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No primeiro de Maio concretizou-se um desejo das gentes do Concelho do Sabugal, que por diversos motivos, principalmente profissionais, residem no Fundão.
Reuniram-se no Restaurante «O Fernandes» mais de meia centena de aderentes a esta feliz jornada de confraternização, com o objetivo de vivências comuns. Ali estiveram gentes do Sabugal, Valongo do Coa, Vila do Touro, Alfaiates, Bendada, Casteleiro, Quadrazais, Foios, Rapoula do Coa, Ozendo, Aldeia da Ribeira, Aldeia da Ponte, Santo Estêvão, Rebelhos, Rebolosa, Forcalhos, Bismula, Soito e uma ou outra que a memória me atraiçoa.
Contámos com a presença do Dr. Paulo Fernandes, Presidente da Câmara Municipal do Fundão, com raízes no Concelho do Sabugal, que falou sobre as dificuldades sentidas pelos nossos avós e pais, fazendo-os emigrar. Deixou uma mensagem de esperança e de cada um contribuir dentro das suas capacidades, para potenciar as inúmeras qualidades que estas terras têm.
Um dos organizadores, António Vicente Leal, natural da Bendada, realçou o significado deste encontro num estreitar de laços fraternos e para nos conhecermos melhor.
O Ezequiel Alves Fernandes, apresentou em Power-point, um documentário, onde percorreu o Concelho do Sabugal na vertente histórica, salientando os monumentais, Castelos do Sabugal, Vilar Maior, Sortelha, o Convento de Sacaparte, as Pontes de Sequeiros, e Vilar Maior. Nos aspetos culturais a Capeia Arraiana, a religiosidade das Festas que celebram a Padroeira, as Irmandades, com destaque para a de São Sebastião da Bismula, as festividades do Natal, Semana Santa e Entrudo.
Não esquecendo o grande rio Côa, a Serra da Malcata, e toda a mater naturam. No sector gastronómico realce dos enchidos, o célebre bucho, as trutas, o cabrito, os queijos, o mel e os produtos artesanais.
As quadras e metáforas inseridas, foram recolhidas das Obras Literárias do Dr. Manuel Leal Freire, e as fotografias da autoria de Francisco Monteiro, Ezequiel Fernandes e João Fernandes. Fechou-se com chave de oiro este I Encontro, ao som da canção do Adeus…
António Alves Fernandes – Aldeia de Joanes
A raia ribacudana é, desde tempos remotos, uma terra de gente bravia, criada entre penedias e chavascais. Vivendo num território algo inóspito, onde impera o barrocal e o clima é de extremos (bem ilustrado no famoso rifão: nove meses de Inverno e três de inferno), o íncola raiano viveu isolado durante séculos, sujeito a si mesmo.
A proximidade da linha de fronteira de Portugal com Leão, que ora avançava ora recuava, trouxe a estas terras a actividade castrense, hoje ainda bem visível pelo elevado número de castelos e fortalezas existentes. Era pois num ambiente de guerra, factual ou pairando como ameaça real, que o raiano se habituou a viver, tendo de proteger-se de tudo e de todos.
Com a prevalência de Portugal no domínio do território, que se seguiu ao Tratado de Alcanizes, em 1297, o povo sentiu maior acalmia, mas passou a sofrer a pressão do poder político e administrativo que o queria manso, trabalhador e cumpridor de seus deveres. Assistiu atónito à instalação de câmaras, cadeias, igrejas, conventos, mosteiros e um vasto conjunto de repartições públicas, tudo sustentado pelos magros proventos do seu trabalho. O campónio, que fossava a terra de sol a sol, na ânsia de sobreviver, tudo teve afinal que custear com o seu magro pecúlio.
Comia o que a terra dava, sem outros mimos. Em esforço colectivo, ergueu pontes e pontões, troncos de ferrar animais, eiras de malhar cereais, moinhos e engenhos de tirar água, tudo na perspectiva de melhorar os equipamentos de produção, na ânsia de uma vida melhor. Mas os zelosos funcionários do Estado montaram-lhe nas barbas a terrível máquina burocrática. Os paços do concelho e as repartições passaram a representar o poder político, que o oprimia, enquanto pelourinhos e forcas representavam a pesada mão da justiça, que o castigava impiedosamente.
E de que se ocupou este homem quase selvagem que se fixou em Riba-Côa? Pois lavrou e semeou a terra pedregosa, andou de pau em riste na arte da caça, pescou armando o galrito, emparelhou pedras para construir habitações. Pegou também em armas para servir nos exércitos, comerciou por onde pôde e, os mais engenhosos, dedicaram-se a artes essenciais, como a carpintaria, a frágua e a alfaiataria.
