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Acabou aquele ano escolar e prantei-me em casa no Vale da Senhora da Póvoa com metade do 5ºano de Letras feito e logo com média de 15 valores, conseguido no difícil Liceu da Guarda. Foi um feito do caraças!
As minhas tias e o meu Padrinho ficaram todos contentes, porque assim eu já tinha DIPLOMA suficiente (disseram todos) para me empregar na Câmara Municipal de Lisboa, com a cunha do Dr. Jaime Lopes Dias. De certeza também contentes porque o pestinha da casa ia para Lisboa empregar-se…
Não sei o que aconteceu, mas o meu Padrinho decidiu que continuaria a estudar, pelo menos tentar tirar o resto do 5º ano….
E não só! O meu Padrinho presenteou-me com CEM PAUS! Até me lembro que o meu coração pulava de contente por ter tanta massa…
No outro dia de manhã fui apanhar às 8h30 a camioneta da carreira que me levaria ao Sabugal, onde tinha alguns amigos.
Fui à Vila porque queria comprar um presente a mim mesmo, por ter feito TAMANHA façanha escolar. Aliás ainda hoje costumo oferecer um presente a mim mesmo quando faço qualquer coisa especial e de valor… incentivo-me, entenda-se!
Comprei no Sabugal um belo facalhão, do tipo que o David Crocket usava para explorar a floresta canadiana no Séc. XVIII. O punho tinha tiras de cabedal enrolado, parecia encerado e desenroscava-se um botão de onde saíam anzóis, fios, botões, eu sei lá o que mais! E a lâmina? Brilhante, aço puro, com uma serrilha que até metia medo…
Era com esse punhal que eu me pavoneava pela aldeia, todos queriam tocar, mexer, invejava. Um dos quais mais gostava desse brinquedo era o moleiro, recém-chegado à Aldeia e que moía as sementes na Moagem a seguir ao Lagar do Dr Jaime…
O moleiro às vezes pedia-me emprestado o garboso objecto e em troca emprestava-me a sua bicicleta, do tipo chocolateira das mais recentes… até já tinha farolim! Eu passeava-me pela Aldeia, ia até ao recinto da Senhora da Póvoa, à Serrinha, subia à Fonte Santa… ah se eu adorava pedalar naquilo! Com esses passeios até fui descobrindo onde havia meloais, árvores carregadas de frutos… bem, essa é outra estória!
Num desses dias o Ângelo, que é Cameira como eu, chamou-me e fez-me uma proposta.
Mas antes de escrever qual foi, devo dizer que o Ângelo era e é figura muito estimada no Vale da Senhora da Póvoa, era o acordeonista que – a troco de trezentos paus – alegrava a juventude nos bailes organizados nos domingos entre as 15 e as 19, hora que tocava o sino da Igreja para chamar as pessoas para o terço e as mães levantavam-se dos mochos num ápice e gritavam às filhas:
– Mariaaaaa, vamô bóra pó terço…
Elas bastante contrariadas lá iam, embora puxadas pelas mãos suadas da rapaziada que não as queria deixar ir…
Uma vez o bailarico acabou bem mais cedo que as 7 horas. Nesse domingo o baile fez-se na eira detrás da Escola Primária das raparigas, frente à casa do Zé Nabais e do Ângelo. Embora já tenham passado mais de 50 anos ainda me lembro: de um lado a formação alinhada de toda a rapaziada já salivando e em frente separado pelo cimentado da eira, o grupo das raparigas de pé, com os seus vestidinhos e lenços na cabeça, ao lado das mães já sentadas nos mochos, aqueles bancos feitos de folhas de cortiça.
Enquanto o acordeonista, o Ângelo, não se aprontava para iniciar o bailarico, alguém da rapaziada mostrava a todos uma erva com minúsculos frutos em forma de coração que continham dentro umas quase microscópicas sementes. Era a erva-caralheira.
– Cuidado, elas para obrigarem um gajo a casar, oferecem uma maçã onde fizeram uns buraquinhos e metem estes grãozinhos que nos «hipotenizam»…
Naquele tempo, lembro-me, também se falava muito nas «sopas amarelas» que tinham os meus objectivos: obrigar um rapaz a casar…
A rapaziada nesses anos de 1965 e tais andava toda pelos 16, 17 ou mesmo 18 anos. No grupinho das raparigas havia uma especial: era a Sílvia (nome fictício), com 25 anos, vinha de Lisboa para férias no Vale, corpo roliço e bem feito, mesmo de longe exalava aquele perfume natural de fêmea pronta. Todos deitavam o olhinho naquela mulher inatingível! E a dançar era um regalo vê-la e quando soprava um ventinho amigo, as formas do seu corpo desenhavam-se à frente e atrás!
