. Noutra época, quando havia responsabilidade, o Código Penal reunia todas as normas punitivas que os tribunais podiam aplicar aos prevaricadores. Reformas das leis penais também as havia quando justificadas, agravando ou aliviando as penas, criando novos crimes, melhorando as suas definições. Mas o Código era uno, em nome dos bons princípios legislativos, do claro conhecimento da lei e da sua boa e coerente aplicação pelos tribunais. Porém, de há uns anos para cá, uma imensa panóplia de leis e decretos-lei avulsos contêm normas penais, que acrescentam às do próprio Código Penal, o que consiste numa imensa balbúrdia. Esse é um dos maiores problemas da nossa Justiça.
Há que dar um fim a esse prurido de vaidades que consiste na permanente disponibilidade para mais uma reformazinha. Sejam os nossos governantes gente capaz, empenhada em bem servir, fazendo com que as leis que existem se cumpram e que o país encarreire pelo caminho certo.
«Tornadoiro», crónica de Ventura Reis
Há pessoas de má catadura que não observam os deveres para com a sociedade, pois só de má vontade se submetem às leis e cumprem as obrigações que lhes cabem enquanto cidadãos.
Ensina-nos a moral que todos os homens são irmãos e devem auxiliar-se mutuamente em caso de precisão. A caridade e a generosidade para com os semelhantes são sentimentos nobres que se esperam de cada homem.
Esses valores estão a ser esquecidos em resultado de uma cultura da competição, traduzida na disputa acirrada entre as pessoas, na ambição desmedida e no louvor aos que sobem a pulso, pisando tudo e todos sem qualquer pejo.
Hoje, mais do que nunca, cultiva-se o egoísmo, com cada qual a bater-se por si, cooperando apenas por razões de ambição, para atingir uma meta.
Vivemos tempos de crise, com a mocidade sem emprego, com as famílias oprimidas pelas dívidas aos bancos e sem dinheiro para comprar o essencial para a vida. Anda por aí muita gente com a corda na garganta, com a vida transformada em inferno, sem alegria e sem esperança no futuro. Ora a experiência diz-nos que há dias sadios e dias aziagos, e o bom senso manda que o indivíduo se previna das fatalidades.
Noutro tempo cultivava-se a ideia de que o homem responsável economizava sempre uma certa quantia do seu salário ou do seu rendimento, tendo em vista a aquisição do que necessitava ou simplesmente para poupar e fazer face a uma fatalidade que o apoquentasse. Só que a mocidade de agora nasceu e cresceu na abundância, na facilidade da vida, com os paizinhos a amparar-lhe os movimentos. Não foram preparados para as dificuldades e andam desesperados com a vida.
A longa idade que tenho dá-me a experiência necessária para considerar que os tempos, sendo difíceis, obrigam à provação e ao sacrifício. Mas temo bem que a mocidade não esteja preparada para enfrentar dificuldades maiores, que obriguem a uma saída da redoma em que se encontra.
Nada se fará pela via do egoísmo e do individualismo. Os moços de hoje têm de dar as mãos e batalhar juntos, em vez de andarem por aí na casmurrice, numa disputa constante.
Tornou-se comum o uso da palavra solidariedade para designar a caridade e a benevolência de antigamente. Ser solidário é ajudar o semelhante, participar no esforço comum para uma melhor vida social, contribuir para que os pobres e ofendidos também singrem ou sejam menos infelizes. Porém nada disto se consegue com comportamentos egoístas, sucedâneos da ambição desmedida e do individualismo extremo, que hoje se cultiva e ensina.
«Tornadoiro», crónica de Ventura Reis
É habitual encontrar gente praticando a mendicidade, sobretudo nas cidades. Muitos são estrangeiros, que se colocam junto aos semáforos, simulando deficiências, exibindo chagas ou segurando bebés nos braços, para melhor estimularem os sentimentos de caridade. Na maior parte das vezes trata-se porém de falsos mendigos, que abusam da sensibilidade alheia.
