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Não sou homem de teres, que a vida incerta de contrabandista e azemel só me deu o arrimo, ainda que as canseiras fossem muitas. Mas o que herdei de meu pai e de meu sogro, adido ao pouco que surdiu o meu negócio, sempre o defendi com unhas e dentes, ainda que tivesse que me impor pela força e pela manha, quando me quiseram engazupar.
Aconteceu de uma vez alguém querer esbulhar-me do direito de uso pleno e exclusivo da água que ia do açude do Pereiro, para rega dos meus lameiros e olgas. O António Cerdeira, que tinha dois prédios na ínsua, apregoava estar no direito de regar o renovo com a água da minha levada.
Chegando-me aos ouvidos que o farrabraz andava a desviar a linfa, fui de madrugada tomar fé no caso. No local reparei que o lapuz tinha aproveitado a noite para me chispar os tornadoiros e abrir outros que conduziam a água às suas leiras.
Fiquei furibundo, mas, para não me perder, que tenho um génio danado, enviei a casa do machacaz, o meu vizinho João Tomé, com o recado de que tivesse tino e não voltasse a repetir a brinca, sob pena de ser homem morto.
Acagaçado o Cerdeira não tornou a bulir nos tornadoiros, mas, aconselhado, meteu o caso na Justiça. Soube-o quando recebi a citação do Tribunal do Sabugal, dando-me conta da demanda, em que o ladrão reclamava o direito ao uso da água segundo o velho costume da adua, apresentando um bom naipe de testemunhas.
– Este Tonho Cerdeira quer caçoada, mas depressa o tiro de cuidados – disse para alguns, a ver se lhe metiam tino.
Foram nulos esses arreganhos e a acção avançou seus termos.
À cautela comecei a tratar do caso junto da Justiça. Enviei um cabrito e um frangão para o juiz da comarca, duas lebres e uma canastra de ovos para o delegado, e um borrego para o oficial de diligências. Embora ciente de que a razão me assistia, aprendera com a vida a ter cautelas, e assim urdi a trama necessária a virar o caso a meu favor. Quanto às testemunhas, que eram gente da terra, e foi fácil convencê-las a deporem por mim. Uns virei-os com a razão e outros com copos do bom verdasco da minha adega.
No dia da audiência a coisa correu-me de feição, para espanto do Cerdeira, que pensava ter o caso nas mãos. Todavia, quando esperava que o juiz sentenciasse a meu favor, o alma do diabo convocou as partes arroladas para o dia seguinte, no local da disputa, alegando que o Tribunal tinha que esclarecer certas dúvidas.
Lá fomos à levada do Pereiro, a meio caminho entre a Bismula e Vilar Maior, a ver a agueira e os terrenos que servia.
Junto à levada o Cerdeira volveu a declarar-se espoliado da água de limar as courelas, denunciando ao Juiz que eu montara mascambilha, voltando as testemunhas do avesso.
– Está bom de ver, senhor Juiz, que tendo sido eu a arregimentar as testemunhas elas não depunham contra mim…
¬– A levada foi erguida por meu avô e, desde que me conheço, Meritíssimo, fomos os únicos a servir-nos dela para limagem dos lameiros e rega do renovo – disse eu ao juiz para calar a boca ao Cerdeira.
– Não se atente ti Tosca, que vossemecê bem sabe que a água foi-nos abonada pelo seu pai, à troca de um horto no Vale Carvalhão, altura em que foram assilhados estes bueiros – disse o Cerdeira apontando um cano de pedra que saía do fundo do cômoro da levada.
Alterei-me quando notei o juiz a manear a cabeçorra, dando ares de quem concorda com o que argumentava o Cerdeira. Tinha de o meter no carreiro.
Aproveitando um momento de distracção da comitiva, a mirar um carro de vacas que passava no caminho, cheguei-me de manso ao juiz e larguei-lhe em surdina:
– Meu pandorga, recebeste o cabrito e o galaró e agora queres dar a volta ao prego?
E, sem mais paleio, arrumei-lhe um contrifão que o atirou para a levada que ia prenhe de água.
– Ai que me afogo! – urrou o magistrado quando veio à tona.
E logo lhe lancei a manápula em socorro.
– Ó Doutor, como diabo afocinhou na corrente? Segure-me a mão, que o arrupo.
E puxei-o para terra seca, ao mesmo tempo que todos acorriam para tomar fé no acontecido.
– Meti o pé em falso e emborquei, valeu-me vossemecê José Tosca – pronunciou-se o juiz, aliviado, depois de colocado de borco a despejar da arca a água que engolira.
Passados dias soube-se o veredicto que considerou a água da levada como minha pertença exclusiva. Fez-se justiça.
Paulo Leitão Batista, «Aventuras de um velho contrabandista»
leitaobatista@gmail.com
A Câmara Municipal da Guarda instalou uma horta no jardim do telhado do edifício dos Paços do Concelho, com as espécies hortícolas ali produzidas a terem como destino o consumo no refeitório da autarquia.
De acordo com o que foi veiculado pela agência Lusa, a plantação, feita num espaço que «nunca funcionou bem» como jardim, devido à sua localização e exposição solar, foi coordenada por Ismael Pereira, responsável pela divisão dos serviços urbanos da autarquia.