Ninguém se atrevia a convidá-la para dançar. Entre todos desafiávamo-nos a ver quem se atrevia a tal. O Tó, talvez com um copinho a mais, disse-nos:
– Aqui não há mas nem meio mas, vou eu mesmo, a gaja não me há-de dar porrada… e se der logo se vê!
Perante a nossa aflição, foi direito a ela, com ar gingão, atravessou a eira de mãos nos bolsos, sabe-se lá segurando o quê. Foi assim o curto diálogo, que se ouviu bem porque fez-se silêncio total.
– Ó Silvia, vamos a batê-las?
– Contigo? Eu cá não danço com garotos! Era o que faltava e respeitinho, ouvistes?
– Eu, garoto? Olha bem para isto tudo e vê lá se eu sou um garoto?
De repente baixou as calças até aos joelhos, mostrando a fruta ornamentada com grandes e fartos pêlos negros! Sem ceroulas, porque ninguém ia aos bailes com entraves desses… liberdade total de gestos, cum catano! Tinham de sentir nos tangos tocados pelo Ângelo que éramos machos ….
Foi o CAOS completo! As mães começaram a gritar, fingindo tapar os olhos com o xaile, benzendo-se e beijando a cruzinha do Jesus, chamando pelas filhas, pegando nos mochos, arrastando as saias, levantando o pó da eira, clamando «aqui d’el rei»:
– Vamos embora, filhá, tá aqui o demónio, cruz canhoto, ta renego…
Acabou o baile com esse alvoroço e nós rindo com um misto de gozo malandro e chateados porque a esfrega da semana nem sequer começara!
Lembro-me de termos comentado todos com o Tó:
– Sabes o que fizeste? Esta noite as mulheres da aldeia não vão dormir por tua causa… não é todos os dias que elas vêm disso…
Quando o baile era junto ao Chafariz, é claro que o Ângelo lá em cima naquela varandinha onde tocava ia topando os esquemas todos, quem se encostava mais, quais as moças que deixavam ou não deixavam «achegar-se»…
Uma vez chamou-me após terminar uma moda:
– Ó Zé Jorge, essa tua sorte, olha que eu vi a Francisca (nome fictício) agarrar a tua mão e pô-la no sobre a blusa dela…
Doutra vez fizemos um baile ao domingo fora dos lugares habituais – o Ângelo sentou-se numa cadeira com o seu acordeon no meio daquela rua a subir para a Igreja. Depois da minha casa, quem desce, a primeira rua à direita. No gaveto existe uma casa com colunas, uma varanda e por baixo da entrada, ao nível da rua, um vão que dá acesso ao palheiro da casa, tudo em granito. Ainda hoje gosto imenso dessa casa.
Portanto o espaço para dançar era algo esquisito. Como a letra T. No meio da rua dançávamos e o Ângelo no meio da ladeira a tocar…
Muito naturalmente as raparigas foram para aquela varanda e por ser lugar alto, tinham uma visão abrangente do bailarico, comentando algo que viam com aqueles conhecidos risinhos de meninas…
A intenção da malta fazer ali o baile desse domingo era outra!
Enquanto as raparigas estavam lá em cima olhando os pares do baile, nós íamos à vez àquele vão de acesso ao palheiro da casa e através dos interstícios das lajes de granito, espreitávamos para as pernas e as cuecas das meninas que descontraidamente se inclinavam na dita varanda…
Bem, ainda hoje lá estaríamos, não fora o irmão de uma dessas meninas que deu um berro cá de baixo para a irmã:
– Maria, sai daí que te estão a ver as pernas!