Às vezes são um bando de garotos, munidos de balde e escova, que se atiram a limpar os vidros dos carros ligeiros. Quando alguém lhes diz «não», corre o risco de ver o automóvel pontapeado ou riscado, pelo que acabam por condicionar as pessoas, que optam por lhes dar dinheiro.
Outras vezes é no metropolitano que os encontramos, tocando harmónio ou fingindo-se cegos, sempre no intuito de «sacar» dinheiro aos que abordam.
Na minha mocidade esta mendigagem falsa era proibida e reprimida. Eram considerados pedintes falsos os que exploravam a caridade pública em proveito próprio, nomeadamente através de forma aparente ou disfarçada.
Os inválidos ou incapazes encontrados a mendigar eram, conforme os casos, entregues às famílias ou a quem lhes garantisse o sustento e o agasalho. Se fosse necessário, eram internados em estabelecimentos adequados ou remetidos às comissões de assistência e socorro.
Porém os indivíduos aptos para o trabalho que fossem encontrados a mendigar eram remetidos ao Comissariado do Desemprego, entidade do Ministério das Obras Públicas, que lhes arranjava trabalho nas obras do Estado ou por este comparticipadas.
Por outro lado, havia serviços de assistência aos que realmente eram indigentes e absolutamente necessitados. Esses serviços tinham a missão de fornecer géneros alimentícios, artigos de vestuário, hospedagem, bem como assistência hospitalar ou farmacêutica. Este apoio à indigência estava espalhado por todo o país, através de comissões de assistência municipais e paroquiais.
Hoje nada disso existe, porque o Estado se demitiu de funções. A assistência é garantida por associações, que angariam géneros alimentícios e mobilizam voluntários. Mas isso não garante um apoio igual ao que existia antigamente através das zelosas e beneméritas comissões de assistência.
Outra coisa que hoje, infelizmente, não existe é a repressão da mendicidade, pois ela é actualmente de exercício livre, como se tal fosse um direito que a todos assiste. Pois bem, antigamente os indivíduos encontrados pelas autoridades a mendigar de forma abusiva e ostensiva, procurando condicionar os sentimentos alheios, eram detidos e imediatamente conduzidos ao albergue ou ao asilo mais próximo. Claro que se concluísse tratar-se de mendicidade simulada, então os indivíduos eram entregues ao Comissariado do Desemprego. E os que, nestas últimas condições, se recusassem a trabalhar eram enviados a juízo, sendo equiparados a vadios.
Por que razão não se recuperam essas práticas virtuosas e moralizadoras, que defendiam a justiça e a paz social?
«Tornadoiro», crónica de Ventura Reis
Se há coisa que me irrita é ver passar-me ao lado bicicletas conduzidas por fedelhos atrevidos, que fazem dos passeios para os peões autênticas pistas de ciclismo, fazendo perigar quem caminha sossegado.
Até simpatizo com essa ideia de voltar a andar preferencialmente a pé, de bicicleta, ou de trotineta, pondo de lado o automóvel poluidor. Porém incomoda-me sobremaneira a falta de civismo dos moços que andam de bicicleta na cidade, que se nos atravessam à frente a todo o instante ou nos fazem razias que colocam em perigo a nossa integridade física.
Ele há limites para tudo e, no que me toca, não suporto esse susto permanente que sinto quando caminho pelo passeio. O que antes deveria ser um percurso calmo e seguro, transformou-se numa aventura medonha. Ao que isto chegou!
Ainda há dias assisti ao atropelamento de um pobre cão que seguia no passeio, livrando-se por muito pouco o dono de também ser atingido por um ciclista tresloucado que seguia a alta velocidade. O acidente foi aliás de consequências também nefastas para o jovem ciclista que se estatelou no solo, tendo ali recebido assistência.
