Talvez não imagine, caro leitor, que a palavra fetiche que nós usamos vem directamente do francês «fétiche», mas que os franceses criaram essa palavra a partir do nosso «feitiço»…

Há tempos falei aqui de um mito, outro fetiche: o talefe. Hoje é a vez de me referir a mais um desses nossos mitos: a Ribeira.
A Ribeira do Casteleiro foi a nossa piscina, o nosso jacuzi mas também o nosso campo de jogos e de pesca: um local de encanto, de facto.
Para muitos dos leitores do «Capeia» terá sido «a Côa». Para nós, no Casteleiro, foi a nossa «Ribeira».
Nada mais adequado, então, do que eu vir aqui chamar à Ribeira do Casteleiro um fetiche, um local de feitiço, de encantamento – e já explico porquê.
Para mim e para as pessoas da minha idade, a Ribeira era ao mesmo tempo um mito e uma atracção irresistível.
(A minha tentação é deixar a maiúscula da palavra Ribeira, escrever simplesmente «ribeira» e fazer como recomendava Rodrigues Lapa, o gramático revolucionário dos meus tempos juvenis: «Entre o estilo e a gramática, morra a gramática».
Porque na ribeira é que se está bem
Acabavam as aulas?
Ribeira.
Era dia sem escola?
Ribeira.
Uma escapadela?
Ribeira.
Vamos nadar?
Açude da ribeira.
Uma corrida?
Ribeira.
Porque na ribeira é que se está bem.
Quando crescemos e já tínhamos mais «autonomia», a ribeira era o nosso viveiro de barbos pequeninos e de rãs: íamos para lá apanhar esses seres inocentes e trazê-los para em casa se fazerem as patuscadas de pernas de rã e de peixinhos fritos.
Havia quem para tanto usasse métodos proibidos e anti-Natureza: fosse à bomba fosse com um produto estonteante chamado «coca»… O «embude» já era um método natural: «substância (espécie de cicuta) que se deita na água para entontecer o peixe, de modo a apanhá-lo depois à mão» (in Dicionário on line).
Nessa altura tudo era normal na ribeira.
Porque na ribeira é que se está bem.
Para as famílias, a mesma coisa:
– na ribeira é que se lava a roupa;
– na ribeira é que se estende a roupa ao sol;
– na ribeira é que se comem uns «petiscos»;
Porque na ribeira é que se está bem.
Do Casteleiro até ao mar
Nós chamávamos-lhe Ribeira do Casteleiro. Melhor: quando, mais crescidinhos, já estávamos longe da terra, fora da região para estudar, trabalhar… para o que quer que fosse, chamávamos-lhe Ribeira do Casteleiro. Mas ela vem da Serra do Mosteiro, da parte de trás da Serra, melhor: da Ribeira da Nave, passa ao pé do Poio, atravessa as Alvercas, vem pela Ponte da Estrada Nacional, pela zona da ponte do Cemitério (que relvado obsessivo, aquele, à beira da água), vai pelo local a que eu sempre chamei propriamente «Ribeira», ao pé do Alvarcão, serpenteia pelos prédios todos até ao Tinte e segue o seu caminho: vai juntar-se à Ribeira da Meimoa, para depois seguirem ambas para o Zêzere, seguirem para o Tejo, desaguarem em Lisboa e penetrarem no Atlântico…
Faço notar duas coisas:
– Os documentos do Padre Leal, de 1758, dedicam à ribeira e seus afluentes (três ribeiros) mais de 40% das linhas de interesse de todas as respostas que ele deu nessa data ao Marquês de Pombal. Ele era o Cura do Casteleiro, não esquecer.
– Há nos textos do Padre Leal referência a uma tinturaria, que à data se chamava simplesmente «um tinte» – e essa fabriqueta ficava à beira da ribeira, no sítio ainda hoje chamado Tinte. Ainda agora o referi, algumas linhas aí em acima.
Por estas e muitas outras razões, como seja, a título de exemplo, a genética atracção que a água na Natureza exerce sobre os humanos, a Ribeira (do Casteleiro) foi um dos nossos fetiches de meninice e juventude, há muitos anos atrás.
«A Minha Aldeia», crónica de José Carlos Mendes