Foi um alarido e uma gritaria geral das meninas a fugirem da varanda e pela ladeira acima em direcção à Igreja…
Acabou o baile, é claro, mas ficámos todos inchados, gordos de prazer… tínhamos todos visto as pernas e as cuecas de quase todas as raparigas do Vale da Senhora da Póvoa…
O Ângelo e eu tão amigalhaços éramos que mais tarde, uns anos depois em Castelo Branco ele aprendeu comigo rudimentos de inglês que precisava para emigrar para a Austrália, onde ainda vive, e no meio desses ensinamentos comíamos batatas fritas com alheiras assadas e ovo a cavalo naquele restaurante por baixo do Cinema, recordando sempre peripécias da nossa parvónia…
A tal proposta era no sábado seguinte irmos às INGUIAS, também terra de muitos Cameiras, porque havia feira e baile…
– Ó Zé Jorge, vamos às Inguias no sábado, vai haver baile e há muitas garotas jeitosas, gajas boas. Tu pedes emprestada a bicicleta ao moleiro e eu levo a minha mota, nas subidas eu ato uma corda da mota à bicicleta e puxo-te quando for preciso…
Ora o que era preciso era aventura para quebrar aquela monotonia do Vale… e tudo parecia lógico, fazia sentido.
Saímos da aldeia pelas 10 da noite e até ao Terreiro das Bruxas eram apenas 2 kms a subir, o que era fácil de fazer a pedalar…
Mais fácil foi aquela descida vertiginosa até ao Casteleiro e depois virar à direita para as Inguias, cerca de 15 kms a sentir o fresco agradável da noite na cara, praticamente sem pedalar….
Chegámos às Inguias e o que vi foi o Ângelo ser recebido como um rei e senhor por todo o mulherame presente… ele bem mas apresentava, mas atão… elas queriam era o Ângelo!
Lá nos surrafámos o mais possível contra aquelas lindas mulheres, bebemos uns copos e já eram umas 3 da madrugada quando decidimos regressar, sujos e cheios de pó, que o baile foi em terra batida…
Bem, regressar seria o inverso: subir e pedalar os tais 15 kms, bastando ao Ângelo acelerar com o punho da mota…
Pusemos a tal corda unindo os dois «burros metálicos» e lá fomos…
Fomos, mas não muito longe, porque havia curvas e contracurvas, estava escuro e a velocidade era diferente…
Para mim, vá de trambolhões… vários… um deles até caí por uma ravina e o Ângelo teve que me pescar com um ramo de esteva…
Já tinha as calças rasgadas, camisa esfrangalhada, joelhos a sangrar… todo rôto por fora e por dentro… estava feito!
O pior foi a bicicleta… o farolim partiu-se, os pára-lamas caíram e por lá ficaram… várias vezes o guiador torcido, sempre a ser endireitado entre os joelhos!
Para cúmulo até a corda de rebocar se partiu… e nem os nossos dois cintos atados ajudaram muito!
Um TORMENTO para mim, principalmente… e durante 15 kms!
Chegámos ao Povo já eram quase 5 horas da matina, fui pôr a bicicleta encostada à porta da moagem, de certeza que o moleiro ia ter um xelique perante tanto estrago…
Fui pintalgar-me de mercúrio-cromo nas feridas e dormir.
De manhã tinha que resolver o assunto da bicicleta e o que decidi, doeu um bocado, mas teve de ser mesmo…
Fui falar com ele e para pagar os prejuízos… dei-lhe o FACALHÃO !!!!
Acho que ele não esperava tanto, notei nos olhos!
Não sei se ficou satisfeito, o que é certo é que sempre me falou e bem!…
– Ó Ângelo, ganda maka aquela!!! Nem mais enguias, nem mais irozes, po…rra!

«Estórias de um filho de Vale de Lobo e da Moita»
mailto:jjorgepaxjulia4@hotmail.com
Custa-me a desprender do que escrevo e, por isso, releio, de quando em vez, textos escritos há mais tempo. É como que uma repetição na continuidade. Entre o terminar de um texto e o principiar de outro pode abrir-se a oportunidade de saborear algum escrito mais antigo.
Há dias ao reler uma crónica publicada no Capeia Arraiana, em junho de 2011, tive oportunidade de ler um comentário que lhe foi feito em julho do mesmo ano. Só agora dei por ele!
No Brasil (onde um texto pode chegar!) o senhor Marcelino Júlio leu e comentou fazendo saber que seu avô Joaquim Júlio Monteiro era natural das Cheiras sendo, portanto, meu conterrâneo.
Devo confessar que acolhi com enorme satisfação a referida nota. Desde logo pela sensação de poder confirmar que, desta aldeia perdida no profundo interior português, houve quem partisse para o mundo. Depois porque os que partiram não se perderam deles próprios e continuam a demonstrar interesse pelas origens. Confesso ainda um certo conforto pelo facto de saber que um simples texto chegou bem longe e pôde proporcionar-me o contacto com um compatrício ausente.