É pois muito venturoso este povo, que sempre andou envolto em acções de audácia. O maior desafio foi a tentação do proibido. Se lhe era vedado atravessar a fronteira para intercâmbio com os povos do outro lado, o raiano não se acobardou e desatou a cruzar a raia, na inquietação constante de comerciar com Espanha para arranjar sustento. Como bem lembrou o pensador bismulense Manuel Leal Freire, o contrabando era um delito, por força das leis vigentes, mas para o povo crente tal prática nunca foi pecado. Não acorria a estes homens valentes, que pela calada da noite atravessavam carregados a raia, declararem em confissão religiosa, perante o abade, terem errado por contrabandear.
Mau grado a amenização da fome pela via da candonga, que sempre dava algum ganho suplementar, nem assim o povo raiano conheceu a felicidade. Os tempos eram difíceis e trabucava-se a valer, cavando os terrenos, carrejando pedras, desbastando matagais, ceifando e malhando os cereais
Depois, quando todas as esperanças de uma vida melhor na sua própria terra se desvaneceram, deu-se a grande abalada que condenou as terras a uma aridez progressiva. Cansados de tanto lutarem em vão pela vida, os homens deixaram as famílias e deram o salto para franças e araganças, na busca de melhores oportunidades. Foi um acto de coragem, movido pelo desespero de uma vida de miséria que não lhes garantia futuro.
A emigração foi, a seguir ao contrabando, a grande aventura colectiva do povo raiano. Entregou-se a passadores e engajadores, muitos sem escrúpulos, e aceitou lá longe todo o género de trabalhos, sem reivindicar condições, sem exigir salários justos: o que vinha era sempre melhor do que o nada. Resignado, adaptou-se ao novo mundo.
Mas o nosso raiano também gosta da farra e do divertimento. Desde logo no jogo, uma das suas grandes perdições. Jogo a dinheiro, nunca a feijões. Também, nas festas e romarias anuais onde nunca faltava e onde comia rancho melhorado, mau grado as dificuldades do quotidiano.
Porém a maior valentia nestes actos lúdicos estava nas touradas raianas, no desafio de pegar os bois agarrado à galha do forcão. Em tempos idos os touros eram desviados das campinas de Espanha, de onde eram conduzidos às aldeias raianas portuguesas, para ali serem lidados com o forcão. A juventude agarrava-se à base de madeira, de forma triangular, em cujo manejo demonstrava a ousadia, numa prática ancestral e única que muito prezava manter.
O homem raiano é também temente a Deus e, sobretudo, às más artes do Diabo. Todas as tardes recolhia a casa ao toque das Trindades para rezar uma jaculatória. Aos domingos descia à igreja. Ia nas romarias de cruz alçada, rezando ao Santíssimo pelos mortos e pelos vivos e implorando sorte nas lidas da vida. Na Quaresma cumpria a rigor as restrições canónicas e fazia a desobriga pascal dizendo ao vigário o rol dos pecados.
De mistura com o culto religioso, o raiano vê nas festividades a ocasião para dar largas à diversão. Por isso as festas em honra da Senhora e dos Santos têm tanto ou mais de profano do que religioso. Para ele uma peregrinação assume a forma de romaria, onde não faltam as flores e as roupas garridas, a concertina e o acordeão, o vinho que jorra dos pipos e as suculentas merendas que se comem à sombra das frondosas árvores.
O que concluir do homem raiano, do seu ethos? Talvez se lhe aplique que nem uma luva a receita de José Osório da Gama e Castro (Diocese e Distrito da Guarda, Porto, 1902) sobre a índole dos beirões: «são caracteristicamente lhanos e afáveis, dóceis, hospitaleiros, em extremos laboriosos, e amantes da ordem, que muito convém à sua actividade agrícola e industrial».
Ou quiçá a visão mais realista de Aquilino Ribeiro (Guia de Portugal, Lisboa, 1924), também sobre o Beirão: «É empreendedor, vivo, laborioso (…). Ao mesmo tempo é industrioso, por vezes astuto até à manha, económico, mas sem usura, de boa memória para o bem e para o mal. Daqui ser animado de dedicações ou de ódios que apenas o sacrifício ou a desafronta satisfazem. (…) É esmoler, religioso, mas de uma religiosidade milagreira ou de arraial, marcado raramente de fanatismo».
Melhor nos serve a palavra do maior etnógrafo de Riba-Côa, Joaquim Manuel Correia (Memórias sobre o Concelho do Sabugal, Lisboa, 1946), acerca do carácter das suas gentes: «Povo religioso, sem grandes fanatismos, é, como os vizinhos espanhóis, alegre, divertido, sentimental e apaixonado pela música, poesia e pelos touros».
Paulo Leitão Batista
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