Tenho a ideia de que, nós, continuamos a viver nos sítios onde fomos felizes e eu, tive uma infância feliz e rural.
Gozei, claro, ambientes calmos, pacíficos e pueris apesar do irrequietismo inerente á condição de criança.
As mulheres e os homens desses tempos, os velhos de hoje, transportavam e transportam, ainda, nos olhos a presença de uma acalmia total, reflectida em olhares maduros e recheada de sabedorias antigas e profundas.
Faço, então, questão de voltar para habitar as minhas memórias. Por aí amenizo as horas mais ásperas do tempo presente. Relembro histórias e recordo gente amiga e antiga, ferida pelo frio da existência e queimada pelo fogo das vivências mais austeras. Gente que me parece, agora, em despedida.
Preciso, portanto (e só) de fechar as pálpebras para habitar memórias, para relembrar episódios, para efabular façanhas ou parar ligar destinos que nem sempre foram cumpridos.
Há quem me diga «lá estás tu a sonhar». É certo que o tom nem sempre é recriminatório. No entanto, alguns me julgarão repetitivo. Porventura outros me acompanharão em lembranças. Encolho, simplesmente, os ombros porque sei que não vale a pena suspirar de enfado. Sonhos são sonhos e não se discutem e quando se sonha o real desce sempre a um plano secundário.
Assim me dispus, hoje, a passear, uma outra vez, pelas ruas da minha memória, reencontrando lugares e recordando proezas de outros tempos.
Sempre gostei de deambular sem predefinir o sentido. Apraz-me fazer incursões pelo âmago da minha aldeia sentindo-lhe os odores, as cores, os sons e os silêncios. Dá-me prazer apreciá-la, por dentro, revisitar-lhe a intimidade, confirmando, presencialmente, o que de mais belo ela pode oferecer, quer seja a estreiteza das ruas, o velho traço do campanário, o cantar do velho fontanário ou a antiguidade das edificações.
Foi neste passeio de hoje que revi, uma árvore, lá ao fundo de algumas décadas, incluída numa fileira de imagens onde um dia, um denso e irrequieto grupo de garotos, fugidos da atenção da professora a treparam, a despojaram de muitas folhas e a mutilaram de alguns ramos numa agressividade infantil pouco compreensível aos adultos daquele e deste tempo. Ficou quase moribunda sem que, hoje, por mais que me esforce, eu consiga perceber a barbaridade de tais atitudes. Resistiu, apesar de tudo. Agora é uma árvore forte, alta e adulta, dona de um quintal onde se inicia uma ruela, sítio com lugar cativo na minha recordação.
Tive, então, que pedir perdão a essa árvore. Apeteceu-me abraçá-la e beijá-la com meiguice como se, por muito tempo, me houvesse ausentado dela e a ela voltasse, agora, prodigamente. Senti, depois um cómodo conforto quando me apaziguei com ela, num apaziguamento deveras sentimental.
Enquanto isto, dei comigo em cumprimentos a algumas pessoas (duas ou três) que, ocasionalmente, passaram por ali e que já não conseguem corrigir a velhice.
Terminei reconhecendo, uma vez mais, que continuo a sentir-me bem quando desfio memórias, histórias arbitrarias (entre muitas) quiçá um pouco tontas, eventualmente rotineiras mas, ao mesmo tempo, tão simples e naturais como a desta árvore extremamente marcante da minha infância.
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
11 comentários
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Quarta-feira, 26 Outubro, 2011 às 8:37
Antonio Emidio
Amigo Capêlo:
Nada é tão grande, nem pode ser tão grande, como ser verdadeiramente humano, tu és grande, porque és verdadeiramente humano. Tu também és um anacronismo, perdoa, sabes porquê? Não vives nesta época superficial, vives numa época profunda, a que nós conhecemos e durante muito tempo vivemos. Dizes tu que nós continuamos a viver nos sitios onde fomos felizes, e aí o nosso espirito viverá depois da morte. Era um tema que gostava de discutir contigo, impensável ser público, não faltaria chacota e insulto. Um dia, muito calmamente a uma lareira ou à sombra de uma frondosa árvore falaremos.
Quarta-feira, 26 Outubro, 2011 às 14:50
fernando capelo
Amigo Nabais, é sempre um enorme prazer falar contigo seja em que sítio for, seja que tema for. E digo isto não só pelo facto de a nossa amizade ser quase da nossa idade. Digo porque sei que és um homem de convicções. E para mim as convicções (não sei se por rarearem) cada vez valem mais.