Verifiquei estupefacto que a bicicleta não tinha chapa de matrícula, nem tampouco campainha ou buzina, acreditando até que o famigerado moço que atropelou o canídeo nem sequer possuísse o respectivo livrete. Pois queiram acreditar que os polícias que acorreram ao local, não só não lhe pediram o documento, como ainda nada fizeram devido ao facto de circular pelo passeio e de ter em falta os apetrechos de segurança obrigatórios.
No tempo antigo havia outro civismo e as leis eram de cumprimento obrigatório. Quem viesse à rua com a bicicleta sem chapa de matrícula, sem instrumento sonoro (audível à distância de 50 metros), sem os travões em excelente estado e sem os documentos obrigatórios, via o velocípede apreendido, sem apelo nem agravo. Sim, porque as leis eram rigorosas e, sobretudo, eram para cumprir, deparando-se os infractores com a pronta e firme actuação das autoridades.
As câmaras municipais tinham um registo das bicicletas existentes no concelho, bem como das moradas dos seus proprietários, estando prevista a aplicação de multas aos que não procedessem aos registos e não comunicassem as alterações.
Hoje é moderno andar de bicicleta e até há quem defenda o seu retorno em substituição do carro ligeiro. Pois eu acho isso muito bem, mas então circulem na estrada, ou seja, na via destinada aos veículos e nunca pelos passeios. Circulem pela direita, como manda o Código da Estrada e não usem as passadeiras para atravessar as ruas, montados nas bicicletas, ou com elas de rédea, como se de peões se tratassem.
Eu, que felizmente não dirijo, imagino os sustos que os condutores dos automóveis apanham quando as bicicletas se lhe atravessam à frente!
«Tornadoiro», crónica de Ventura Reis
Volto à questão da Justiça, por considerar que uma das principais razões da sua péssima administração em Portugal vem do facto de termos muitos juízes inexperientes a servir nos tribunais.
O mal da nossa Justiça de hoje começa nos juízes que temos. Na sua maior parte são rapazolas imberbes, a que alguns ainda juntam a má educação e a arrogância, saídos das saias das mamãs para debaixo das togas. Como lhes deram um curso com muitas horas de estudo e muitas disciplinas, e lhes meteram na cabeça que o importante são os códigos, eles apegam-se às normas formais e sentam-se no pedestal dos tribunais, convencidos que são os mais aptos e capazes.
O grande problema é que estes rapazolas de toga preta são absolutamente inexperientes na vida, não estando portanto preparados para julgar. Muitos levam uma vida desregrada, algo própria da mocidade, mas nada condizente com a responsabilidade que lhes confere o facto de serem magistrados. Já encontraram juízes em discotecas a altas horas da madrugada, nas «casas de meninas» e até em festas de música louca, no meio de drogados e de alcoólicos. Outros há que envergam roupas extravagantes, metem-se em desportos ditos radicais e até vão para o tribunal de motorizada ou de bicicleta.
Só a experiência da vida nos dá lucidez para julgar a conduta dos outros. Este foi um ensinamento de sempre. E a experiência, meus amigos, vem com a idade. E isso não é nada de novo para o ordenamento jurídico português. Veja-se desde logo a Constituição da República que impõe para se ser candidato a presidente da república ter 35 anos feitos. Isto será por acaso? Não, não é por imprevisto, mas por se considerar que apenas a idade traz ao ser humano o discernimento e a lucidez necessários a tomar decisões vitais. E vitais são-no, pela sua natureza, a maior parte das decisões se condenação, ou de absolvição, tomadas pelos juízes nos tribunais.
Como pode um moço saído do estudo julgar um caso de família? Ou avaliar a conduta de pessoas maduras, que tiveram desavenças, ou cometeram crimes?
No início de carreira os jovens magistrados devem exercer funções de menor responsabilidade, sendo delegados do Ministério Público (agora pomposamente chamados procuradores-adjuntos) ou juízes auxiliares, não lhes cabendo decidir sozinhos. A experiência na função lhes dará capacidade para, a seu tempo, passarem a juízes de direito, e de facto, assumindo então a responsabilidade pela decisão.
