Do oito ao oitenta – ou inversamente do oitenta para o oito.

Manuel Leal Freire - Capeia ArraianaOs alvarás de Farmácia, desde as das aldeias mais reconditas, que se podiam gabar de possuir tais tipos de estabelecimentos, às dos bairros mais movimentados ou ricos das nossas maiores cidades, ainda há pouco tempo,valiam fortunas.
Mercê duma política de restrições que apenas servia interessses instalados ou defendia certos títulos académicos, umas vezes às claras, outras debaixo de disfarces que só iludiam quem queria ser iludido, punham-se em jogo quantias fabulosas. Frequentemente se ouvia falar em propostas superiores a quinhentos mil contos, que não apenas quinhentos mil euros.
Por vezes, intervinham simples testas de ferrro, só chamados para dar foros de legalidade à operação, cujos titulares tinham de possuir determinadas qualificações. Mas do negócio, ou dos negócios, falava-se até á boca escancarada.
Que às escancaras se admiravam os povos, que falavam também de manobras para evitar a caducidade de alvarás ou da constituição de sociedades fictícias para dar foros de legalidade à transacção ou transacções.
Os poderes oficiais defendiam o estatuto de privilégio invocando os superiores interesses da saúde pública, arvorada em lex summa, embora os povos, certamente que por ignávia, não entendessem como é que a restrição do número de locais de venda ou a habilitação académica dos donos de tais locais – dos donos, que não dos que aviavam o receituário – favoreciam tais desideratos.
De todo o modo, o negócio ia prosperando, o que se tornava evidente, mesmo a olho nu.
Quando, por qualquer razão, se punha á venda um alvará, eram não cem cães a um osso, mas uma corrida de manatas por um bom naco do melhor lombilho.
E, para assegurar futuras benesses, iam-se abrindo postos em povoações limítrofes, postos futuramente – e num futuro próximo – convertíveis em unidades autónomas, não faltando até que recorresse à figura das parafarmácias, apostando também numa breve conversão.
Era esta, ainda ontem ou anteontem a realidade.
Mas bastou apenas que – passe o pleonasmo – se generalizassem os genéricos, naturalmente muito mais baratos, mas mesmo assim escandalosamente caros, face ao custo real dos componentes, e timidamente se legislasse sobre as margens de lucro, para que uma nuvem obscurecesse todo o panorama e que caricatamente tenhamos sido chamados ao caricato fúnebre do funéreo enterramento daqueles típicos estabelecimentos que vendiam saúde e civilização, na medida em que, para além do aviamento de receituários eram o centro cívico do burgo ou, pelo menos, do bairro.
Na justa repartição dos sacrifícios impostos pela crise é de perguntar onde estão os milhões embolsados até ás ultimas reformas…
Ou para rogar que se deixem actuar livremente as regras do mercado livre…
«Caso da Semana», opinião de Manuel Leal Freire

Advertisement