A humanidade pode entender-se como um simples indivíduo que vive sempre e continuamente aprende.

Manuel Leal Freire - Capeia ArraianaComo, aliás, escreveu um grande mestre, ela compõe-se mais de mortos que de vivos e cada um de nós não passa de infinitésimo aro numa cadeia ao menos perene. Vivemos todos sobre uma vasta sepultura. Temos, pois, de escutar a voz dos mortos, que é conselho e lei para os vivos.
Les vivants sont gouvernés por les morts, proclama Augusto Compte.
Palavra admirável, que traduzida em mais rasteira e menos urdida linguagem quer dizer que uma indestrutível solidariedade une as gerações e que, na hora breve que passa, não somos mais do que usufrutúarios das energias que nos criaram.
É na sombra estendida pelas sepulturas ao derredor de nós que encontramos afinal a fraga donde mana a oculta fonte da nossa sensibilidade e da nossa inteligência. Nem sequer nos pertencem os pensamentos que julgamos próprios. Falam por nós os mortos. Ninguém sente ou pensa desgarradamente; pensamos todos com os mortos que nos deram vida, todos sentimos com a terra a que se arrancou a árvore para as tábuas do berço onde fomos embalados; e ao simples clarão deste fácil enunciado, enche-se de riquíssimo valor o versículo que a igreja canta no Ofício de Defunto: «E eu disse ao sepulcro: tu és afinal o meu pai».
Esta longa transcrição de Almeida Braga, in «Paixão e Graça da Terra», serve-nos de pró1ogo para nos tornar menos estranha a persistência de elementos da cultura helénica no nosso folclore:
Por saber a minha sorte
Fui a Delfos e a Corinto
Anunciaram-me a morte
Em jarras de vinho tinto.

Todos temos nesta vida
Como Aquiles calcanhar
O mal não está na ferida
Mas em não a couraçar…

Ouvir estas duas trovas da boca de urn camponês ou de um pastor dos Hermínios só causará espanto a quem efectivamente se não tenha dado conta desta persistência de herança.
A Guerra de Tróia, primeira cena dum conflito que ameaça eternizar-se entre a Ásia e este seu apêndice que é a Europa, persiste, igualmente, no imaginário popular:
Quando se viu ao espelho
A bela Helena chorou
Por causa dum rosto velho
É que Tróia se arrasou.

Mas nao foi só a esposa de Menelau, causa belli, que sofreu os efeitos destruidores do tempo.
Pior sucedeu a Penélope:
Por fiado tanto linho,
Tantas rocas estripado,
Tinha o cabelo branquinho
O nariz aos pés colado.

Ulisses não sofreu menos aquelas depredações:
Quando, passados vinte anos,
A sua casa volveu,
Muitos foram os enganos,
Só o cão o conheceu.

Este símbolo merece tambem a atenção da poesia popular:
Os dois animais de Ulisses
Foram um cavalo e um cão;
O segundo lealdade
O primeiro só traição.

Aliás, a vida do grande argonauta continuou a ser objecto de numerosas e poéticas referências no imaginário colectivo. Desde o mito das sereias, às intervenções de Sila e Caribdis…Como, de resto, toda a poesia homérica, ainda tem prcsente, usando até uma terminologia que se julgaria privativa de eruditos:
Por cantar, não ser cantor,
E muito menos sou aedo,
Também não sou pregador,
Embora recite o credo…

Enfim a Europa vem de longe e mantém-se fiel aos três valores enunciados no terceto de Dante: Jesus, Palas Atena e Marte.
«Politique d’ Abbord – Reflexões de um Politólogo», opinião de Manuel Leal Freire