Outra critica que faço é ao constante matraquear dos juízes, mesmo os mais maduros, nomeadamente na televisão e na rádio, quando não nos jornais e até na Internet. Que falem de bola, se lhes agradar, ou de música, mas nunca de assuntos relacionados com a Justiça. Ao juiz pede-se reserva, contenção de palavras e abstracção. Só dessa forma garante a lucidez e a perspicácia para bem decidir no exercício das suas funções.
«Tornadoiro», crónica de Ventura Reis
A mocidade de hoje, por força da alteração das leis que regulam o serviço militar, está absolutamente carente de uma educação firme e rigorosa que a prepare para as responsabilidades próprias da idade adulta.
O fim do serviço militar obrigatório foi a maior das asneiras cometidas pelos responsáveis deste país à beira mar plantado. Ao profissionalizar o exército o governo criou uma classe poderosíssima. Os militares que temos não são verdadeiramente filhos do povo, ao contrário do que sucedia quando todos os jovens eram obrigados a ir à tropa. São antes uma classe profissional empenhada na conquista de direitos e de privilégios.
O serviço militar obrigatório teve sempre uma função formadora para a juventude. Era na tropa que o rapaz tímido e introvertido despontava para a vida, aprendendo a desenrascar-se e a lidar com os outros. Era também ali que o jovem rebelde e indomável via refreado o seu ímpeto, sendo obrigado a sujeitar-se às duras regras da vida militar e a obedecer a quem legitimamente lhe dava ordens. Aquele que se portasse mal era castigado e a punição, com a devida dose e medida, preparava-o para o devir.
O serviço militar aprestava o povo para pegar em armas e defender o país de uma agressão externa. O manejo das armas, a aprendizagem das tácticas de combate, a imposição da disciplina castrense, levam a que todo o cidadão estivesse apto a servir a Pátria.
Relembro o essencial das regras de recrutamento militar que havia antigamente. O serviço militar era «pessoal e obrigatório». E dizia-se «pessoal» porque noutro tempo mais antigo um qualquer, se fosse rico, podia furtar-se à tropa enviando alguém em seu lugar. Mais tarde passou a ser unicamente permitida a substituição entre irmãos, mas depois também esta possibilidade caiu, passando a haver regras iguais para todos.
A idade do serviço militar era os 20 anos, sendo porém admissível o alistamento a qualquer mancebo robusto e alto, que completasse os 16 anos.
Ficavam livres da tropa os inválidos ou inúteis por achaque ou lesão indicada numa tabela. O mesmo sucedia com os que tivessem menos de 1,54 metros de altura. Estes últimos ficavam, ainda assim, na chamada «reserva do exército».
O sistema tinha o instituto do «amparo», que beneficiava os mancebos de cujo trabalho e rendimentos a família dependesse em exclusivo. Nestes casos a tropa era apenas obrigatória para efeitos de instrução, sendo que, no final da recruta e logo que o militar ficasse «pronto», passava automaticamente à disponibilidade, podem regressar a casa para sustentar a sua gente.
Era um sistema justo e benéfico para a mocidade e para a defesa do País. Os jovens, ao serem compelidos a cumprirem o serviço militar, recebiam instrução física e moral, que bem necessitavam para se fazerem homens aptos a enfrentar as dificuldades da vida.
Cada moço, ao ir à tropa e assim servir a Pátria, pagava o outrora chamado «imposto de sangue», porventura a mais pesada das contribuições suportadas pelo povo, sendo por isso fundamental distribuí-lo por todos.
«Tornadoiro», crónica de Ventura Reis
Reelegemos recentemente o actual presidente da república para um novo mandato de cinco anos, de que tomará posse no início de Março. Porém o Professor Cavaco Silva não passará de um verbo-de-encher, ao não ter poderes que lhe permitam exercer o magistério de um verdadeiro chefe de Estado: ser o moderador da vida política nacional.
