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A Finota era a jumenta velha que tinha na corte para as lidas caseiras. Fora possante e ligeira no andar, sem rival no povo, capaz de alombar com cinco feixes de ferrém e ainda com o catraio mais novo escarrapachado no coruto da carga, mas o tempo passou-lhe no pêlo e a velhice tornou-a de fraco préstimo.
Para as andanças do contrabando e do negócio lá tinha o macho, que era um vergalhudo, mas nas fainas da lavoura era a burrinha que pontuava. Só que o trabucar constante nas precisões deixaram-lhe mossa, e um dia, firmando-me no animal, notei que andava arrastando as patas, de focinho descaído, olhando o chão. O pêlo tornara-se ruçote e tomei fé de que se lhe avarangavam as patas.
– Tão afinada que era a burranca e agora está pr’áqui uma zonza de meter dó – disse-me a Belmira.
– Oh, mulher, põe-se com dono e merca-se outra!
– Tenho-lhe estima, home!.. e custa-me largar de mão a jumenta. É o mimo da canalha.
Como não era homem de demasias, uma madrugada aparelhei a burra e meti-me a caminho do mercado de Alfaiates. Cem mérreis foi o que pedi pelo animal. Mas quem queria uma burra velha, sem genica e com ares de já nem poder com a albarda? E aquela feição tristonha, as patas trôpegas, o focinho belfo, as orelhas murchas, o andar topinho…
Um negociante rogou que a desaparelhasse, para melhor exame, e pus-lhe a nu o lombo esquelético.
– É quase tão velha com’ó castelo! Atire-a pra uma barroca, que ainda serve de sustento aos lobos – disse-me.
Esmorecido, desci a parada a ver se alguém pegava ao negócio, mas não houve interessados.
E já ia de abalada quando se acercaram dois gitanos, que cobiçaram a burranca. Preado para me livrar do animal, fechei negócio por uma nota de vinte.
Algo amonado, que isto do vivo cria-nos estima, volvi a casa pensando em como acarear dinheiro para apreçar outro jerico mais forte e sadio.
Dias depois despachei dois carros de batatas para a estação da Cerdeira e, com o ganho, decidi satisfazer os rogos da mulher e dos catraios indo ao mercado de Vila do Touro, de coisa feita em trazer outra montada.
Embrenhado na feira do gado mirei o que havia. A parada estava alta para as burras mais maduras e não me agradava a ideia de levar um burranco novo e bravio. Antes queria animal amansado e afeito às fainas, de preferência uma burra, que já apanhara escaldão com burros, que só capados refreiam os maus repentes.
Após muito fairar, volvi a dar de chofre com ciganos. Um deles puxou-me pela aba do sartum para me empontar uma jumenta de pêlo luzidio e bem aparelhada, mas muito irrequieta. Fiquei de pé atrás, que nas tramas do negócio há que ter cautelas com o paleio daqueles adregas.
– Oh, compadre, não é brava a bicha! Está é pouco avezada a esta blandina, que é burra de trabalho. Puxa à carroça e até lavra junguida com uma vaca. Olhe que a merquei a um lavrador da Nave, home de muita lida!
Ora vai, ora deixa, acabei por cerrar o trato em duas notas de cem mérreis e, feliz da vida, conduzi o animal a casa, carregado com duas sacas de centeio que apreçara.
Ufano, mostrei à minha gente a nova jumenta. Acharam-na lustrosa, bonita de cabeça e azadinha para o carrego. Só o dianho da mulher lhe notou achaque.
– Ou puxas-te muito por ela na caminhada ou é chancana de têmpera. Tem tremores e quase bota fora os bofes de tanto arfar.
– Que diacho! Então não vês que marchou duas léguas ajoujada com dez arrobas?
Enfiei-a na corte, junto do outro vivo, e enchi-lhe a manjedoura de feno.
No outro dia, logo pela alba, soltei as vacas e a burra para as conduzir ao lameiro. Para meu espanto a jumenta tomou a dianteira e seguiu calmamente, tomando o destino certo. Lá chegada passou o portal e foi-se espojar na sombra de um freixo. «O raio da burra já parece conhecer o caminho e o lameiro», matutei. Chegando-me ao animal, examinei-o.
Atazanei-me e até o rosto se me afogueou. Fora aldrabado! Esta burra não era mais do que a minha Finota! Conhecia-lhe bem as mataduras das patas traseiras… Os ciganos lavaram-na, deram-lhe lustro e bachicaram-lhe o traseiro com aguarrás para ficar activa.
Paulo Leitão Batista, «Aventuras de um velho contrabandista»
leitaobatista@gmail.com
A cultura helénica transmitiu-se a Roma que, vencedora no plano militar e mais adiantada na técnica da administração, se viu, no entanto, civilizacionalmente subjugada.
Era o triunfo da máxima Graecia capta ferum victorem coepit.
Miscegenados, os padrões dos vencidos e vencedores corporizavam uma nova ideia que se expandiu por onde se estabeleceram as legiões.