Já fiz, evidentemente, alguma investigação perante os mais idosos, nas Cheiras, sobre o senhor Joaquim Júlio Monteiro mas não a suficiente para chegar a conclusões. Tenho, sim, encontrado algumas pistas nas memórias vivas que pude inquirir. Infelizmente elas não foram tão claras quanto eu gostaria. Há-de continuar, portanto, o meu trabalho.
Claro que é, para mim, importantíssimo saber do paradeiro daqueles que, forçados a sair para terras incertas, deixaram para trás o bocadinho de terra plana colada à base de um Monte que foi o nosso nascedouro comum.
Sei que partiram e sei que levaram Portugal dentro deles. Sei que não foram vencidos pelo medo. Sei que, em bom rigor, nunca abdicaram da sua terra e sei, ainda, que eles próprios desejam que ela não seja mais amputada. Mas também sei que a liberdade de viver só é real quando a dignidade existe e enquanto esta conseguir ser irreversível.
Hoje, por cá, o perigo de partir ainda não terminou e volta a andar à solta. Tudo se assemelha, cada vez mais, aos tempos das antigas partidas. Repete-se, hoje, o perigo de Portugal se repartir em vários e diferentes Portugais distintos e desiguais que, em conjunto, integram uma sociedade fragmentada.
Não são boas, não senhor, estas notícias… mas são reais.
No entanto permanecem, na nossa terra, marcas de uma antiquíssima identidade. Isso posso confirmá-lo. Posso também sublinhar que, por cá, gostamos imensamente dos que partiram e reconhecemos-lhes muita coragem na sua tentativa, na sua procura de melhorar vida. Sabemos bem que eles não fizeram coisa pouca, até porque conseguiram ganhar o tempo de um tempo difícil. Desejamos, tão só, que o tempo de regresso não expire. Nunca foram largos os prazos quando se tratou de vencer o tempo e o tempo de esperar pelos que lutam afincadamente na vida nunca foi nem será excessivo.
Todos, então, desejamos que algum regresso ainda caiba na nossa espera mesmo que tal regresso não seja definitivo.
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
Nesta Europa das «Pátrias Chicas», «Santas Terrinhas» ou «Terrae Patrum», que é a deste primeiro século do terceiro milénio, não há dúvidas de que as freguesias onde se pratica a capeia raiana constituem, agregando-se-lhes as espanholas onde se usam os falares fronteiriços de Alamedilha e Xalma, um bloco monolítico.
Levantadas em derredor das encostas portuguesas e castelhanas da mesma cadeia orográfica, cercadas até há pouco por uma dupla cintura de caminhos de ferradura, servindo de nascentes a rios – Coa, Águeda e Erges – que, por caminhos diversos e dispares, se irão juntar nas imensidades do Mare Nostrum, as respectivas populações, embora binacionais, têm secularmente vivido existência que bem se pode dizer comunitária.
O trigo e o azeite da parte salamantina, as mantas de toucinho e as tarraças de untura, as azeitonas e os escabechados de peixe grosso, as laranjas e os melocotones das encostas de lá tornaram-se triviais na mesa dos ribacudanos fronteiriços.
Como os povos de Alamedilha a Valverde del Fresno ou San Martin de Trevejo se habituaram ao leite, enchidos ou carnes frescas do lado de cá e até às nossas batatas e aos nossos feijões.
É o lado mais fortemente materializado – o da sustentação do corpo – a agir harmoniosamente com os laços linguísticos e a tradição em geral.
Dialectos carregados de leonismos, levam a que cá e lá aonde são muitos os que falam não grave, mas charro.
Historicamente, à guerrilha miguelista levantada na Raia Sabugalense pelo Padre João Barroca, correspondem os vários curas carlistas que deram corpo à Primeira Guerra Civil de Espanha, um século anterior à Cruzada do Caudilho Franco.
Ainda hoje são muitas as irmandades de almas e confrarias sufragiantes que mandam celebrar os seus trintários de missas em conventos transfronteiriços.
E dando resposta ao despovoamento e descristianização imperantes na parte portuguesa são padres e sacristãos feudatários da Sé de Cidade Rodrigo, que a de Cória eclipsou-se, quem se encarrega das cerimónias fúnebres em terras da Capeia.
Material e espiritualmente, constituem, pois, os Charros uma unidade hipotalássica.
«O concelho», história e etnografia das terras sabugalenses, por Manuel Leal Freire
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