Há tempos «pesquei» da estante um livrinho da minha juventude, que agora tenho à cabeceira e ando a reler. Trata-se do Hamelet de Shakespeare.

João ValenteInevitavelmente, relendo o Hamelet, cheguei ao capítulo, em que ele rejeita o amor de Ofélia, para seguir o seu destino, entrando num jogo de palavras e conflito crescente com o sábio Polónio, para depois morrer à espada e veneno do filho deste, Leartes
Esta passagem do texto, sendo a mais citada da obra, é quanto a mim a chave do enredo, mas não com o sentido que muitos estudiosos lhe dão, porque o eixo do enredo está no confronto entre Hamelet e o sábio Polónio e não entre Hamelet e o incestuoso e assassino rei da Dinamarca.
Chegado aqui na trama, Hamelet cai em si, e dando-se conta que está numa encruzilhada da vida (Ser, ou não ser – eis a questão) tem de optar por dois caminhos: o do homem sábio, ou do homem louco para atingir os seus objectivos:
«Ser, ou não ser – eis a questão. Será melhor nobreza de alma sofrer a funda e as flechas da fortuna ultrajante ou pegar em armas contra um mar de infortúnios, pondo-lhes um fim? Morrer… dormir… nada mais. È belo como dizer que pomos fim ao desgosto e aos mil males naturais que são a herança da carne. È esse um fim a desejar ardentemente. Morrer… dormir… dormir… e talvez sonhar! Sim, eis o espinho. Pois que sonhos podem vir desse sono da morte, depois de libertos do túmulo da vida? Eis o que deve deter-nos. Eis o que nos faz a consideração da calamidade de uma tão longa vida. Pois quem suportaria as chicotadas e as mofas do mundo, a tirania do opressor, a insolência dos orgulhosos, as dores do amor desprezado, as delongas da lei, a arrogância do poder, o desdém que o mérito paciente recebe dos indignos, quando podia buscar a quietude com um simples estilete? Quem suportaria tais fardos, protestando e suando numa vida dura, se não fosse o receio de qualquer coisa depois da morte, dessa região não descoberta e da qual nenhum viajante regressa, que lhe quebranta a vontade e faz que antes queira sofrer os males da Terra que voar para outro de que nada sabe? Assim, a consciência faz de nós uns covardes; assim a cor primitiva da resolução descora perante a pálida luz do pensamento e empreendimentos de grande porte e importância desviam a sua rota e perdem o nome da acção. Acalma-te agora bela Ofélia! – Ninfa, nas tuas preces, recorda todos os teus pecados.»
A sabedoria faz de nós uns covardes, segundo Hamelet. O sábio refugia-se nos livros, aprende as abstracções e por defeito de raciocínio, hesita na acção, porque está sempre preocupado com a verdade. O louco ao enfrentar a realidade e os perigos, ao ousar sem preocupação do amanhã, adquire o bom senso, o saber resultante da experiência, que é o melhor de todos. Já dizia Homero, apesar de cego, que «o louco aprende à sua custa».
Por isso o sábio é desprezado porque nada compreende da vulgar existência humana. Não foi a acusação de sabedoria que condenou Sócrates a beber cicuta?
É pois aqui que bate o ponto da fala de Hamelet. A verdadeira sabedoria consiste em procurar não saber mais do que aquilo que não está na natureza dos homens, em ir na corrente da maioria, e se possível anonimamente, sem errar. Só isso nos faz suportar as mofas do mundo, a tirania, a insolência o desprezo. É a perfeita loucura? Talvez, mas é assim que se representa a comédia da vida.
Hamelet chegou precisamente a esta conclusão. Refinadamente, mas chegou! E a seguir põem-na em prática dando largas a esta sua loucura, (ou será bom senso?) no diálogo que trava com Ofélia:
«Vai para um convento. Porque havias de ser uma fonte de pecadores? Eu próprio sou relativamente honesto. … Sou muito orgulhoso, vingativo, ambicioso… para que hão-de os homens como eu rastejar entre o céu e a terra? Somos todos refinados patifes. Não acrediteis em nenhum de nós. Vai para um convento… Se te casares, rogar-te-ei esta praga como dote: que sejas casta como o gelo, pura como a neve. Nem assim escaparás à calúnia. Vai para um convento Vai! Adeus! Ou se quiseres casar, casa com um louco! Pois que os homens de juízo sabem bem os momentos que deles fazeis. Vai para um convento, vai, e depressa. Adeus.».
Hamelet chegou à verdade, pelo caminho da loucura. Porque é louco atingiu o senso comum. È mais sábio que todos os «homens de juízo». Por isso Ofélia conseguirá enganar estes, que são os verdadeiros loucos, mas a Hamelet, o falso louco, não, porque tem bom senso. E cada vez mais demente, Hamelet leva às últimas consequências o seu discurso, porque como dizia Eurípedes «o louco é louco»; diz tudo o que lhe vai na alma. Hamelet despreza o amor de Ofélia e di-lo sem hesitar:
«Também ouvi falar bastante das vossas pinturas. Deus deu-vos um rosto e vós fazeis-vos outro. Passeais, meneai-vos, falais com afectação, pondes nomes às criaturas de Deus e afectais ignorância para cobrir a vossa insensatez. Não quero mais isso, que me pôs louco. Não teremos mais casamento… vai para um convento.»
Trocando por miúdos: Hamelet chama a Ofélia frívola de mentirosa, coquette, cabeça de vento. A mentira em que ela o iludia, essa sim é que o pôs louco. Esta loucura, a má, é que ele não quer mais.
E Ofélia, que lá seria frívola, mas não era parva, apercebendo-se que Hamelet abrira finalmente os olhos e que dali já não leva nada, lamenta-se, acusa o toque:
«Oh nobre espírito transtornado! … eu a mais desgraçada e triste das mulheres, eu que saboreei o mel das suas doces palavras, vejo agora esta inteligência nobre e soberana desafinada e rouca como um sino rachado, esse corpo e esse rosto sem par da mocidade em flor emurchecido pela loucura. Oh pobre de mim! Oh pobre de mim! Visto o que vi e ver o que vejo!»
O que Hamelet, no fundo pretendia, era enganar Polónio, expião e conselheuiro do rei, para levar a cabo a sua vingança. O amor de Ofélia era marginal nesse caminho e uma ilusão. Para conseguir os seus objectivos, tinha que ser louco e quanto mais louco melhor. E nem toda a loucura é prejudicial por definição. A de Hamelet não era seguramente porque tinha um objectivo: A vingança! Há loucuras e loucuras! Horácio não dizia: «Não sou eu o joguete de uma saudável loucura?» e Cícero numa carta a Ático não dizia que «a demência era um dom dos deuses, que permitia o esquecimento dos males?»
E é tão saudável a loucura!… Salomão, cuja sabedoria é lendária, dizia que a «loucura faz o gáudio do louco», isto é, sem a loucura a vida não faz qualquer sentido; E noutro passo, que «o coração do sábio está com a tristeza, a do louco com a alegria». O sábio é infeliz, o louco feliz.
«Ser ou não ser» – é pois uma excelente questão, porque nela se contém a chave da sabedoria!
João Valente