A teoria da separação de poderes nasceu em meados do século XVIII, com o filósofo francês Montesquieu, e assenta na ideia de que a organização politica de um estado deve garantir a independência de três poderes fundamentais: o executivo, o legislativo e o judiciário. Esse princípio presidiu à feitura da nossa actual Constituição, que dá ao governo o poder executivo, ao parlamento o poder legislativo e aos tribunais o poder judicial.
Temos porém um presidente da república que é eleito directamente pelos portugueses, resultando daí uma grande legitimidade para a sua acção politica, mas que não detém nenhum dos poderes clássicos que o Estado deve ter e deve separar. É caso para perguntar: para que serve o presidente da república eleito, se não possui autoridade para agir enquanto chefe de estado, zelando pela causa pública?
Noutro tempo, durante a monarquia parlamentar, a Carta Constitucional outorgada por D. Pedro IV instituía um quarto poder, que somava aos três já citados: o poder moderador. Esse poder moderador pertencia ao rei, e não existia noutra lei fundamental senão na portuguesa.
E no que consistia o poder moderador do rei? Traduzia-se na nomeação de pares do reino para a câmara alta, na convocação extraordinária das cortes, na sanção ou no veto dos decretos e resoluções das cortes, na dissolução da câmara dos deputados, na nomeação e demissão dos ministros do reino, na suspensão de magistrados, no perdão das penas e na amnistia.
O poder executivo estava no ministério, ou seja, no governo do reino, onde cada ministro tomava conta da sua pasta, mas o rei acompanhava de perto a acção do executivo, intervindo quando o considerasse essencial.
Hoje o chefe de estado não possui poderes importantes, embora possa dissolver a assembleia da república e convocar eleições.
Falta-lhe o poder moderador, através do qual manteria o país na linha, não deixando que certos políticos irresponsáveis entrassem em devaneios. É pois necessário, a meu ver, mexer na Constituição, e recuperar o verdadeiro e autêntico poder moderador do presidente, pelo qual se aperfeiçoa o regime e se dá que fazer a um presidente eleito pelo povo, que deve agir em vez de passar o tempo em comes e bebes, festanças, passeatas e inaugurações.
«Tornadoiro», crónica de Ventura Reis
A Bandeira é o símbolo da Pátria, sendo estrito dever de todo o bom cidadão respeitá-la enquanto tal. Porém isso não sucede nos dias de hoje, em que a falta de civismo conduz ao desprezo pela Bandeira e ao consequente ultraje à Nação.
Até 1830 a Bandeira portuguesa era toda branca, com as armas reais ao centro, mas nesse ano um decreto assinado pelo Duque de Palmela determinou que de futuro a Bandeira fosse bipartida verticalmente em branco e azul, que eram as cores do escudo de D. Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal.
Com a revolta republicana, em 5 de Outubro de 1910, as cores passaram a ser o verde e o escarlate, ficando o verde do lado da tralha, com a esfera armilar na junção das cores, tendo no interior o escudo das armas manuelinas, em amarelo avivado de negro.
Ao contrário de hoje, dantes havia pleno respeito pelo simbolismo da Bandeira. Aquele que fosse descortês ou faltasse ao respeito à Bandeira era condenado a pena de prisão correccional de três meses a um ano e em multa correspondente. Em caso de reincidência a pena agravava-se seriamente.
Era absolutamente proibido empregar gestos, palavras, escritos, desenhos ou actos considerados irreverentes e ultrajantes para com a Bandeira. À passagem da Bandeira ninguém podia conservar-se sentado ou de cabeça coberta. Por outro lado, não era permitido que o Pavilhão Nacional flutuasse em qualquer barraca de feira, ou se arvorasse em casas de penhores ou em leilões, embora pudesse ser içado na fachada de prédios onde estivessem sedeadas firmas, associações e outras corporações. A lei impedia igualmente «o uso ou aplicação das cores nacionais e do escudo republicano, em tabuletas, impressos, reclamos, rótulos e cartazes de natureza comercial ou particular, ou em vestiários e mobiliários».
