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O ressurgimento do racismo na Europa constitui um fenómeno deveras preocupante. Parece que a memória colectiva deveria ter ainda muito frescos os terríveis acontecimentos que o nazismo desencadeou, há pouco mais de 60 anos. Os horrores do holocausto nazi deveriam ter vacinado os europeus contra anti-semitismos e xenofobias de todo o tipo. No entanto, aquilo a que se assiste é a um despudorado negacionismo, à tentativa absurda de reinventar a História, como se o nazismo nunca tivesse existido.
Algumas vozes bem-pensantes tentam desdramatizar o actual surto racista, atribuindo-o apenas a jovens skins exibicionistas ou a ultra-nacionalistas boçais. Porém, deixam na sombra o neo-nazismo na Alemanha e na Áustria, o neo-fascismo na Itália e o fenómeno Le Pen em França, a pátria da «liberté, egalité et fraternité», a terra de Voltaire e da tolerância. É preocupante constatar que quase um quarto dos Franceses vota num homem que considera o holocausto um fait-divers sem importância histórica, ao mesmo tempo que acirra os ânimos contra todos os estrangeiros, sobretudo os das «raças» africanas. Tudo isto sem falar do inenarrável presidente do Irão.
E, no entanto, quantos «nativos» europeus podem garantir qual é a sua «raça»? Aliás, o próprio conceito é hoje recusado pela moderna antropologia. Basta lembrarmos que toda a humanidade descende de seres que, há apenas duzentos mil anos, tiveram o seu berço na África. Mesmo sem irmos tão longe, basta termos presente a contínua miscigenação a que as sucessivas migrações submeteram a população europeia. Somos todos mais ou menos descendentes de celtas, teutões, etruscos, latinos, judeus, godos, hunos, germanos, árabes, berberes, negros, etc.
Veja-se o nosso caso particular: a partir do século XV foram trazidos para Portugal muitos milhares de escravos africanos. Em 1551, só na cidade de Lisboa existiam dez mil escravos negros. Onde estão agora? Completamente disseminados na população. Os seus descendentes podemos ser qualquer de nós: eu, o leitor, o seu vizinho ou o skinhead arrogante que espanca um caboverdiano indefeso.
E que tem tudo isto a ver com o título desta prosa? Regressemos ao fio da meada: o leitor sabia que o marquês de Pombal era descendente de um clérigo e de uma escrava negra? Exactamente. Sebastião José de Carvalho e Melo, conde de Oeiras e marquês de Pombal, ministro omnipotente de el-rei D. José!
Ora aqui temos algo que podia calar o mais aguerrido dos aprendizes de racista da nossa praça: Portugal foi governado, durante 27 anos, pelo descendente de uma escrava negra! E ninguém se atreve a negar-lhe inteligência, clarividência, cultura. Foi uma personalidade enérgica, um espírito determinado, um homem empreendedor, cuja marca sobre o nosso percurso colectivo é ainda hoje bem visível, embora polémica. Um homem que submeteu a nobreza do mais puro e ancestral «sangue azul», eliminou todas as resistências eclesiásticas ao despotismo iluminado e promoveu a ascensão da burguesia mercantil, industrial e financeira. A personalidade de Pombal foi tão vigorosa e dominadora que o povo lhe chamava «o Carvalhão» (daí o nome do Arco do Carvalhão, em Lisboa, numa zona situada em antigas terras do Marquês).
Em 1761, Pombal proibiu o tráfico esclavagista na metrópole e declarou todos os escravos existentes em Portugal livres e forros. Se algum destes libertos conhecesse a ascendência do grande ministro teria por certo abençoado o ventre da escrava que gerara o antepassado de Sebastião José de Carvalho e Melo.
Quando falamos de racismo e de racistas, convém não esquecer que Hitler teve uma bisavó judia. E, quem sabe, talvez o senhor Le Pen tenha tido uma tetravó argelina! A moderna biologia pode hoje traçar com toda a facilidade o percurso retrospectivo dos nossos genes e até provar com segurança que o mais empedernido e dogmático dos skins é afinal descendente de Gengis Cão!
«Na Raia da Memória», opinião de Adérito Tavares
ad.tavares@netcabo.pt
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