Quarta-feira, 26 Outubro, 2011 às 15:23
vítor coelho
Já agora, Fernando e António, caberá, então, mais um ?… à lareira, à sombra duma árvore, em qualquer lugar, enfim, onde o corpo se sinta cómodo, já que o espírito e a memória estão sempre protegidos enquanto existirmos.
Quarta-feira, 26 Outubro, 2011 às 17:51
Manuel Leal Freire MANUELLEALFREIRE
Na mitologia grega dá-se notícia de um palácio, onde o visitante deixava como propina de entrada, náo ouro, prata ou qualquer outra coisa por mais valiosa que fosse. mas sim um pedaço de si mesmo, do seu corpo e da sua alma.
Alegórico como todoa os mitoa, simboliza a parte de cada um que de nós se desgarra em cada um dos lugares por onde se vai desenrolando a nossa peregrinação terrena.
Cãmões, na CANÇAO DÉCIMA – e depois, como até antes – dá-se conta desta realidade quando exara –
PARA QUE FICASSE A VIDA
PELO MUNDO EM PEDAÇOS REPARTIDA
Na era da quantificação, os psicólogos já puseram a circular uma equação antevista por Eça, que lhe chamou fórmula jacintica e calcula matematicamente a parte que de cada um de nós se desgarra em cada um dos sítios onde nos demoramos –
Na fórmula, contam os tempos de permanência e a interpenetração
HOMO-LOCUS
Maior permanência e maior vivência levam a mais acentuado desgarre.
Ficou ali a maior parte de nós.
Noutros sítios, a perda poderá ser apenas infinitesimal.
Mas existiu,
E quando voltamos a qualquer sítio, onde estivemos mais ou menos duradouramente, vamos à procura de nós, do que fomos e já não somos.
As grandes emoções são fortemente delapidadoras e daí que o criminoso volte sempre ao local do crime, em busca da inocência ou da paz que perdeu.
Mas os retornos que dão paz e reencontro com aquilo que de melhor já fomos dão-se com os lugares onde vivemos os verdes anos, dificilmente relegados por outros quaisquer.
Quarta-feira, 26 Outubro, 2011 às 20:10
António Emidio
Por mim será bem vindo Vitor Coelho.
Quarta-feira, 26 Outubro, 2011 às 23:40
fernando capelo
Caro Vitor Coelho, seja bem vindo quem vier por bem.
Quinta-feira, 27 Outubro, 2011 às 12:03
vítor coelho
Caríssimos António e Fernando
Fico à espera do tal encontro que, decerto, acontecerá sem olhar para o relógio.
Quinta-feira, 27 Outubro, 2011 às 12:04
fernando pereira
Caríssimo Leal Freire, permita-me que assim o chame, é normal que se escreva para ser lido. Gosta-se de ser entendido. Mas analisado, será o objectivo último. Ora a sua sábia análise, enche-me de contentamento e é, para mim ,uma lição que quase me inibe no comentário.
Quinta-feira, 27 Outubro, 2011 às 12:37
Carlos Marques
depois de ler esta excelente crónica e respetivos comentários, também excelentes, só me resta opinar: que bom por ainda existir GENTE assim !!!
Quinta-feira, 27 Outubro, 2011 às 14:39
fernando pereira
GENTE de que o amigo Carlos Marques fará parte, com toda a certeza. Um abraço.
Quinta-feira, 17 Novembro, 2011 às 17:54
Mena Martins
uma lenda Hindu muito antiga conta que houve um tempo em que todos os homens eram deuses. Como abusaram desse poder, Brama, o mestre dos deuses, decidiu retirar-lho e escondê-lo num lugar onde lhes seria impossível encontrá-lo. Sim, mas onde? Brama convocou em conselho os deuses menores para resolver o problema.
– Enterremos a divindade do homem, propuseram eles.
Mas Brama respondeu:
– Isso não chega, porque o homem vai cavar e encontrar.
Os deuses replicaram:
– Nesse caso, escondamo-la no fundo dos oceanos.
Mas Brama respondeu:
– Não, que mais tarde ou mais cedo o homem vai explorar as profundezas do oceano. Acabará por a encontrar e vai trazê-la para a superfície.
Então os deuses disseram:
– Não sabemos onde a esconder, porque parece não existir sobre a terra ou debaixo do mar um lugar onde o homem não possa chegar um dia.
Mas Brama respondeu:
– Eis o que faremos da divindade do homem: vamos escondê-la no mais profundo dele mesmo, porque é o único lugar onde ele nunca pensará em procurar.
E depois desse tempo todo, conclui a lenda, o homem explora, escala, mergulha e escava, á procura de qualquer coisa que se encontra dentro de si.
este texto teu deixa-me sem comentarios!!! apenas te posso enviar esta historia porque foi o que me fez lembrar a tua arvore…..