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O título da crónica que se segue (e só o título) foi-me sugerido por um subproduto televisivo transmitido pela RTP1 há alguns anos uma história lamecha, do género «romance da Coxinha», uma das múltiplas novelas com que quotidianamente três canais nos ensaboam o juízo. Há tempos contei nove mas pequei por defeito: são quinze!
Fernando Pessoa foi um homem constantemente torturado por uma angústia metafísica que lhe atormentou a existência. Num dos seus mais conhecidos poemas, Tabacaria, céptico, amargo e desiludido, confessa: «Vivi, estudei, amei e até cri / E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.» Pessoa inveja os ignorantes por serem ignorantes da sua ignorância. Inveja a rapariga pobre e suja que come chocolates, porque «não há mais metafísica no mundo senão chocolates». Inveja «o Esteves sem metafísica» que sai da tabacaria metendo o troco na algibeira. E, todavia, tanto Pessoa como Mário de Sá-Carneiro interrogam-se sobre o que seja a autêntica felicidade. O inocente, o louco, o ignorante, serão felizes? Que é ser feliz sem o saber? Uma pedra será feliz? Para se ser verdadeiramente feliz não será indispensável consciencializar a felicidade?
Será verdade que a sabedoria mata a felicidade? Ao comer a maçã, Adão foi condenado à infelicidade? Será a felicidade inatingível? E será mensurável? Os cinco escudos que a minha madrinha Vieira me dava no dia da festa da Senhora dos Milagres, lá em Aldeia do Bispo, proporcionavam-me uma felicidade incomensuravelmente maior que os milhares de euros que, eventualmente, me pudessem sair amanhã na lotaria. Por outro lado, hoje, ler um bom livro, ver um bom filme, ouvir um concerto, visitar Paris, Florença, Siena, Praga ou Toledo (as minhas cidades preferidas!), comer uma boa refeição em boa companhia, dão-me uma felicidade que na infância ou na juventude não existia. Em cada idade existe uma felicidade diferente. Ou, glosando Pirandello, é legítimo dizer que para cada um existe a sua felicidade. Um golo, no momento mais decisivo do mais importante desafio de futebol deixa-me perfeitamente indiferente. Em contrapartida, proporciona momentos de indiscutível felicidade a muitos futebolómanos.
Existem, é certo, causas óbvias de felicidade ou de infelicidade ter ou não ter saúde, ter ou não ter acesso aos confortos da vida moderna, possuir ou não uma família estável, gostar ou não do trabalho que se faz, viver ou não com um mínimo de «qualidade de vida». Depois, a personalidade de cada um faz a diferença. Há os eternos descontentes e insatisfeitos e aqueles que se satisfazem com muito pouco e que valorizam as pequenas alegrias da vida. Tive um colega, o Henrique, que ficou cego e sem um braço devido à explosão de uma granada. Já depois do acidente, licenciou-se em História e tornou-se um professor apreciado e respeitado pelos seus alunos. Em casa, era ele quem tratava da mãe, idosa e entrevada. Tudo isto, que seria motivo para grande infelicidade, faz dele um homem lutador, que enfrenta quotidianamente a adversidade com uma coragem admirável. À sua maneira, é feliz. Lembra-me, aliás, aquela história de um fulano que sentia uma grande frustração por ser baixinho e a quem passou o desgosto quando um dia encontrou um homem sem pernas.
O ser humano é de uma complexidade espantosa. A própria infelicidade de uns pode ser causa indirecta de felicidade para outros. Teríamos a Nona Sinfonia sem a surdez de Beethoven? Ou o Só de António Nobre sem a sua tuberculose? Ou os quadros de Van Gogh sem a sua loucura? Ou a filosofia de Nietzsche sem a sua sífilis?
