Esta história deve estar muito fantasiada. Mas tem piada. É uma daquelas «boutades» da «fidalguia» rural da nossa zona, os grandes lavradores de cada terra: eles tinham dinheiro e exibiam-no. Eram os únicos que o tinham. E então esta de ter um carro americano devia dar um «sainete», que fax’ avor… se é que me entendem.

José Carlos MendesEste foi o primeiro carro da terra. Penso que era um Ford, pelo que me lembro de ouvir falar dele. Era por volta de 1930. Julgo ter sempre ouvido dizer que era um Ford 1928. Mas não foi este o primeiro carro que houve na Freguesia. Não. Em 1905, o Morgado de Santo Amaro comprou um dos primeiros carros de Portugal e sem dúvida o primeiro da nossa região. Foi titular da primeira carta de condução do País, datada desse ano (1905). Foi obra…
Mas voltemos ao Ford 1928.
Era de um dos lavradores mais abastados da terra: o sr. António Mendes. Se era de facto um Ford, era parecido com o da foto, a que retirei a matrícula.

A viagem era uma aventura
O sr. António Mendes comprou então o carro. Um carrão. Um luxo.
O pior eram as mãos do dono.
Parece que fazia tudo menos «conduzir». Andava no carro. Ia aos zigue-zagues pelos caminhos e estradas. Aliás, imagino, as saídas da garagem deviam ser muito poucas, porque a qualidade dos arruamentos era de certeza péssima.
Em todo o caso, contava-se à noite ao serão que um dia lá pegou no carro e… «ala que se faz tarde»: rumo à Guarda. Mas com umas peripécias que a todos encantava ouvir.
Era o caso de acentuar bem a inépcia do senhor ao volante.
Contava-se que a cada curva, lá parava e mandava o criado ver se lá vinha alguém.
Notem: isto era nos anos 30. Não havia carros por aqui, a não ser os carros de bois (melhor: de vacas – era assim que se dizia, é assim que se diz agora, mas já não há carros de vacas no Casteleiro há muito tempo…). Portanto, se viesse algum carro seria de vacas. Reparem na auto-confiança do homem: era preciso que o empregado («criado»: era o termo) fosse à frente e parasse o «trânsito»!
A viagem era uma grande e demorada aventura: os 30 km que seriam do Casteleiro à Guarda eram uma tortura para os dois viajantes.
A cena repetia-se pelas estradas adiante: nas curvas, o lavrador parava o carro para o criado sair e ir à curva assomar-se para diante a ver se não vinha de lá ninguém: nem pessoas nem carroças, nem algum carro que por ali eventualmente já circulasse. Afastado o perigo («Fujam, fujam, que vem aí o carro do sr. António Mendes») ou não o havendo, o criado, então, fazia sinais largos, gritava e «mandava» seguir o patrão…

Coitado do polícia
Assim, naquele dia, manhã cedo, lá foram andando para a Guarda: Casteleiro, Santo Amaro, Enguias, Carvalhal, Belmonte, cruzamento do Ginjal, Gonçalo, e por aí adiante, depois serra acima, serra abaixo, subida para a Guarda…
Entrada na cidade da Guarda. Estamos nos anos 30. O trânsito de automóveis era pouco, seguramente. Mas havia trânsito, ainda que também de carroças e tal. A prova disso é que havia dois ou três polícias sinaleiros em cruzamentos com maior afluência de tráfego.
Um desses locais, frente à Igreja da Misericórdia da Guarda, era exactamente aquele em que se deu o incidente. O. Porque terá sido uma situação muito, mas muito falada. É que o senhor António Mendes, homem rico e bem relacionado, não era propriamente um anónimo… e aconteceu um «qui pro quo» que podia ter sido grave. Foi apenas divertido e alvo de anedota. Mas podia ter sido mortal.
Muito simples de entender.
O sinaleiro lá estava na sua função. Manda parar este. Manda avançar aquele. Manda parar todos para passarem os peões… O normal para um sinaleiro.
Só que quando mandou parar o Senhor António Mendes, o homem atrapalhou-se, não consegue parar o carro, desata a esbracejar para o polícia, grita para o criado que mande sair o sinaleiro.
O sinaleiro esbracejava para o mandar parar. O carro não pára. Avança para o estrado do polícia. Leva o polícia no «capot», vai direito à muralha em frente, o polícia dá aos braços a segurar-se com dificuldade.
Valeu que a velocidade era pouca, felizmente, e tudo acabou em bem: não houve feridos.
Mas houve troca de piropos.
Diz o polícia, a arrumar-se e a limpar-se:
– Que diabo é isto? O senhor não me viu?
Resposta pronta e tranquila do sr. António Mendes (que bem sabia que a ele nada podia acontecer naquele tempo):
– Eu vi, que diabo. E o senhor não me viu a mim? Por mais que o avisasse o senhor não me saía da frente, o que é que quer?

Resolvida a questão, cada qual lá terá ido à sua vida e o incidente não teve qualquer consequência, como sempre, quando se tratava de grandes lavradores…
«A Minha Aldeia», crónica de José Carlos Mendes

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