Em breve, funcionários e munícipes poderão ver dois grandes canteiros, com uma área total de 150 metros quadrados, «enfeitados» com cebolas, alfaces, couves, tomates e pimentos, em vez das tradicionais plantas de jardim.
«Este espaço não estava aproveitado e, com este projeto, conseguimos dar-lhe uma utilização», disse à agência Lusa Gonçalo Amaral, vereador responsável pelo pelouro das zonas verdes.
O autarca adiantou que «o objetivo [da autarquia] não é produzir produtos hortícolas para a sua sustentabilidade», mas antes «dar o exemplo» à sociedade.
«Pretendemos sensibilizar as pessoas para a possibilidade de terem uma horta em casa, verificando a existência desta num espaço improvável, declarou, lembrando que o canteiro se situa no segundo andar do edifício dos Paços do Concelho, na cobertura da sala da Assembleia Municipal.
plb (com Lusa)
A guerra movida ao latim, que foi praticamente banido do curso geral dos liceus na década de quarenta do século passado (efectivamente a chamada Reforma Pires de Lima manteve-o apenas para certas alíneas dos então sexto e sétimo anos) fez com que a generalidade da população não relacione o vocábulo convento com o seu elemento essencial.
Os que se iniciaram nas complicadas operações da enunciação e conjugação dos verbos naquela língua, esses certamente que recordarão o venio, venis, venire, veni, ventum, que a muitos terá provocado o àspero contacto com a féruIa e vara, meios didácticos cssenciais numa escola que, por orbilana, se baseava na regra – a letra com sangue entra.
O prefixo com e a raiz ventum dão ao termo a ideia da reunião a que ocorriam, no caso, todos os vizinhos; e daí o seu caracter de assembleia que, na alta idade média, se substituiria ao município que, como já referimos, apresentava origem romana.
Mas da transição para a mescla produzida da fusão daquelas instituições com as leis e costumes dos invasores do império resultaram efectivamente outras novas onde a vontade popular se exprimia por voto directo.
E uma das mais interessantes e que mais profundamente haveria de marcar o relacionamento entre os habitantes da mesma área geográfica e influenciar futuramente toda a organização administrativa a que hoje chamamos autárquica foram as assembleias de vizinhos no período visigótico.
Os visigodos eram um desses numerosos povos germanicos que tendo visto no império uma carreira nele penetraram como servidores e de que, com o colapso de Roma, se tornaram senhores.
Efectivamente, nas grandes movimentações que se seguiram a 476, ano símbolo, mas impreciso quanto a extremações temporais, enquanto que os burgundios se fixaram em torno de Viena e na actual Suiça; os francos ou galos entre os Pirinéus e o Reno (os belgas, os aquitanos e outros cabendo na designação de Germanos misturavam-se com eles); os ostrogodos mostraram preferência pela Península Itálica e uma enorme multidão de bárbaros se quedavam ainda por aquilo que hoje se chama a planície germano-polaca, os visigodos venceram as dificuldades dos altos desfiladeiros e derramaram-se pela Ibéria de onde acabaram por expulsar suevos e vândalos, se é que estes últimos, povo mais nómada do que sedentário, não preferiram, da sua expontânea vontade, demandar o Norte de África e os suevos não rumaram, também, às Ilhas Britânicas lato sensu.
De qualquer modo, os visigodos lançaram profundas raízes, fundiram-se com os ibéricos, romanizados ou não, e influenciaram poderosamente toda a vida peninsular, através nomeadamente da sua tendência para os grandes debates que ocupavam desde as simpIes comunidades vicinais até aos concílios nacionais de Toledo.
Esta tendência para absorver de cada civilização o que dela melhor pudesse coutribhuir para o aperfeiçoamento do sistema permaneceu.
O município, instituição de base romana beneficiou, assim dos aportes do direito visigótico, reformulado e enriquecido, que viria a influenciar mais tarde as comunidades rurais da Idade Média e receberia até influxos da Cabília magrebiana, copiando parte das regras dos seus ajuntamentos.
Assim se gerou a tradição duma recta e regular administração municipal e depois também provincial.
E o município, lembrou Alexandre Herculano, representa, de modo verdadeiro e eficaz, a variedade contra a unidade, a irradiação da vida política contra a centralização, revelando-se a única instituição capaz de assegurar a liberdade das classes laboriosas e populares.
Aliás todos os povos, se os deixarem, tendem para a gestão autárquica, o que levou Toqueville a afirmar que o município e as instituições que lhe são similares (conventus publicus, comunidades medievas, ajuntamentos da cabília) parecem ter saído mesmo das mãos de Deus.
Só por seu intermédio se pode realizar o duaIismo tão fecundo de uma boa governação: autoridade ao alto, liberdade nas estruturas inferiores; competência dos governantes; fiscalização dos governados…
Na grande Europa que existe como realidade institucional e a que se pretende dar um corpo de leis, impõe-se axiomaticamente o respeito por essas comunidades de base e fará, por isso, algum bem recordar a mera legalidade positiva, existindo, não por qualquer delegação, mas por direito próprio…
«Politique d’ Abbord – Reflexões de um Politólogo», opinião de Manuel Leal Freire
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