Ora a mocidade de hoje, a quem a escola não ensinou os valores pátrios, está-se marimbando para a Bandeira e até goza os velhos portugueses de lei, como eu, que ainda se descobrem quando assistem à passagem do estandarte verde-rubro ou quando ouvem os acordes o Hino Nacional.
É moda estampar as cores nacionais em tudo o que é roupa, incluindo camisolas, bonés, cachecóis e até roupa interior. Há tempos, num programa televisivo, apareceu uma mulher quase encarrapata, cobrindo as partes púdicas com umas minúsculas cuecas e um corpete, ambos com as cores da Nação. E a moça bailava e rodopiava, em trejeitos sensuais. Uma vergonha!
Claro que não poderemos pura e simplesmente represtinar essas leis de antanho, sob pena de metermos na cadeia metade da população, tantos são os casos de desrespeito à Bandeira, intencionais ou não. Mas algo temos de fazer para recuperarmos o respeito que os símbolos da Pátria nos merecem.
Os políticos, que perdem um tempo infinito em discussões estéreis, deveriam legislar no sentido da reposição do respeito pela Bandeira, definindo regras estritas, cujo incumprimento apenas deve ser permitido em dias de manifesto regozijo nacional.
Para finalizar deixo o registo de um elucidativo acórdão proferido pela Relação do Porto, em 13 de Dezembro de 1912, quase há cem anos: «Não é qualquer bandeira alojada num canto de uma taberna (para ornamentar esta quando aprouver ao taberneiro) que representa a Bandeira Nacional, nem é nas tabernas ao lado do ramo de loureiro que uma bandeira simboliza a Pátria… Antes o é tremulando nos mastros dos nossos navios, nas fachadas dos edifícios públicos e no meio dos nossos batalhões».
«Tornadoiro», crónica de Ventura Reis
A difícil situação financeira que o País atravessa, leva-nos a divagar acerca da desorientação em que se vive, motivada pelo deslumbramento com a modernidade e as novas formas de estar na vida.
Portugal tem um orçamento desequilibrado, e isso obriga-nos a certos sacrifícios. Convém porém deixar expresso no que consiste o tão propalado Orçamento do Estado, antigamente também designado por «Lei de Meios». Trata-se de uma proposta de lei que o Governo submete todos os anos à Assembleia da República, para que a discuta e aprove. Dum lado figura o rédito que o Estado espera receber e do outro o gasto que pretende realizar. Quando o rédito é igual ao gasto, temos um orçamento equilibrado, o que raramente acontece. Se o gasto é superior ao rédito, então falamos de um deficit, situação que em Portugal se tornou regra. Quando o rédito é superior ao gasto, temos um orçamento favorável, coisa que há longo tempo não sucede.
Como vivemos em deficit permanente, o Estado tem que se financiar para cobrir as despesas, valendo-se de empréstimos. É esse recurso sucessivo a suprimentos, junto dos cidadãos ou, sobretudo, junto de bancos, nomeadamente estrangeiros, que faz com que a dívida pública cresça a olhos vistos e o Pais se sinta penhorado.
Tal como sucede com as contribuições, também os empréstimos têm de ser autorizados pela lei. E é bem mais fácil a um representante do povo votar pelo empréstimo do que votar pelo agravamento dos impostos, pois estes têm de ser colhidos dos cidadãos e ninguém gosta que lhe metam a mão no bolso. Assim sendo, como é mais cómodo pedir emprestado do que cobrar dinheiro aos concidadãos, e como o Estado é esbanjador, aí temos Portugal em papos de aranha para enfrentar estes problemas financeiros.
Noutro tempo o Salazar, que era perito em Finanças, tinha o dinheirinho bem contado e as contas equilibradas. Isso era bom para as contas, mas muito mau para o país.
Contradigo-me? Nem por isso!
