Ainda era rapazote quando, numa noite de lua nova, vinha de Espanha nas lidas da candonga na carava do meu machito, azangado com uma carga de fazenda. Conhecedor dos atalhos, afoitara-me a usar o macho no carrego da mercancia, ciente de que carabineiros e guardas não dariam fé da passagem.

Avezado a menear no breu nocturno, lá ia entre chavascais, por carreiros esconsos onde o mais afinado não se afoitaria. Mas a um passo, o raio do macho assustou-se e deu pulo para a banda, caindo numa barroca.
Olhei ao deslado e nada vi nem ouvi que justificasse o sobacão do animal, que me arranjara contratempo. Bem lhe puxei pela prisão, a ver se o ajudava a sair do barranco, mas a coisa estava jossa.
Magicava em ir pedir uma demão ao povo mais próximo, quando suou uma voz forte, vinda do negrume:
– Tem-te quedo, ladrão!… Larga a carga!
Lancei o olhar e reparei nuns botões a luzir. Ia agarrar a cachaporra que sempre me acompanha, quando me seguraram o braço…
– Fica sossegado Tosca, que desta não escapas.
Era o Amadeu Cuco, cabo da Guarda Fiscal, que ainda há dias me fizera largar o carrego, mas que nunca me puzera as mãos em riba. Desta levara a melhor, o alma de seiscentos, pois ali me tinha rodeado, da companhia de mais duas praças.
– Agora filei-te! Um dia tinha de suceder… Estás tramado!
Ainda cuidei em dar salto para os silvados, onde sabia que me não apanhariam, mas deu-me dó deitar à margem o meu pobre machinho, companheiro de tantas labutas, e apus-me, com a ajuda dos fuscos, à tarefa de o retirar do chavascal. Aliviámo-lo da carga, atámos uma corda ao rabicho da albarda e, puxando todos à mesma vez, arrupámos o animal da barroca.
Já com a carga refeita no lombo da besta, levaram-me a caminho das Batocas, direitinho ao posto.
Pelo caminho pus-me a malucar em como sair daquela embrulhada. E não me atarantei. Sendo cristão juramentado, sabia que Deus escreve direito por linhas ínvias, e acreditei que me haveria de escapulir.
Já amanhecia quando avistámos o casario das Batocas, ocasião ugada para desengaçar o meu plano. Cheguei-me à roda do Cuco e dei-lhe falas mansas:
– É que está um códão! Isto só aquenta com um gorcho de aguardente.
– Deixa-te ir caludo. Anda ligeiro que já aquentas.
O lafaruz não queria dar parte de fraco.
– Pinga da boa tem-na lá a Maria Fachana. Aquilo deixa um home a botar fumo… Damos lá uma saltada que sou eu quem paga. Não é agora por mor de dois tostões que vamos deixar de tomar o mata-bicho. E vós bem o mereceis, que sois gente de bem e cumpridores do dever.
Os outros fuscos, que gostavam da pinga, davam tento ao que eu dizia.
– Ora, e não hemos de lá ir, nosso cabo? Sempre se aquenta o corpo! – disse um deles ao comandante.
O cabo, que também era amante da pinga, concordou e, a meio do povo, entrámos na taberna.
– Vamos lá, rapaziada! Um dia não são dias, e o de hoje é de beber.
Ali se prantaram a deborcar toda a copa de aguardente que apanhavam entre os dedos. Pela minha parte, ia-lhes dando paleio e mantendo a copita cheia, fingindo que bebia. Demos ao lambarão sobre o tempo, a lavoura e a vida difícil das autoridades nestas terrinhas de Cristo, tão a deslado do mundo. E a ti Maria sempre de cabaça pronta, atestando os copos aos meus captores, parecendo adivinhar que os queria bem encharcados de aguardente.
Quando os apanhei já bem toldados e a cantar à desgarrada, escancarei as portas e ala, botei o pé para fora da venda. Ainda tive tempo de desatar o macho, e dar-lhe uma palmada na traseira, sabedor de que me levaria a carga ao curral. E larguei a correr para o lado contrário ao que tomara o macho, galgando que nem uma lebre levantada do poisadoiro.
O cabo Amadeu, ao dar fé no imbróglio, veio à rua e ainda deu uma carreira no meu encalço, berrando para uns homens que vinham ao cimo do povo:
– Agarrem-no! Agarrem-no! C’ainda tem de pagar mais umas copas.
Era o agarras! Estava livre e salvara também a montada e a carga daqueles rapinantes.
Paulo Leitão Batista, «Aventuras de um velho contrabandista»

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