É um lugar comum dizer-se que a riqueza e o poder não trazem a felicidade (embora se acrescente que «ajudam muito»). Na verdade, há pobres felizes e ricos extremamente infelizes. Rico ou pobre, nobre ou plebeu, sábio ou ignorante, belo ou feio, qual é o passaporte para a felicidade? Ninguém sabe. Há quem nasça para sofrer. E há até quem busque deliberadamente o sofrimento e o martírio como sublimação da existência e expiação das faltas cometidas. A outros, a vida estende-lhes uma passadeira dourada desde o berço até à cova. Existem pessoas que possuem tudo riqueza, poder, sabedoria, beleza, e são (como se diz na nossa terra) uns «desinfelizes». Onde está o segredo da alegria perene e verdadeira? Talvez Ricardo Reis (Pessoa, de novo e sempre) tenha parte da resposta: «Para ser grande, sê inteiro. / Nada teu exagera ou exclui. / Sê todo, em cada coisa. / Põe quanto és no mínimo que fazes. / Assim, em cada lago a lua toda / Brilha, porque alta vive.»
«Na Raia da Memória», opinião de Adérito Tavares
ad.tavares@netcabo.pt
Nos anos 50 e 60 do século XX, Portugal viu escaparem-se-lhe quase 2 milhões dos seus filhos e o Interior foi-se despovoando. Uns vieram para as grandes cidades do Litoral, outros partiram para Franças e Araganças. O concelho do Sabugal, por exemplo, perdeu, entre 1950 e 1970, 56 por cento dos seus habitantes. Aldeias houve, como por exemplo Quadrazais, que ficaram sem dois terços da população.
Uns voltaram, outros não. Mas o Portugal que deixaram, quando passaram a raia a salto, desapareceu. As aldeias do Centro e do Interior norte são hoje sombras do que eram há quarenta ou cinquenta anos atrás. Perderam gente, perderam tradições, perderam cultura, perderam alma. Visitamos terras lindíssimas, como Monsanto, Sortelha, Linhares, Piódão, Castelo Mendo, Marialva e que vemos? Pedras, sobretudo pedras. As gentes, que é quem dá vida às pedras, estão em vias de extinção. As poucas que ficaram estão velhas e vivem das magras pensões ou de um escasso e esporádico turismo. Abrem-se lares da terceira idade e fecham-se escolas. O mato cresce por todo o lado, a agricultura morre, o País tradicional agoniza.
Marialva é a imagem mais viva deste fenómeno de desertificação do Interior. Em poucos lugares do País podemos sentir a mesma emoção que em Marialva. Dentro das suas muralhas encontramos o castelo, a igreja, o cemitério, a Domus Municipalis, o tribunal, a cadeia, o pelourinho, casas sem tecto. Mas não encontramos ninguém, porque Marialva é uma vila fantasma. Dizem as lendas que sofreu a maldição da moura Maria Alva! Foi completamente abandonada pela sua população, que acabou por fundar uma nova Marialva cá em baixo, no vale. Caminhamos melancolicamente naquela ruína silenciosa, nobre no seu abandono, coberta de musgo, hera e silvas e, involuntariamente, visualizamos um país quase inteiro.
«Georges! anda ver meu país de Marinheiros,/ O meu país das Naus, de esquadras e de frotas!/ Oh as lanchas dos poveiros/ A saírem a barra, entre ondas e gaivotas!/ […] Senhora Nagonia!/ Olha acolá/ Que linda vai com seu erro de ortografia… […] Senhora Daguarda! […] Maim de Jesus! […] Senhor dos Navegantes!/ Senhor de Matusinhos!/ Os mestres ainda são os mesmos dantes:/ Lá vai o Bernardo da Silva do Mar,/ Mailos quatro filhinhos,/ Vascos da Gama, que andam a ensaiar… […] Georges! anda ver meu país de romarias/ E procissões!/ Olha essas moças, olha estas Marias!/ Caramba! dá-lhes beliscões!/ Os corpos delas, vê! são ourivesarias!/ […] Tira o chapéu, silêncio!/ Passa a procissão/ Estralejam foguetes e morteiros./ Lá vem o Pálio e pegam ao cordão/ Honestos e morenos cavalheiros./ […] Que linda e asseada vem a Senhora das Dores!»
Este Portugal, o país de António Nobre, está prestes a desaparecer. É preciso correr, e olhá-lo demoradamente, para o gravar na memória antes que se transforme numa enorme, desolada e melancólica Marialva.
«Na Raia da Memória», opinião de Adérito Tavares
ad.tavares@netcabo.pt
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