Podemos fazer uma comparação das contas e da vida do Estado com o dia-a-dia das pessoas. Antigamente, a maior parte das famílias vivia na pobreza. Quem, vindo da Província, optou por trabalhar na cidade (como foi o meu caso), começou por viver num quarto alugado e, mais tarde, numa casa arrendada. Só com o correr do tempo conseguiu aforro para comprar uma casinha, mas sem possuir automóvel, raramente indo ao cinema e nunca comendo em pensões. Era uma vida «levada do diabo».
Hoje a mocidade, logo que arranja um emprego, acode ao crédito e adquire casa, mobília, automóvel, e outras coisas mais, pagando tudo em prestações. Ora noutro tempo não existia crédito para as famílias e, consequentemente, as pessoas passavam mal.
O mesmo sucedeu em relação ao Estado, que, graças ao recurso ao crédito construiu estradas, pontes, escolas, recintos desportivos, casas de cultura, esbanjando também muito dinheiro em gastos escusados.
Todavia o Estado, tal como as pessoas, deslumbrou-se com a facilidade em chegar ao dinheiro e não calculou a sua capacidade para pagar o serviço da dívida, que são os juros e as anuidades. Foi o resultado do descuido e da irresponsabilidade, pelo qual todos teremos de pagar.
«Tornadoiro», crónica de Ventura Reis
Em Portugal o processo penal era antigamente instruído através do chamado «corpo de delito», que consistia no conjunto de actos e diligências policiais tendentes a esclarecer um crime e a descobrir o seu agente. Hoje a notícia do crime dá lugar ao inquérito, que facilmente se torna numa tenebrosa teia de procedimentos que de todo impedem a realização da justiça.
Apresentado qualquer facto punível a juízo, seguia-se a organização do corpo de delito, procedendo-se a exames e à inquirição de testemunhas. Só com corpo de delito formalizado havia processo-crime e procedimento criminal.
Face ao corpo de delito, a acusação fazia o seu «libelo» contra o réu e sucedia-se o julgamento. Era comum a nomeação de jurados, entre as pessoas do povo, que respondiam aos quesitos, seguindo-se a elaboração e leitura da sentença pelo juiz. As penas podiam ser de prisão maior celular, prisão maior temporária, degredo (em presídio ou colónia penal no Ultramar), prisão correccional e multa.
Um aparte para dizer que a pena de morte saiu da nossa lei em 1867, e as chamadas penas vis ou infamantes foram também desaparecendo progressivamente, incluindo-se aqui os açoites, marca de ferro quente, baraço, pregão, grilheta, pelourinho.
Entretanto chegou a modernidade e com ela a ideia de que o criminoso tem uma infinidade de direitos, ainda que tal ultraje o direito de justiça por parte da vítima. Vai daí mudaram-se as leis do processo penal. Ao réu chamam agora arguido e o corpo de delito deu lugar ao inquérito, a que se segue a instrução. As novas disposições trouxeram ao processo criminal uma verdadeira trapalhada que emperra o funcionamento dos tribunais e impede que se faça justiça. O excesso de garantias abriu espaço para as manobras dilatórias, que travam o andamento dos processos em tempo útil, ficando a justiça atirada para as calendas gregas.
Quem tiver dinheiro e constitua um bom advogado, batido na barra e nos enredos processuais penais, facilmente embrulha todo o processo, assim escapando à mão punitiva da Justiça.
Veja-se, como exemplo, o caso do chamado processo Casa Pia, em que uma série de criminosos de alto quilate conseguem emperrar de tal modo a máquina judicial a ponto de já não acreditarmos que algum dia o caso tenha um ponto final.
Volte-se pois ao procedimento célere do corpo de delito e à rápida e eficaz punição dos criminosos para que haja maior paz social.
«Tornadoiro», crónica de Ventura Reis
O conterrâneo Ventura Reis está de volta ao Capeia Arraiana. Pede porém para avisar que não tem e-mail, e não se dispõe a responder ao geral dos comentários que os seus artigos mereçam.
Administração do Capeia Arraiana
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