Leão, na Ibéria, e Lião na Gália, serviram de núcleos propulsores a Ocidente; para o Norte, ocupou-se a Britânia, ao tempo ainda na caligem das grandes trevas; a Leste abateu-se Vercingegegorix, símbolo da primeira leva de bárbaros, impenetrável a toda a ideia de civilização; a Sul consumou-se ao delenda est Cartago e a derrota de Antioco a execução de Cleopatra e o oitavo saque de Jerusalém.
Começava, assim, a tomar corpo a ideia expressa no poema:
Venho já
Desde Maratona e Salamina
E nem a morte.
Nas Termópilas
Me cortou a rota trinfante
Os elefantes de Aníbal
Não me feriram mais
Do que o punhal
De Décio Junio Bruto.
Inimigos, conheci-os
Chamaram-se Alcibíades e Marco António…
Povos hoje de alto nivel civilizacional, apenas saíram da barbárie devido a Roma.
Transcreve-se do Bellum Gallicum, também chamado de Bello Gallico:
Horum omnium fortissimi sunt belges, propterea quod a cultuaque humanitade. Privinciae longissime absunt, minimeque ad eos mercatores, saepe commeant, atque ea, quae animos effeminant important…
Os supercivilizados belgas dos nossos dias provém de avós que, ao tempo de César, se revelavam como o mais hostil dos povos a qualquer ideia de cultura ou progresso.
Fortíssimos de corpo, viviam para a guerra contra os vizinhos: proximique sunt germanis, qui trans Rhenum incolunt, quibuscum continenter bellum gerant…
Vítimas dos seus instintos guerreiros, eram os germanos que tinham a infelicidade de lhes ficarem próximos…
Mais pacíficos não se revelavam ao tempo os suiços, a darmos créto ao mesmo César: Helvetti, reliquos gallos virtude praecedunt, quod fere quotidianis bellum.
Os britânicos, a quem é dedicado o Livro V não colhem rnelhores referências, como, de resto, sucedia também aos habitantes da Gália até agora não referidos: e com cuja enumeração se abre o livro.
Toda a Gália se divide em três partes: uma habitada pelos belgas de que já nos ocupamos; outra pelos aquitanos; a terceira por aqueles que na sua língua se designam por celtas e na nossa por galos.
Foi César quem lhe deu nome e a tirou da barbárie:
Gália ali se verá que nomeada
Com os cesáreos trinfos foi no mundo,
Que da Sequana e Ródano é regada
E do Garona frio e reno fundo.
Guerreiros, como os que se bateram ao lado de Caio Júlio César ou foram destacados para guarnecer as fronteiras do Império e partiam porque se julgavam portadores de uma doutrina e mensageiros de uma civi1ização foram os principais cabouqueiros desta segunda fase da Europa.
«Partimos em defesa dos direitos sagrados que nos são conferidos por tantos cidadãos instalados lá longe, tantos anos de presença do nosso auxílio e da nossa civilização», assim começava a carta de Marcus Flavinius, centurião da Segunda Corte da Legião Augusto a seu primo Tertullus que havia ficado em Roma…
A concessão do direito de cidadania a todos aqueles povos que se encontravam dentro dos 1imites, aliás vastissímos, do império; e a instituição do município, que ficou como a pedra angular da administração romana completaram, depois, a obra dos conquistadores.
A Europa conservou essa sábia criação do génio romano que ainda hoje constitui para a generalidade dos países que a integram a base ou mesrno a única forma aceitavél de regionalização.
Depois, veio o latim. Sofrendo, embora, o influxo das línguas locais, veio a revolucioná-las tão profundamente que algumas, sobretudo as do Ocidente, se tornaram irreconhecíveis e foram mesmo totalmente substituidas pelo latim, adaptado embora às circunstâncias da região.
Alias, mesmo o latim erudito, talqualmente o usavam Vergílio, Horácio e Vário, na poesia; César, Tito Livio, ou Cornélio Nepos, na narração histórica; ou Fedro, no fabulário, impôs-se de tal forma que ainda há pouco se podia considerar autenticamente a língua dos europeus.
Por todo o Continente, a língua latina era falada e entendida. Entre nós, André de Resende lastimava que Gil Vicenle não tivesse escrito, usando-a, os seus deliciosos autos. Como em Itália os altos espíritos se insurgiam contra o facto de Dante não ter preferido para a Divina Comedia o mesmo latim. E também o povo iletrado…
A tal ponto que não havia pessoa culta que encontrasse justificação para que o Altíssimo Poeta usasse o italiano.
Este culto tera chegado mesmo ao ridículo. Em Portugal, até os gatos miavam em latim:
Mas o gato que bem sabe
O gatesco e o latino
Lhe diz meus, mea, meum
Em vez de miau, miai, mio…
Ridicularizado, embora, ou mesmo censurado:
Da mula que faz him, him,
Da mulher que sabe latim,
E do cabra que faz mé mé,
Libera nos Domine…
Foi ele o meio de comunicação entre as camadas cultas da Europa e a língua usada nas universidades e nas sebentas…
Pela edificação de cidades, a construção de pontes, a abertura de estradas (omnes viae ad Romam tendunt), a instituição do município, as línguas novi-latinas, Roma assumia-se como a segunda grande construtora da Europa.
A primeira havia sido a Hélada; a terceira veremos que foi a Igreja…
«Politique d’ Abbord – Reflexões de um Politólogo», opinião de Manuel Leal Freire
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